O milagre do cinema brasileiro 

A troca de comando na Ancine e na Spcine põe em xeque o futuro do setor que cresce sem parar. Graças à Ancine, o cinema chegou ao Norte e ao Nordeste do Brasil, e a Spcine levou a arte à periferia da metrópole paulista, Resta saber se o crescimento do setor audiovisual resistirá ao atual tsunami destrutivo das políticas públicas. 

O milagre do cinema brasileiro - Leo Pinheiro/Valor/FolhaPress

O mercado audiovisual brasileiro cresce em ritmo chinês. O setor foi responsável por injetar 24,5 bilhões de reais na economia em 2014. Em 2007, girava em torno de 8,7 bilhões de reais. O crescimento é na casa dos dois dígitos, enquanto a economia nacional oscilou de forma bipolar no período. Juntas, as atividades econômicas ligadas ao audiovisual têm o dobro do tamanho da indústria têxtil e um terço maior que o das gigantes farmacêuticas (perdem apenas para telecomunicações, tecnologia da informação e montadoras).

No ano passado, movimentaram 1,74 bilhão de dólares entre importações e exportações. E é uma expansão ancorada no aumento de público. Os brasileiros estão indo cada vez mais ao cinema e assistindo a filmes e séries televisivas nacionais. As bilheterias não param. Mais de 200 salas de cinema são inauguradas por ano e o número de ingressos vendidos quase dobrou entre 2002 e 2015, passando de 90 milhões para 173 milhões anuais. O País saltou de 29 longas-metragens lançados em 2002 para 139 neste ano.

Esse cenário, que contrasta com o da indústria local em geral, mostra um dos setores da economia criativa mais bem-sucedidos nos governos petistas, o do audiovisual. Nesta semana, dois dos seus produtos, os filmes pernambucanos Boi Neon (de Gabriel Mascaro) e Aquarius (de Kleber Mendonça Filho) foram eleitos entre os dez melhores do ano no mundo pelo jornal The New York Times. Diversas megaproduções passaram dos 5 milhões de espectadores, e uma, Os 10 Mandamentos, atingiu o recorde histórico de 14 milhões de espectadores, ainda que com evidentes sinais de ingressos comprados para inflar a bilheteria.

O avanço tornou-se mais acelerado após um diagnóstico de gargalos, segundo a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Após a primeira onda da chamada “retomada”, entre 2005 e 2008, a oferta de cinema estava reprimida. Havia poucas salas, baixa expansão e estagnação das bilheterias. A solução foi intensificar a expansão de salas no Norte e Nordeste, público historicamente alijado do acesso à produção cinematográfica. Nessas duas regiões, houve um crescimento de 1.018 salas entre 2011 e 2016 (mais de 60% delas abertas em cidades do interior). Ampliar o acesso leva mais pessoas ao cinema. Um levantamento parcial deste ano indica que já passam de 186 milhões de bilhetes vendidos, um crescimento de 7,5% sobre 2015.

A Lei da TV Paga, a de número 12.485, de 2011, foi a grande responsável por incentivar a produção e circulação de conteúdos audiovisuais brasileiros, algo que ninguém ousa desmentir. Primeiro marco regulatório, a lei força a redução do preço da tevê por assinatura e obriga a incluir na programação conteúdos nacionais e independentes inéditos (uma demanda de mais de mil horas anuais). O emprego de novas tecnologias, cada vez mais acessíveis, também favoreceu o setor. A participação do conteúdo brasileiro independente ampliou-se de forma expressiva e está presente em mais de cem canais. Hoje, cerca de 70 milhões de brasileiros dispõem do serviço de tevê por assinatura. Pela primeira vez, a tevê paga, que inclui programadoras e operadoras de televisão por assinatura, tornou-se maior que a tevê aberta.

Essa é, entretanto, uma área que vai encarar um epílogo nos próximos meses. Sairão de cena os diretores de duas das principais agências de fomento surgidas: a nacional, a agora gigante Ancine, e a paulistana Spcine, criada durante a gestão de Fernando Haddad (PT). A Ancine é comandada há dez anos por Manoel Rangel, militante comunista do PCdoB que sobreviveu até a períodos de instabilidade política do Ministério da Cultura, como a era de Ana de Hollanda. Em São Paulo, o protagonista de tal risorgimento foi a criação da Spcine.

À frente da Spcine, Alfredo Manevy conseguiu uma proeza adicional. Expandiu o setor exibidor público em direção à periferia, dotando as escolas-modelo da prefeitura (os Centros Educacionais Unificados – CEUs) de cinemas moderníssimos e tão confortáveis quanto os de um shopping center. Isso trouxe números impressionantes para o setor cultural e criou um novo paradigma.

Em dois anos, a renda e o público das produções paulistas dobraram. As 20 salas de cinema projetaram 822 filmes gratuitos só em outubro, atraindo 44.676 espectadores. Com foco nas periferias e ingressos gratuitos, o circuito Spcine é o sexto maior exibidor da capital paulista e disputa palmo a palmo com grandes salas de cinema como Espaço Itaú, Cinépolis e Playarte.

A Spcine eliminou uma (má) fama que o setor audiovisual abominava, a de que não se podia filmar em São Paulo por conta da burocracia. Um produtor tinha de passar por até nove balcões de secretarias e órgãos municipais se quisesse gravar algumas cenas de um comercial. Hoje, ele só precisa ir até a Spcine e tudo é aprovado em tempo recorde. Isso devolveu as imagens da cidade mais rica para todo o País. Foram 1.421 locações de maio a outubro deste ano. Nesse período, a atividade audiovisual movimentou 176,9 milhões de reais em publicidade, programas de tevê e produção de curtas, documentários e longas-metragens.

“Fizemos microrrevoluções em política audiovisual, mas são abalos sistêmicos que podem reverberar nacionalmente”, diz Manevy. “Ninguém tinha a coragem de fazer e dizer que sala de cinema é importante, periferia é importante e é um absurdo que o Brasil tenha 90% dos municípios sem salas e São Paulo tenha 30% das classes C, D e E sem nunca ter ido ao cinema.” Estados e municípios brasileiros, e até outros países, têm procurado a Spcine para importar esse modelo. A questão é se os modelos da Ancine e da Spcine resistirão ao atual tsunami destrutivo das políticas públicas.