“Sistema prisional não ressocializa e encarcerar não é solução”

Ex-secretário de Justiça do Ceará, o advogado Hélio Leitão aponta que os problemas do sistema penitenciário de seu estado são os mesmos do restante do país: excedente de presos, estruturas prisionais antigas, deficiência de pessoal. Para ele, são fruto de equivocada lógica punitiva e de encarceramento em massa. Com o Brasil em quatro lugar no ranking das maiores populações carcerárias, ele avalia que, além de o Estado não conseguir dar conta desse contingente, “o sistema não ressocializa”.

Hélio Leitão

“O sistema prisional é o resultado de uma política de encarceramento em massa, que deságua no sistema prisional. Temos uma mentalidade punitiva que perpassa boa parte do sistema de Justiça. É a lógica do aprisionamento. Acontece no país inteiro e faz com que tenhamos superpopulação carcerária, com todos os males típicos disso”, disse Leitão, em entrevista ao Portal Vermelho, nesta terça (10).

A população penitenciária brasileira chegou a 622.202 pessoas em dezembro de 2014. Só entre 2003 e 2013 o aumento foi de 86%. No mesmo período, a população brasileira cresceu menos de 15%.

Com larga experiência em direito penal, o ex-secretário destacou que prender tanto não tem ajudado a reduzir a criminalidade no país. Em 2014, de acordo com o Atlas da Violência 2016, o Brasil atingiu a marca de 59.627 homicídios – maior número anual já registrado. Na comparação com 2003, houve uma alta de 21,9% nos homicídios. “Se encarcerar e tratar mal o preso fosse um fator de inibição da criminalidade, teríamos níveis muito melhores, e não é o que se vê”, afirmou Leitão.

Segundo ele, portanto, encarcerar não é a solução. “Quando eclode o fenômeno criminoso, todas as instâncias sociais já falharam. Já falhou a família, a escola, a igreja, etc. A polícia entra em campo, prende e essa ação vai desaguar no sistema penitenciário. Então há uma questão social. Não podemos reduzir assim a questão da violência. Não é só questão policial, de justiça ou de presídio. É um fenômeno muito mais complexo, multicausal”, defendeu.

Contra a banalização das prisões

Leitão avaliou que, para chegar a “padrões suportáveis” de criminalidade, é necessária uma política de Estado que parta da premissa de que se trata de um fenômeno causado por muitos fatores. De acordo com ele, também é preciso “uma tomada de consciência de todos os atores do sistema de Justiça de que a prisão deve ficar restrita a situações absolutamente necessárias”.

Para o ex-secretário, há, hoje, uma banalização da prisão. “Encarceramento não é solução, é preciso adotar meios alternativos à prisão, deixar o aprisionamento para situação absolutamente necessárias, superar a fase da banalização das prisões provisórias”, pregou.

Cerca de que 40% dos detentos no país são presos provisórios, ou seja, ainda aguardam julgamento. “(…) E, quando é julgada, boa parte é absolvida, boa parte faz jus ao regime aberto, boa parte faz jus a alguma pena alternativa. Ou seja, chega-se a uma situação em que a pessoa quer ser condenada para ser solta, o que é um contrassenso”, criticou.

“Para combater verdadeiramente a criminalidade, precisamos ter prisões qualificadas e, não, nossos cárceres cheios de meninos, jovens, presos por pequenas infrações, soldados do tráfico. É toda uma lógica que tem levado a esse descalabro da situação penitenciária do país”, completou.

No ano passado, o Supremo Tribunal Federal decidiu rever uma jurisprudência ao entender que um réu já poderia ser preso após a condenação em segunda instância, em vez de aguardar em liberdade o resultado da última instância. Para Leitão, a decisão deverá ter resultados dramáticos. “Isso pode impactar em 40% a mais [de detentos] no sistema prisional. Aí vai ser uma tragédia. Mais uma”, lamentou.

Prisão não pode ser negócio

Os recentes massacres em presídios de Manaus e Boa Vista chamaram a atenção para o caos do sistema prisional brasileiro. Também levantaram questionamentos sobre um processo crescente de privatização das unidades prisionais. Hélio Leitão é “radicalmente contra” a entrega dos presídios à iniciativa privada.

“Antes de mais nada, sou contra, por um imperativo ético. Entendo que a gerência da privação de liberdade é uma reserva ética do Estado. O particular fazer disso um negócio me parece que atenta contra uma reserva ética que o Estado deve observar. Fora isso, esse sistema é caríssimo. Países que adotaram esse sistema, já estão revendo isso. A gente tem visto também, nos sistemas privatizados, altos índices de violência e de corrupção. Portanto, é um sistema a que me oponho frontalmente”, disse.

Sistema não ressocializa

Dados do Ministério da Justiça mostram que 60% dos detentos brasileiros são negros, a maioria jovens, e 75% deles só têm até o ensino fundamental completo. “Aí você vê o caráter seletivo do direito penal, que volta suas baterias, historicamente, contra o andar de baixo, os mais pobres e desassistidos, sem proteção social”, opinou Leitão.

Para o ex-secretário, o perfil dos presos escancara o fato de que o problema não se resume à situação das penitenciárias. “São pessoas que, se você vai ouvir a história, você já acha que não poderia dar em outra coisa. Porque têm um pai preso, uma mãe dependente química, etc.”, colocou, expondo uma faceta do problema social.

“E esse sujeito vai preso e vai para o sistema prisional. Chegando lá, fala-se em ressocializar. Como é que eu, no sistema prisional – e fui gestor no sistema prisional no Ceará por dois anos – vou dar a essas pessoas tudo o que a sociedade negou, no fim da linha, depois que já construíram sua sociabilidade num meio violento, truculento, de desesperança e desencanto? Não há como, fala sério. O sistema não ressocializa nada.”

De acordo com ele, no tempo que passou à frente da pasta da Justiça no Ceará, sua atuação foi no sentido de tentar humanizar a privação de liberdade tanto quanto possível. “Tornar mais humana, mais digna, se é que podemos falar assim, porque privação de liberdade, na minha concepção, contraria a própria essência da humanidade. O que nos distingue dos animais? Pensar e o discurso da própria vontade. A gente é livre. No momento em que eu te confino, eu estou negando uma parcela importante da tua humanidade. A pena de privação da liberdade é inumana”, defendeu.

Guerra às drogas equivocada

O tráfico de drogas é o crime que mais leva à prisão atualmente no Brasil. Para Leitão, contudo, a atual política de guerra às drogas é equivocada e insuficiente. “Essa política do war on drugs, que começou com Richard Nixon nos Estados Unidos, provou sua insuficiência. Tem que partir para outras alternativas. Creio que o Brasil está caminhando para isso. O Supremo deve declarar a inconstitucionalidade do artigo 28 da lei que dispõe sobre drogas [que criminaliza porte e uso pessoais de entorpecentes no Brasil]. É um passo, uma tendência mundial”, disse.

Segundo ele, a atual forma de combate às drogas tem enchido os cárceres de jovens que, em regra, são “peças de reposição” do tráfico. “A prisão dessas pessoas não exerce nenhum reflexo na questão do tráfico de drogas. São soldados do tráfico, peças de reposição que são presas hoje e amanhã são repostas por outras, como soldados do tráfico”, analisou.

Solidão e abandono das mulheres presas

O advogado citou ainda que outro grande problema do sistema prisional é tratar de forma igual os desiguais. “Trata o criminoso eventual, episódico, o pequeno infrator, enfim, trata todos com privação de liberdade. Isso é um grande drama”, classificou.

De acordo com ele, outro exemplo é o caso das mulheres presas. Leitão ressaltou que, no Ceará, enquanto secretário, procurou dispensar a elas um tratamento que respeitasse suas especificidades. “Nossa unidade prisional feminina, considerado o contexto nacional, é boa. Temos excedente prisional? Temos. Mas, em 2014, o Ipea apontou que o melhor tratamento dispensado à presa gestante, por exemplo, é aqui no Ceará. Temos na unidade prisional ultrassom, banco de leite, estímulo à amamentação, etc.”, enumerou.

Por outro lado, ao falar sobre o tema, o ex-secretário também revelou os números de uma realidade devastadora para as mulheres. Segundo ele, 87% das presas do Ceará não recebem visitas.

“Aqui, temos as cadeias públicas do interior. A maioria não tem como acomodar mulheres, são precárias. As mulheres vêm para o presídio da região metropolitana. Ficam longe da família. 87% das mulheres não recebem visita. Entre os homens, 50% não recebem. Isso ocorre em parte pela distância, em parte porque 60% delas estão presas por alguma acusação relacionada a tráfico e foram levadas a esta situação pelos maridos, namorados, companheiros. E esses ou estão presos, temem ser presos ou cortam o vínculo. Isso é dramático”, reconheceu.

Inação do governo

Diante da ebulição da crise do sistema prisional, neste início de ano, o governo do presidente Michel Temer anunciou o gasto de R$ 430 milhões para construir mais presídios e melhorar a segurança das unidades que já existem. Assim como muitos outros especialistas, Leitão avaliou que a medida não vai solucionar o problema.

“Primeiro que essas unidades levam anos para serem construídas, e temos uma situação mais imediata para ser administrada. Não estou vendo manifestação do governo federal em relação a essas questões. Descontingenciou o Fundo Penitenciário. Mas, entre fazer isso e ter uma unidade penitenciária rodando, vai quanto tempo? E o drama está aí. O que precisamos é de medidas legislativas desencarceradoras. Mas fazer um desencarceramento responsável. Não é soltar todo mundo da noite para o dia, falo de algo responsável”, defendeu.