Aqui jaz o BNDES

O banco sofre a politização, dispensa 100 bi por ordem superior, irrita a indústria e só quer privatizar.

Por André Barrocal

Maria Silvia, do BNDES

Em 1952, nasceram o presidente da Rússia, Vladimir Putin, o brasileiro tricampeão de Fórmula 1 Nelson Piquet e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, então sem o “Social”. Os laços natalícios com personalidades destacadas da cena internacional fazem jus à trajetória da instituição. O BNDES tornou-se no século XXI um dos maiores bancos de fomento do mundo.

Em 2001, desembolsava 25 bilhões de reais e, em 2013, atingia o recorde de 190 bilhões, sete vezes o valor pago de Bolsa Família naquele ano. Hoje, a situação é outra, similar àquela da Petrobras, até há pouco aspirante a figurar entre as dez maiores companhias planetárias. Uma semelhança com toques de Operação Lava Jato, inclusive.

Comandado por uma diretoria de perfil financista, Maria Silvia Bastos Marques à frente, o BNDES sofre uma reviravolta. Por conta própria e ordem do governo, não só por falta de demanda, a instituição se retrai, a fim de dar espaço no mercado de crédito aos competidores particulares.

A pedido de Brasília e para desespero da indústria, topa abrir mão, mesmo com o País em recessão, de 100 bilhões de reais, com a devolução prematura ao Tesouro Nacional de recursos injetados no passado.

A exemplo dos anos 1990, volta as atenções ao repasse de bens públicos ao setor privado, com planos de financiar concessões e privatizações, a começar por uma área, o saneamento, em que a tendência global é reestatizar. Ataques ao banco são respondidos com silêncio pela direção.

O crédito para construtoras metidas na Lava Jato pinga a conta-gotas. Ou é simplesmente negado, como no caso das obras do ramo logístico da Odebrecht, sócia do recentemente esvaziado canteiro da Linha 6 do metrô paulista e capenga para tocar a ampliação do aeroporto do Galeão. A empreiteira, como se sabe, está prestes a selar um acordo de delação na Lava Jato.

Os projetos de todas as construtoras no exterior também não recebem mais verbas, passam por uma revisão no BNDES e despertam cobiça especial por parte do PSDB, da OAB e de auditores e procuradores de tribunais de contas e da força-tarefa da Lava Jato. Será que surgiria daí algo capaz de uso como prova contra o ex-presidente Lula?

Os 100 bilhões de reais que o Tesouro quer de volta entraram no BNDES graças a capitalizações feitas na instituição durante os governos do PT, após a crise financeira global de 2008, mais de 500 bilhões de reais no total. Foi essa injeção que levou à explosão de empréstimos do banco.

Logo ao assumir, em maio, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, resolveu retomar uma fatia, ressarcimento que ainda levaria anos. Pretende pagar parte da dívida pública até 2018 e acredita que os recursos estão parados no BNDES à toa. De janeiro a setembro, os desembolsos da instituição caíram 34%.

A indústria chia. A Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) chamou Maria Silvia para conversar. No dia da reunião, 18 de outubro, seu presidente, Paulo Skaf, um dos líderes empresariais do impeachment, entregou-lhe um documento reivindicatório.

Urgência na liberação de crédito para capital de giro, rolagem de dívidas de pequenas empresas e, item número 1, a manutenção dos 100 bilhões nos cofres do BNDES, entre outras coisas. Quem também tem defendido segurar o dinheiro no banco é o presidente da Associação dos Fabricantes de Máquinas, João Marchesan, para quem é um erro descapitalizar um dos raros instrumentos de financiamento a juro baixo e prazo longo no País.

O reequilíbrio das contas públicas não deveria ser buscado com o sacrifício do banco nacional de desenvolvimento, na visão do economista José Roberto Afonso, do Ibre/FGV. Seria “temerário” esvaziar o caixa em meio a uma recessão e com o banco prestes a botar dinheiro em uma leva de concessões e privatizações.

Mais: exportações são uma saída contra a queda do mercado interno e deveriam ser mais apoiadas. “Financiar exportações e investimentos em infraestrutura exige não apenas um volume expressivo de recursos, como também taxas e prazos compatíveis com os praticados no exterior, ou seja, baratos e longos”, afirma. “É uma contradição cobrar que o BNDES assuma tais funções e ao mesmo tempo lhe tirar musculatura.”

Professor na faculdade Hobart and William Smith Colleges, dos Estados Unidos, o economista brasileiro Felipe Rezende estuda investimentos em infraestrutura pelo mundo e acaba de concluir: 70% deles nascem de aportes públicos e de bancos de desenvolvimento, uma constatação que não escapa ao Fundo Monetário Internacional.

Na Ásia, diz, acaba de surgir o Banco de Investimento em Infraestrutura (Aiib, em inglês), espécie de filhote do CDB, banco chinês de fomento criado nos anos 1990 que hoje é o maior do planeta no ramo, com mais de 1 trilhão de dólares em carteira. “Estamos na contramão do mundo”, afirma Rezende.

Afonso diz não haver liquidez excessiva ou anômala no BNDES, pelo contrário. Seu índice (12%) está abaixo da média dos grandes bancos nacionais (30%). Desidratá-lo agora poderia trazer problemas no futuro, para o misterioso momento em que se espera que a economia decole.

Um dos idealizadores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), Afonso apimenta o debate sobre os 100 bilhões ao lembrar que o artigo 37 da lei proíbe uma empresa controlada pelo governo de emprestar ou antecipar recursos para o próprio governo. Uma “pedalada fiscal”.

No governo, sobram dúvidas quanto à legalidade da operação. Por isso há uma articulação política em busca de um atestado de legalidade junto ao Tribunal de Contas da União, o mesmo que criminalizou a “pedalada”.

O tema entrou na pauta do TCU em 26 de outubro. O relator, Benjamin Zymler, deu aval. Seu colega Vital do Rêgo pediu, porém, para adiar a votação. Estava no exterior quando o parecer foi distribuído e não pôde examiná-lo com calma. Ex-senador, está na Corte graças ao presidente do Senado, Renan Calheiros, razão para suspeitar de suas motivações.

A oposição ao governo no Senado mandou ao TCU uma representação com pedido de suspensão da operação dos 100 bilhões, por “patente violação” da LRF. De quebra, solicita providências contra Maria Silvia. Consta que a banqueira anda inquieta.

No interrompido julgamento, Zymler comentou que o BNDES pratica “agiotagem” com o dinheiro parado em caixa, um meio, segundo ele, de garantir aos funcionários polpudas participações nos lucros.

Em julho, quando a Corte encaminhou ao Ministério Público denúncias de irregularidades encontradas no fundo de pensão do BNDES, o ministro Walton Alencar afirmara que o banco pagava “remuneração de um potentado de produtor de petróleo”. (O contracheque de Alencar pago pelo contribuinte naquele mês foi de 44,5 mil reais. Seria o TCU um emirado árabe?)

Os petardos disparados contra o BNDES, como os do TCU, não são novidade, inusitado é o banco ser exposto por sua própria direção e pelo governo, com ações ou omissões. Nenhum dos dois comentários dos ministros da corte de contas mereceu resposta de Maria Silvia e seus diretores.

Idem para uma dura propaganda publicada pelo governo em jornais, em 5 de outubro, intitulada “Vamos tirar o Brasil do vermelho para voltar a crescer”. No rosário desfiado para mostrar a agrura financeira nacional, um atingia o BNDES, sutilmente culpado de emprestar 8,3 bilhões de dólares com juros subsidiados para obras no exterior, enquanto “o Brasil permanece com infraestrutura precária”.

O ataque aborreceu os funcionários, muitos dos quais já andam incomodados com a atual gestão, aos quais Maria Silvia escreveu uma mensagem no dia seguinte em defesa do governo. “O objetivo do anúncio foi expor a grave situação fiscal encontrada pelo atual governo – e não atacar o BNDES.”

Para o economista Thiago Mitidieri, presidente da Afbndes, a associação dos funcionários do banco, os diversos ataques mostram que a instituição “tem sido usada numa disputa política”. Uma disputa alimentada por ideologia, já que o governo e a atual diretoria pensam que o BNDES deve cumprir outro papel, mais modesto e sem concorrer com as privadas, e pelo interesse eleitoral de encontrar no banco provas capazes de incriminar Lula. “O BNDES é um instrumento estratégico para o desenvolvimento do Brasil. Para ele fazer sentido, precisa de planejamento e de um projeto maior de desenvolvimento, não dessa politização que vemos”, diz.

A politização ficou evidente logo após o recente anúncio do BNDES de mudanças nas regras de financiamento às exportações de serviços de engenharia e construção. Já está em curso um pente-fino em 47 projetos, um total de 13,5 bilhões de dólares, dos quais 25 deles já possuem contratos assinados e já receberam 2,3 bilhões de dólares.

As empresas atingidas pela revisão são empreiteiras metidas na Lava Jato. Algumas obras delas no exterior, como em Angola e Moçambique, estão sob escrutínio da força-tarefa em Curitiba. No BNDES, há quem veja nessa revisão uma brecha para acertar Lula, contra o qual até aqui não há provas de crimes.

Se a revisão encontrar irregularidade em algum contrato, talvez sirva para enquadrar Lula na teoria do “domínio do fato” aplicada ao ex-ministro José Dirceu no “mensalão” petista em 2012.

Recorde-se: Dirceu foi condenado, pois a Justiça entendeu ter havido desvio de verba pública de um fundo do qual o Banco do Brasil era acionista, o Visanet. O dinheiro teria sido usado para comprar apoio político à gestão Lula e, como Dirceu era o cérebro do governo, “tinha” de saber que havia corrupção bancada pela Visanet.

Uma raciocínio imortalizado pela ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber no julgamento: “Não tenho prova cabal contra Dirceu, mas vou condená-lo porque a literatura me permite”. Detalhe: o juiz Sergio Moro, da Lava Jato, era assistente dela na época.

A revisão anunciada em 11 de outubro pelo BNDES animou muita gente. O senador capixaba Ricardo Ferraço, do PSDB, defendeu chamar a presidente do banco para dar mais informações a respeito, inclusive porque os atingidos são “empresas investigadas pela Operação Lava Jato”. Em 19 de outubro, uma das comissões do Senado, a de Infraestrutura, aprovou a realização de uma audiência pública com Maria Silvia. Falta marcar a data.

Dois dias depois, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Carlos Lamachia, e três entidades representativas dos auditores do TCU e de procuradores atuantes em cortes de contas escreveram a Maria Silvia. Com base na Lei de Acesso à Informação, pediram que “torne públicos a toda a sociedade os dados relativos a financiamentos externos, operações internas e parcerias com instituições estrangeiras realizados nos últimos dez anos”.

Uma auditoria prévia do TCU identificou 50 bilhões de reais do BNDES para obras de empreiteiras no exterior entre 2005 e 2014.

A disposição da atual diretoria para deixar o banco exposto talvez se explique pelo perfil do grupo que ascendeu ao poder juntamente com o governo Temer. Além de Maria Silvia, privatista empedernida, a cúpula conta hoje com egressos do mercado financeiro carioca, como Eliane Lustosa, diretora de Mercado de Capitais, e Claudio Coutinho, da Área de Crédito.

O diretor de Planejamento, Vinicius Carrasco, da PUC-Rio, reduto financista, é um caso peculiar. Antes de entrar no banco, adorava difamá-lo em blogs e em artigos. Acredita que só serve para atrapalhar as instituições privadas. Um exemplo dessas perorações é o artigo “Abrindo a caixa-preta do BNDES”, publicado em 2015 em O Globo em coautoria com Arminio Fraga.

Para o economista e consultor Antonio Corrêa de Lacerda, de outra PUC, a paulista, o predomínio de visão financista no BNDES prejudica a economia e o setor produtivo. O sistema bancário é “anormal” no País, diz, acostumou-se a emprestar com juros altos demais e prazos de menos.

Uma postura incompatível com investimentos produtivos e em infraestrutura, que demoram para maturar e proporcionam lucros menores do que aplicações financeiras. “O Brasil precisa de uma reforma do mercado de capitais, para ampliar o crédito privado e reduzir juros e spreads. O BNDES poderia ter um papel nisso. Mas isso não está nos planos da atual diretoria”, afirma.

O que está nos planos é privatizar, como nos anos 1990. Com apoio do governo, o BNDES elegeu o setor de saneamento básico como prioridade. Decidiu fazer parcerias com estados e prefeituras, os controladores dos serviços de água e esgoto, para montar projetos e mapear interessados, além de oferecer financiamento, claro.

O experimento possui três cobaias, as companhias estaduais do Rio (Cedae), de Rondônia (Caerd) e do Pará (Cosanpa). Segundo o banco, é necessário expandir a rede saneadora nacional. Além disso, aportes no setor gerariam empregos à base de 20 vagas a cada 1 milhão de reais investidos e possuiriam efeitos multiplicadores na economia.

O País precisa realmente ampliar os serviços. Das residências brasileiras, 43% ainda carecem de esgoto e 14%, de água, informa a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Mas será que a privatização é o caminho? Não é, segundo o Instituto Transnacional, uma rede mundial de pesquisadores sediada nos Estados Unidos.

Seus estudos apontam uma tendência global de reestatizar o setor. De 2000 a 2015, foram 235 remunicipalizações em 37 países, a maioria nos EUA e na França. Uma curva que se acentuou no período mais recente. De 2010 a 2015, houve o dobro de privatizações desfeitas e de concessões não-renovadas, na comparação com a década de 2000 a 2010. Há casos similares inclusive no Brasil.

O motivo dessa tendência? Um brasileiro explica, Léo Heller, mestre em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos e desde 2014 relator especial das Nações Unidas para direito humano a água e esgoto.

As companhias privadas, segundo ele, não conseguem incluir os mais pobres, ou seja, os mais carentes. Além disso, são pouco afeitas ao controle público, por não terem concorrentes. Por essa última razão, é difícil o poder estatal garantir a obediência às regras contratuais, impedir aumentos abusivos das tarifas e punir as empresas. “Privatizar o saneamento não é uma panacéia”, diz Heller, a destacar conclusão similar pelo FMI e o Banco Mundial, entusiastas das privatizações do setor nos anos 1980 e 1990.

Há até um caso nativo a ilustrar os problemas apontados por Heller. Por causa de uma crise de abastecimento de água, a prefeitura de Itu, interior paulista, interveio em 2015 na concessionária privada que administrava o serviço desde 2007 e em junho deste ano rompeu o contrato.

A desestatização da Cedae, empresa na lista do experimento inicial do BNDES, desperta resistência no PSDB, partido das privatizações nos anos 1990. Para o líder da bancada na Assembleia Legislativa do Rio, deputado Luiz Paulo, a Cedae tem finanças e gestão saudável.

Em 2015, lucrou 250 milhões de reais. A quantia ventilada como possível de o Rio arrecadar com o repasse da estatal à iniciativa privada por até 30 anos, 1 bilhão de reais, é ínfima perto dos ativos da Cedae (13 bilhões de reais), de seu patrimônio líquido (5 bilhões) e do déficit estadual em 2016 e 2017 (25 bilhões).

Além disso, diz Luiz Paulo, a privatização fatiada, como defende o BNDES, pode prejudicar a população pobre do interior. “O BNDES quer vender o filé mignon e que a gente fique com o osso. Essa proposta não é séria, foi feita em 15, 30 dias por uma diretoria que não é do setor”, diz.

A propósito: enquanto tudo isso se passa, o banco negocia com o controverso Naji Nahas uma solução para a bilionária dívida da Oi.