Guadalupe Carniel: Da importância dos clássicos

Desde que estamos na escola aprendemos que temos que conhecer todos os clássicos. Doistoiévski, Shakespeare, Borges, Machado de Assis. Eles mudam as coisas. E a única regra que realmente vale é que o futebol imita a vida e vive-versa e também temos nossos clássicos.

Por Guadalupe Carniel*

Atletiba nos anos 1980, com torcida dividida

Nos últimos quatro dias houveram alguns jogos importantes. No domingo, (não) tivemos um derby que entrou para a história pela sua importância: o Atletiba que não aconteceu, por motivos de cotas televisivas. Mas o que valeu realmente foi ver uma empresa que se traveste dizendo que é “a maior incentivadora do futebol brasileiro” tendo o dedo apontado na cara para mostrar todo seu coronelismo com as equipes se recusam a jogar. Claro, a CBF não se fez de rogada e os clubes terão punições.

Nesse mesmo dia, eu estava em Belo Horizonte para acompanhar um clássico charmoso: Atlético Mineiro e América. Torci um pouco o nariz pelo fato do Mineirão ser uma arena, porém me senti até que confortável. E não foi exatamente pelo que acontece lá dentro. Mas pelo lado de fora: acordar cedo, ir pra rua do Peixe tomar cerveja e comer tropeiro. Não, o nome da rua não é esse, mas ela é conhecida por essa alcunha por um bar que tem ali. Aliás, existe hoje em dia espaço mais democrático que o famoso buteco pé-de-mesa com cerveja barata e boa comida? É o último reduto dos que são apaixonados por caipirinhas, jogos debaixo de sol e que sentem falta de campos sofridos e que se julgam os maiores entendedores das dezoito regras. E lá dentro no meio da bateria do Movimento 105 que ditou o ritmo do lado em que estava, foi festa, tirantes, bom público, boa cantoria, bandeiras com mastros, defender as cores do clube, a paixão deixada na arquibancada e o sentimento de dever cumprido após o 4 a 1.

Ontem era uma data especial em São Paulo: o clássico entre Corinthians e Palmeiras completava cem anos. E como se faz numa partida tão especial assim? Um video pura e estrategicamente marmeleiro pra vender a ideia do romance clássico. Daquela época que mal se dormia durante a semana pensando no rival. Arrumar ingressos para todos os amigos de bancada (que normalmente conhecíamos por lá). Ir horas antes, só pra poder beber com esses mesmos amigos, cantar e começar a fazer festa. Talvez daí o fato de ter me sentido tão bem em Belo Horizonte.

A emissora que detém os direitos mostrava como se fosse um duelo de titãs e festa nas torcidas com direito a sinalizador. O que se viu não foi nada disso, porque era jogo de torcida única. E tem coisa pior do que você não estar frente a frente com o seu rival, disputando o espaço e tendo a chance de empurrar tua equipe? Um time joga com 12 jogadores. A torcida é o centro-avante, ele está lá, empurrando, levando a equipe pra frente. Claro, houveram protestos contra a proibição do uso de sinalizadores, com a torcida corintiana fazendo um verdadeiro inferno.

Mas em São Paulo não podemos ter clássicos com duas torcidas (e ao que parece por pura preguiça do Estado), não podemos mais nos concentrar nos bares no entorno do estádio, vide o Allianz. Não pode entrar faixa, não pode entrar camisa de torcida, não pode sinalizador. Estamos na terra do não pode. Não pode nem ao menos se ter um clássico decente nem no centenário! Talvez por isso me senti tão bem e a vontade em Belo Horizonte, matando a saudade de algo que não tenho mais. E claro, em abril estarei lá, para conferir a partida entre Cruzeiro e Atlético com torcida meio a meio, como deveria ser em qualquer lugar.

Os clássicos são assim chamados porque marcam: no caso do Paraná por quebrar com uma regra e sair do lugar comum e em Belo Horizonte por resgatar algo de romântico que não se via por aí. O de São Paulo não teve nada memorável.

Ah, sim, teve o ápice que foi o erro de arbitragem grotesco, de fato. Posso soar ridícula, mas eu defendo os erros de arbitragem. O que seria do futebol sem eles? O time que se deu bem no primeiro tempo, se estrepa no segundo. Porque a bola pune, meu caro. E foi o que aconteceu com o Palmeiras. A vida não é perfeita, o futebol também não deve ser.

*Jornalista, pesquisadora e autora do blog www.mortesubitafc.wordpress.com. Fotos da partida entre Atlético e América de Centim Vicentim