Britto: “Ninguém fala mais em proteção à pessoa humana, só ao capital"

De acordo com o ex-presidente da OAB, Cezar Britto, está em curso uma regressão na compreensão do trabalho como fator de dignidade. Na sua avaliação, o Brasil vive o auge desse processo com o governo Michel Temer. “Ninguém mais fala em proteção à pessoa humana, mas em proteção ao capital e ao capitalista. Caíram as máscaras”, disse. Para ele, o momento é de reação e enfrentamento às ameaças aos direitos constitucionais, promovidas pela atual gestão.

cezar britto

Britto participou, na última sexta (17), do Seminário Democracia e Direitos dos Trabalhadores, em São Paulo.

Promovido por Advogados pela Democracia, Justiça e Cidadania (ADJC), Fundação Maurício Grabois (FMG), Central de Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e a Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (Abrat), o evento abordou os desafios do país diante de um cenário de crise, no qual o governo busca aprovar reformas prejudiciais ao trabalhadores e à democracia.

Na sua fala, o ex-presidente da OAB condenou o discurso falacioso da atual gestão de que o direito do trabalho precisaria ser modernizado.“É a propaganda que mais se faz: que o direito do trabalho impede o desenvolvimento do Brasil, que a velhinha CLT está caduca e precisa ser modificada porque atrapalha o desenvolvimento”, disse, classificando o mantra como um “mentira”.

O advogado criticou aqueles que atacam a justiça do trabalho, afirmando que ela seria “protecionista”. “O direito penal é protecionista, protege o réu contra o Estado; o direito do consumidor também, pois protege o consumidor; o direito de família também é protecionista. Então se temos que acabar com o protecionismo, vamos acabar com a própria advocacia, porque nossa função é lutar por quem quer justiça num país desigual”, defendeu.

Na sua fala, Britto fez uma abordagem histórica, sobre a evolução da relação da sociedade com o trabalho, ao longo dos séculos. Ele destacou que, durante a maior parte do tempo, trabalho foi sinônimo de castigo, atividade indigna, dedicada a escravos e, posteriormente, a servos.

“No início dos tempos, as pessoas guerreavam para ter mão de obra escrava. Os nobres ganhavam soldos para não trabalhar. Quando há a primeira evolução desse conceito do trabalho dedicado a escravos, foi para dizer também que o trabalho era reservado aos servos. Havia servidão. O trabalho era coisa, como o homem era coisa à disposição do senhor feudal”, afirmou.

Uma nova visão

Britto lembrou que uma nova compreensão acerca do trabalho – não mais como coisa, mas como fator de dignidade – surge a partir da revolução industrial, com um movimento de resistência dos trabalhadores à exploração.

“Os trabalhadores começam a conviver e a falar sobre uma reação. Em 1824, surge o primeiro sindicato na Inglaterra. E, a partir desse movimento, o trabalho passa a ser compreendido não mais como coisa, mas como fonte de poder”, colocou.

Ele resgatou que, daí, começam a surgir grandes conflitos, que culminam com o assassinato de homens e mulheres em luta por melhores condições de vida e trabalho. Britto ressaltou que, nas manifestações que deram origem ao Dia Internacional do Trabalhador e ao Dia Internacional da Mulher – ocorridas no fim do século XIX e início do século XX – , as pessoas pleiteavam a redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias. Hoje, o governo Michel Temer fala em estendê-la para até 12 horas.

De acordo com ele, é naquele período de contestação que o mundo passa a refletir sobre o direito das pessoas terem a propriedade das outras e se começa a formular a ideia de que é preciso suavizar a exploração e estabelecer o trabalho como fator de dignidade.

Mas, embora tenham sido feitas concessões, a organização do trabalhador continuou a ser vista como uma ameaça. “Essa é a regra que passa a regular nossos conflitos: transformar o trabalho em fator de dignidade da pessoa humana, concedendo e regulamentando o direito do trabalho – para que não houvesse tamanha exploração – e, paralelamente a isso, impedir a organização sindical, porque ela conduziria a outra conceituação de trabalho, que é o trabalho como poder, o que poderia levar a uma revolução”, detalhou o ex-presidente da OAB.

Segundo ele, alguns fatos históricos pressionaram ainda mais para a constituição do direito do trabalho nos países capitalistas, como as revoluções mexicana e russa.

“O que dizem as duas: é possível que aquele que produz o trabalho se aproprie do poder e das riquezas geradas pelo trabalho. O mundo entra em polvorosa e começar a aperfeiçoar a ideia de que é preciso transformar o trabalho em fator de dignidade humana, se afastando da ideia de coisa. Porque dizer que o trabalho é coisa atrai o trabalhador para o mundo comunista”, disse Britto.

Dois anos após a revolução russa de 1917, nasce a Organização Internacional do Trabalho, para dizer que é preciso melhorar as condições humanas da classe trabalhadora. “E, a partir de 1919, o mundo capitalista começa a formular esse conceito evolutivo do trabalho, que sai de castigo, da servidão e da apropriação, e passa-se a falar em proteção, em fator de dignidade humana e vem toda uma legislação”.

A queda do muro e a involução do direito do trabalho

Em 1989, contudo, ocorre a queda do Muro de Berlim, alterando o cenário mundial, com repercussões negativas para os trabalhadores. “E aqueles que desde sempre compreendiam o trabalho como coisa se assanham de novo e voltam a pregar a involução do direito do trabalho. A partir de então, no Brasil e no mundo, toda legislação que se tem é para voltar ao conceito do trabalho como sinônimo de exploração e do ser humano como mercadoria”, declarou Britto.

De acordo com ele, dependendo do governo que comandou o Brasil, isso se verificou com maior ou menor força. “Começa a se mudar novamente o conceito do trabalho, a se falar em competitividade, em proteção ao capital e não mais à pessoa humana. Exemplo é a Lei da Falência. Antes dela, se garantia primeiro os direitos trabalhistas, hoje se garante primeiro as obrigações financeiras”.

O ex-presidente da OAB observou que este é um processo que vai se ampliando e chega agora a seu auge, com a gestão Michel Temer. “O governante de plantão, eleito a partir do pato da Fiesp, nos dá esse presente com mais força, dizendo que é preciso transformar o trabalho em mera mercadoria e o trabalhador em custo de produção. Essa é a visão que se tem hoje do trabalho. Ninguém mais fala em proteção à pessoa humana, mas em proteção ao capital e ao capitalista. Eu pergunto, isso é uma evolução ou uma involução?”, questionou.

Britto opinou que é preciso defender, sim, a modernização da legislação do trabalho, mas sob a perspectiva do trabalho como fator de dignidade e felicidade, e não como obstáculo.

Opressão sem disfarce

Apesar do cenário, o advogado se disse otimista com a resistência. Para ele, é importante que tenham “caído das máscaras”. “Hoje, ninguém mais está disfarçando. No Brasil, há mais de 100 mil pessoas vítimas de trabalho escravo e a Comissão de Constituição e Justiça relativiza o conceito de trabalho escravo; em plena discussão sobre corrupção, estão propondo voltar ao financiamento empresarial de campanha, ou seja as pessoas estão se assumindo como são”.

Ao citar um trecho do livro A arte da guerra, de Sun Tzu, o advogado destacou a importância de conhecer o adversário. “Eles tiraram a máscara e é hora de mostrar também nossa força. É um momento de reação, enfrentamento. Por isso sou otimista. Vários companheiros estão se reunindo”, avaliou.

Cezar Britto encerrou sua fala, mencionando uma frase da abolicionista norte-americana Harriet Tubman:” Libertei mil escravos. Podia ter libertado outros mil se eles soubessem que eram escravos”. O advogado defendeu ampliar a resistência. “É com esses que devemos lutar, com os que não se percebem escravos”, concluiu.