Alexandre da Maia: Muito aquém do jardim

No filme Muito além do jardim (Being there, dir. Hal Ashby, 1979), Peter Sellers interpreta Chance, um jardineiro que passou a vida inteira isolado e sem sair da casa de seu patrão, onde cuidava das plantas e tinha contato com o mundo exterior apenas pelas narrativas construídas pela televisão. Com a morte do empregador, o jardineiro sai ao mundo e conhece pessoas, apesar de sua ingenuidade e aparente incapacidade de lidar com elas.

Por Alexandre da Maia*

Torquato Jardim

Em suas idas e vindas, Chance conversa com as pessoas como se descrevesse eventos naturais relacionados ao cultivo de plantas em um jardim. É o código comunicacional disponível a ele em face do isolamento.

Os agora interlocutores de Chance escutam “a necessidade de preservação das raízes” e “no jardim, o crescimento acontece em estações” como metáforas da profundidade dos problemas existenciais, conselhos políticos de alta monta e da circularidade e sazonalidade dos problemas da vida. A despeito do poder e do dinheiro dessas pessoas, a singeleza de Chance provocava nelas algo que rompia os limites do racional, o que fez gerar paixões das mais diversas ordens, do amor à política. Entrevistado por jornalistas em talk shows e outros veículos, Chance é lido pela imprensa como uma espécie de guru do milionário falecido para quem prestava seus serviços. Num mundo cercado de incertezas e possibilidades, Chance lida com conceitos do único mundo que conheceu: o espaço privado, da casa. Mais especificamente, do jardim. Aqui, o jardim da vida de Chance representa tanto o privado como privus, da privação (ser privado de) quanto como o espaço do interesse particular nos planos individual, familiar e corporativo.

No atual momento político do Brasil, quando temos um presidente da República investigado pela Polícia Federal a partir de inquérito instaurado no Supremo Tribunal Federal, várias narrativas estão em disputa sobre a nomeação de Torquato Jardim como titular do atual Ministério da Justiça e Segurança Pública. Destaco aqui a relação entre a cobertura feita pelos grandes meios de comunicação de massas à mudança de comando na pasta e as palavras proferidas pelo novo ministro nas entrevistas concedidas à imprensa.

Parece que estamos diante de uma situação inversa daquela vivenciada no filme por Chance. De início, vemos um ministro acuado frente a certas perguntas dos profissionais da imprensa. Durante a coletiva logo após a cerimônia de posse, houve situações em que o recém-chegado se recusa a dar respostas porque ele “só responderia a uma pergunta”, o que mostra a falta de habilidade e arrogância no trato de temas importantes para o presente e o futuro do Brasil.

Num momento em que o então presidente nacional de um dos principais partidos de sustentação do governo Temer é flagrado em escuta autorizada pedindo a queda de Osmar Serraglio a fim de “estancar a sangria” da Operação Lava-Jato por meio de intervenção direta no trabalho investigativo da Polícia Federal, a conduta minimamente exigível de um ministro da Justiça que assume o comando imediatamente após a queda anunciada de seu antecessor é dar garantias concretas de manutenção das equipes de investigação e de continuidade nos comandos das operações e da Direção-Geral. O que vimos nas respostas de Jardim às perguntas sobre o tema foram frases de efeito genéricas para ludibriar os incautos, fugindo do tema sem se comprometer com o que se espera de um ministro de Estado. Nesse ponto, as narrativas da grande imprensa e seus múltiplos interesses mostram uma espécie de má digestão das evasivas de Jardim.

Confrontado com o fato de ter sido ministro do mesmo TSE que dará continuidade ao julgamento da chapa Dilma-Temer na próxima terça, o ministro mostra que, ao contrário de Chance, é pessoa com trânsito permanente entre os colegas e demais esferas de poder. Como fez questão de frisar, conhece todos há mais de 30 anos, são docentes nas mesmas instituições, frequentam os mesmos lugares. “Brasília é pequena”, diz o ministro.

A comunicação nunca fica restrita àquilo que é aparentemente dito. Entre tentativas forçadas de construir metáforas que não passam de evasivas, Torquato Jardim comunica que tem a vaidade de quem quer posar de intelectual, o trânsito com o poder, a facilidade de frequentar a mesma roda e é parte do círculo de amigos e ex-colegas que vão decidir o processo no TSE. Tenta mostrar que é tão bem relacionado que o Planalto fez o ex-presidente José Sarney aparecer em público como uma espécie de apoiador especial transformado em convidado de honra na sua posse.

Pelas declarações iniciais do ministro que a todas e todos conhece, ele chega à Esplanada dos Ministérios para ser um advogado do governo. Ao confundir estado com governo, apesar de declarar o oposto, o novo ministro trata o espaço público como se fosse a sua casa. Na metáfora de Nelson Saldanha, confunde a praça com o jardim, o público com o privado. Enquanto Chance só dispunha da semântica privada para sua expressão, o novo ministro, dito conhecedor do mundo, das pessoas e das leis, pauta suas opiniões e silêncios pelos interesses dos que lhe são próximos. Enquanto Chance com sua simplicidade podia dar às pessoas possibilidades de compreensão amplas e enriquecedoras, Torquato e suas filigranas linguísticas só consegue agradar aqueles que são assíduos frequentadores do seu jardim.

*Alexandre da Maia é professor e coordenador do curso de graduação da Faculdade de Direito do Recife – UFPE e professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE.