Mosul: A vingança das milícias xiitas recai sobre as mulheres

Após a cidade ser recém liberta, a penitência pelos atos violentos do Estado Islâmico recai sobre as esposas dos jihadistas e mulheres comuns: “não existe motivo para deixá-las vivas”

Por Francesca Mannocchi

Mulher muçulmana ferida - L Espresso

Um soldado da milícia xiita de Hasd al Shabi, que combateu o Estado Islâmico em Mosul ao lado do exército iraquiano, mostra seu punhal com orgulho e fala, sarcasticamente: “eu corto cabeças. Ontem matei quatro mulheres. Eram as esposas deles (jihadistas), não tinha motivo para deixá-las vivas”.

As mulheres de Mosul, mulheres do Iraque, maiores vítimas da guerra. Com o califado no poder eram submissas e humilhadas; agora, com a cidade libertada, sofrem com a vingança dos vencedores.

A parte ocidental de Mosul está praticamente toda destruída: não existe nenhum edifício que não tenha sido bombardeado. O cheiro dos corpos em decomposição prevalece no ar quente de julho. Nos escombros é possível ver restos de armas, cartuchos, objetos deixados pelas vítimas comuns e corpos enterrados pelos detritos. As mulheres fugitivas estão esgotadas, suas crianças estão magras devido à fome, sem sapatos, feridos. Precisam andar por horas para chegar em uma zona segura.

Uma senhora cai, seu rosto está cheio se sangue. “Socorro!”, grita diante dos soldados. Conta que bebeu a própria urina nos últimos dias para sobreviver: “Trancaram mulheres e crianças. Gritávamos, mas ninguém conseguia nos ouvir, ninguém nos socorreu por semanas. Cercaram as casas com fios elétricos para impedir as pessoas de fugir”.

Nessas horas, não é possível ver nenhum homem. Os poucos que ainda tentaram fugir da cidade foram presos, sem deixar rastros. É difícil dizer se foram mortos ou se estão nas mãos dos serviços secretos. Mas a vingança recai sobre as mulheres. Dois dias antes da guerra o general Fadel Barwary, da Golden Division (forças especiais do exército iraquiano), declarou que “para nós qualquer um que ficou dentro de Mosul até agora é cumplice do Isis, e merece morrer, independentemente de ser homem ou mulher”. Pelo seu tablet ele mostrou imagens de mulheres nas batalhas, armadas de kalashnikovs, lado a lado de seus maridos nos últimos momentos do califado jihadista: “Essas mulheres estão lutando com seus filhos, sem hesitação. São treinadas como os homens e determinadas como eles”.

Usama, um jovem soldado, tira do bolso esquerdo um celular. “Era de um homem de Daesh”, diz enquanto mostra fotografias cotidianas e de momentos em família salvas na memória do aparelho, pertencente a um jovem da milícia jihadista com pouco mais de vinte anos. Nas fotos salvas ele aparece com a barba e os cabelos compridos, com uma criança que o abraça e o beija com carinho. Uma mulher sem o véu, dentro de casa, sorri e segura as armas ao lado do marido; atrás dos dois é possível ver as bandeiras pretas do califado.

Sim, existem as mulheres do Isis, as esposas dos jihadistas. Contudo, milhares de outras mulheres foram obrigadas a aderir às milícias do Estado Islâmico, para salvar suas vidas e a de seus familiares. Agora elas chegam nos hospitais, com seus niqab sujos de terra: mulheres fugindo junto com outras mulheres, com seus filhos, no meio de outras crianças.

Fatima está usando uma cadeira de rodas. Sua filha de dois anos está com o crânio fraturado há três meses, atingida por estilhaços de uma bomba. “Por isso”, diz, “eu fugi. Não tinha comida, não havia remédios, a menina chorava desesperadamente e eu não sabia o que fazer. Me obrigaram a ficar mas eu não queria. Meu marido também foi obrigado a ficar: os militantes obrigaram ele a lutar pelo Isis”. Os soldados, porém, não acreditam: acham que ela é mulher de um soldado do califado, que está mentindo para salvar sua filha, que possui informações preciosas e que pode ajudá-los a descobrir os últimos edifícios onde se escondem os poucos combatentes restantes do Isis. Fatima olha em volta perdida, está debilitada devido a semanas de assédio; está com sua irmã, também com uma criança no colo. “Eu não fiz nada. Não sei onde eles possam estar”, repete para os soldados, enquanto eles revistam sua bolsa.

“Elas são assassinas em potencial. Nos últimos meses, o Isis mandou mais de trinta mulheres-bomba para morrerem” continua o general Barwary. “Vinte foram na última semana, com o objetivo de ferir inimigos e civis em fuga. É difícil dizer se elas foram obrigadas ou se fizeram os atentados por vontade própria. O que impressiona é que muitas explodem ainda com os filhos no colo”.

O episódio se refere a uma mulher que causou sua própria explosão em uma rua estreita na cidade velha, onde em 2014 foi proclamado o Califado. “Ela não parecia assustada como as outras. Estava andando em uma longa fila de mulheres e idosos que corriam sobre as ruinas de um beco para fugir. Repentinamente ela colocou a mão no seu quadril, com a outra segurava seu filho. Ela morreu, matando também quatro dos nossos homens, os civis que estavam com ela e seu filho”. É difícil para os soldados diferenciar quem é civil e quem é do Isis, sendo impossível saber quem deve ser salvo e quem deve ser preso.

A derrota do Estado Islâmico em Mosul finaliza uma batalha, mas não a guerra; há riscos de a organização terrorista voltar ao seu estado inicial, com ataques casuais e violentos. As diferenças entre sunitas e xiitas estão longe de serem resolvidas, podendo resultar em outros conflitos internos.

Por isso, depois da reconquista da cidade, o desafio é administrar os interesses dos cidadãos sunitas, reconstruir a cidade, a infraestrutura para os civis recuperarem a vida cotidiana após os traumas de três anos de violência.

Os danos à infraestrutura da cidade, estimados em milhões de dólares, será a única maneira de conter o surgimento de novas formas de fundamentalismos: “derrotar o Isis em Mosul não significa ter destruído suas raízes e as razões complexas da sua criação”, diz Asma na sua casa localizada no Oeste de Mosul. As ruas em volta de sua casa estão cheias de destroços, não há água e nem eletricidade. Vive com o marido e seus oito filhos; eram nove antes da invasão das caminhonetes com bandeiras pretas, símbolo do Isis. “Mataram meu filho depois de dez dias. Enforcaram-no porque ele era o barbeiro da polícia iraquiana aqui em Mosul”.

Asma mostra suas fotos que esconde em uma gaveta e chora disfarçadamente, para que os filhos menores não a vejam: “não tem uma mulher em Mosul que não tenha perdido um ente querido, um filho ou um marido morto pelos assassinos do Estado Islâmico. Cada uma de nós chora pelo seu drama em silêncio, para não passar tristeza aos outros”. Asma conta que de vez em quando as mulheres do seu quarteirão se reúnem para contar lembranças daqueles que amavam, dos filhos que não poderão ver crescidos. “Quando a guerra começou capturaram os meus filhos e obrigaram-nos a cavar buracos na parede, para fugir sem serem vistos; fomos todos com eles, toda a família foi mantida refém. No cativeiro, quem tentava fugir era enforcado nos postes de luz, para assustar os outros”, conta.

Hoje em dia Asma tem o olhar orgulhoso de quem pode voltar a viver. Na entrada da sua casa estão alguns barris para colocar água; ela espera na fila para encher um, depois vai até a distribuição de alimentos junto com uma massa de mulheres como ela. Elas gritam, esperam horas sob o sol de quarenta graus. Os soldados gritam para que elas façam silêncio, mas a fome e o desespero dificilmente são contidos.

Uma delas, com a face coberta pelo niqab, mostra os documentos de identidade do seu marido: “os soldados do exército capturaram ele acusando-o de fazer parte do Isis, mas ele era um homem bom. Agora estou sozinha com quatro filhos e não tenho nada para comer”, grita enquanto a sua filha menor se esconde atrás de suas roupas.

O soldado fecha as portas e a ajuda alimentar não chega. Seus gritos tornam-se apenas ecos pelas vias destruídas da cidade.

“Eu pedi para os meus filhos perdoarem e seguirem em frente. Disse que superaremos essa tragédia apenas se tentarmos não pensar sobre, mas a cada dia que passa percebo mais ódio em seus olhos”, conta Asma. Com as imagens da guerra e dos mortos ainda vivida na memória, ela tenta explicar para o seu filho Mohammad que ele deve perdoar as crianças como ele que são filhas de pais que pertenciam ao Isis; a culpa é dos pais, não das crianças.

Mas Mohammad balança a cabeça. Diz que não vai perdoar, e que aquelas crianças serão piores que os pais.