O perigo de ser mulher na América Central

Entre as histórias que marcaram esta semana da grande marcha mundial de mulheres está o caso assustador de Vilma Trujillo García, uma mulher de 25 anos que foi queimada viva na Nicarágua, acusada por fiéis de uma igreja evangélica de estar possuída pelo demônio.

Manifestação de mulheres na Guatemala - AFP

A agressão aconteceu no dia 21 de fevereiro, quando a vítima foi amarrada e jogada em uma fogueira, durante um culto. Resgatada após uma denúncia anônima, ela ainda se manteve hospitalizada durante alguns dias, até que as queimaduras que afetaram 80% do seu corpo terminaram com sua vida.

A tragédia de Vilma esconde outros tipos de violência: o exorcismo recomendado pelo pastor Gregório Rocha, uma das pessoas presas após a morte da jovem, tinha como justificativa um suposto comportamento violento apresentado por ela, ignorando o fato de que essa situação aconteceu logo após ela denunciar um estupro que teria sofrido, e que terminou em impunidade ao agressor.

Também se somam a muitos outros que fazem da América Central uma das piores regiões do mundo para ser mulher, com uma realidade que está presente em todos os países em igual proporção, e independente da corrente política – acontece tanto em países governados pela direita, como Panamá, Honduras e Guatemala, quanto nos governados pela esquerda, como El Salvador e a Nicarágua, onde ocorreu o caso de Vilma Trujillo.

Um relatório divulgado pela Anistia Internacional em 2012 aponta a América Central como uma das regiões com maior número de casos de violência contra a mulher, em números proporcionais.
O documento mostra que a Guatemala registrou, no ano de 2011, 631 casos de feminicídio, 3,9 mil estupros e mais de 60 mil denúncias de violência doméstica. No mesmo ano, Honduras reportou pouco mais de 500 casos de feminicídios e mais de 4 mil denúncias de violência sexual, sendo 80% delas contra menores de idade.

Em El Salvador, no ano de 2010, foram registrados 3,4 mil casos de agressões sexuais, também como menores como as vítimas preferenciais – uma pesquisa apontou que 5,8% das salvadorenhas afirmam ter sofrido algum tipo de violência sexual durante a infância e adolescência. Na Nicarágua, desde 2010, os dados estatísticos apontam que a capital Manágua registra uma média de 13 casos de agressão sexual por dia, um a cada duas horas. Os casos de feminicídio foram 590 somente em 2013. Vilma Trujillo foi vítima de ambos os tipos de violência.

Legislações improdutivas

Outro informe, divulgado pela OMS (Organização Mundial da Saúde, ligada à ONU) em 2016, traz uma cifra ainda mais assombrosa: a América Central registrou mais de 4 mil assassinatos de mulheres em 2015 – em países como Honduras e El Salvador, que apresentam as piores cifras, uma mulher é assassinada a cada 16 horas.

É importante destacar que esses números estão baseados em casos denunciados, e que, em se tratando da América Central, não se deve ignorar, para efeito de análise, a verdade sob as sombras, já que muitos casos, sobretudo em regiões selváticas e rurais ou em cidades pequenas do interior, não chegam ao conhecimento das instituições ou das entidades de proteção dos direitos humanos.

Nos sete países da América Central continental existem legislações específicas para penalizar a violência contra as mulheres e a tipificação do delito de feminicídio, e inclusive uma medida a escala regional – a Política Regional de Igualdade e Equidade de Gênero, adotada pelo SICA (Sistema de Integração Centro-americano, espécie de Unasul da América Central) em 2013.

Entretanto, a realidade é outra: poucos estados trabalharam para que todos os delitos sejam devidamente investigados, perseguidos, julgados e sancionados, e os que o fizeram tampouco deram maior prioridade ao tema.

Claro que, a respeito do título, o perigo de ser mulher existe em toda a América Latina, não só na Central – e porque não dizer, em quase todo o mundo.

Na América do Sul, as estatísticas não são muito diferentes, mesmo em países como Argentina, Chile, Uruguai e Colômbia, onde crescem movimentos como o #NiUnaMenos, ou no Brasil, onde o movimento feminista foi capaz de instalar algumas pautas importantes, também se observa um forte contra-ataque conservador, que busca reivindicar o rol da mulher resignada diante das injustiças e violências contra sua condição, com um discurso de demonização do feminismo e suas demandas.