Sandra Caballero: Brasil, país pré-revolução francesa

"A esperança é que a ânsia da elite, desumana e inculta, em dilapidar o patrimônio do país e destruir os avanços sociais conseguidos a duras penas, ao longo de séculos de lutas e perdas humanas, desperte na população a percepção de que é preciso reagir e retomar o protagonismo da luta política".

Bandeira Brasil

A Revolução Francesa de 1789 foi uma revolução burguesa que, a época, significou um extremo avanço diante das estruturas de um Antigo Regime que se baseava em um poder absolutista, justificado pela vontade divina.

A criação dos três poderes independentes e o fim dos privilégios do clero e da nobreza foram fundamentais para o progresso da humanidade. Além disso, uma das marcas do processo revolucionário foi colocar na ordem do dia questões relacionadas aos direitos humanos, como a liberdade de crença e de expressão e a criação de mecanismos que protegem o indivíduo da violência de um Estado autocrático.

Olhando o Brasil do século XXI e todos os retrocessos pautados pelo governo golpista, a sensação é que ainda vivemos no século XVII. A independência entre os poderes inexiste: Executivo, Legislativo e Judiciário uniram o que há de pior na elite brasileira para perpetrar um golpe que, não foi contra Dilma e o PT, mas contra a classe trabalhadora que, nos últimos treze anos, teve uma melhora significativa, mas insuficiente, nas suas condições de vida.

Ao mesmo tempo, a escalada de violência cometida pelas forças de segurança contra aqueles que ousam se insurgir, nos joga num momento tenebroso de desrespeito aos direitos básicos de livre organização e manifestação. A censura escancarada, que numa canetada da justiça, permite ao governador Geraldo Alckmin e ao prefeito João Dória perseguir seus críticos, é um exemplo claro da demolição de um Estado de Direito que nunca se consolidou. Isso para não citar as ilegalidades da operação Lava Jato.

Rafael e Matheus são apenas símbolos de um modelo que extermina a população jovem da periferia com o silêncio cúmplice daqueles que se sentam diante da TV e repetem que “bandido bom é bandido morto”, desde que preto e pobre.

Ao mesmo tempo em que tenta obrigar os trabalhadores a abrir mão de direitos básicos, como os trabalhistas e o da previdência, usando a crise econômica e um Estado falido como justificativa, o governo golpista perdoa uma dívida de 25 bilhões do Itaú e aumenta violentamente os gastos com a mídia, entre as inúmeras bondades com os do andar de cima.

A desfaçatez de um deputado do PSDB, Nilson Leitão do Mato Grosso, de apresentar um projeto que abre a possibilidade de pagar trabalhadores rurais com casa e comida, mostra, de forma abjeta, que a direita não perdeu apenas a vergonha, mas também o medo de assumir com todas as cores seu lado escravocrata.

A mídia brasileira age como um escritor de ficção, sem nenhum compromisso com a realidade, a não ser a defesa intransigente dos interesses da elite a qual pertence. O direito à informação, que sempre foi sonegado no país, virou pó. O que os meios de comunicação fazem não é pós-verdade ou qualquer expressão moderninha, é simplesmente repetir mentiras, diuturnamente, transformando o “consumidor” desse lixo em um zumbi incapaz de diferenciar fantasia e realidade e que repete sem nenhum senso crítico um discurso retrógrado e violento que elimina qualquer empatia com outro ser humano e a possibilidade de construção de uma consciência de classe.

Esse quadro não é de agora, ao longo da nossa história as aparentes transformações ocorreram sem rupturas, da independência ao fim do regime militar, a elite rural e empresarial mantiveram o controle das estruturas políticas e econômicas e, quando achou que a situação saía do controle, recorreu a golpes de Estado, com a benção do Tio Sam.

A verdade é que mantemos uma mentalidade escravista, em que é lícito o uso da violência com os menos favorecidos e com as minorias. O massacre de índios e sem terras faz sangrar o país e elimina a nossa dignidade enquanto nação.

Uma parcela significativa da população confunde conceitos básicos como justiça, com vingança. O discurso do colonizador ainda faz eco, e o sonho da classe média é viver em Miami. A nossa cultura pouco letrada, baseada numa oralidade medíocre, impede um debate político de alto nível. Discutir conceitos como espírito republicano parece coisa de intelectual pedante, cobrar embasamento teórico é visto com desprezo e posturas preconceituosas são travestidas de opinião.
Para piorar a situação, o fundamentalismo cristão cresce a passos largos e impõe suas pautas retrógradas ao conjunto da sociedade.

Pesquisa Datafolha, que mostra que a intenção de voto em Jair Bolsonaro cresce nas camadas mais escolarizadas desnuda a tragédia que é a educação brasileira, onde o Iluminismo ainda não aportou. Aqui nos trópicos, escolaridade e conhecimento, formação cultural e capacidade crítica estão dissociados.

A ponte para o futuro avança como uma locomotiva rumo ao passado e nossa Bastilha parece distante de cair. A esperança é que a ânsia da elite, desumana e inculta, em dilapidar o patrimônio do país e destruir os avanços sociais conseguidos a duras penas, ao longo de séculos de lutas e perdas humanas, desperte na população a percepção de que é preciso reagir e retomar o protagonismo da luta política.