"Foi um erro acreditar que a Operação Mãos Limpas era a salvação"

Ex-juiz italiano Gherardo Colombo afirma: 'não alimentem falsas ilusões: nenhuma investigação judicial pode acabar por si só com a corrupção.'

Por Darío Pignotti, direto da Itália

Gherardo Colombo

Chovia em Milão quando o ex-juiz e procurador Gherardo Colombo, considerado por muitos como o “intelectual” do grupo de promotores da famosa Operação Mãos Limpas, recebeu a reportagem da Carta Maior em seu escritório da Rua Giuseppe Parini, num ambiente dominado por livros e papéis colocados desordenadamente sobre uma escrivaninha – sob a qual a cadela Luce nos observava educadamente.

O influente semanário local L´Expresso publicou recentemente um extenso artigo sobre o que definiu como “a versão tropical da Mãos Limpas”, estabelecendo alguns paralelos entre o processo judicial italiano dos Anos 90 e o que se impulsa atualmente a partir do Tribunal Federal de Curitiba a respeito dos esquemas de corrupção na Petrobras.

“Sei que alguns meios costumam comparar esses dois casos, mas eu prefiro não fazê-lo, não tenho maiores informações sobre o que está acontecendo no Brasil. Tampouco vou fazer recomendações sobre o que os brasileiros devem fazer. O único que posso dizer àqueles que consideram a Operação Lava Jato uma reprodução da Mãos Limpas é que não alimentem falsas ilusões: nenhuma investigação judicial pode acabar por si só com a corrupção, esse combate requer uma ação que envolva vários setores”.

“Embora os juízes e procuradores façam um esforço para erradicar a corrupção, essa é uma tarefa impossível, é um erro considerá-los salvadores da pátria”, acredita Colombo, que ostenta um currículo judicial extraordinário.

Nos Anos 80, ele investigou a Logia P2, uma organização maçônica vinculada às finanças do Vaticano – tema tratado no filme O Poderoso Chefão III, de Francis Ford Coppola. Mais tarde, foi o cérebro do grupo de promotores de Milão que desmontou a teia de subornos entre empresas e praticamente todos os partidos políticos, principalmente os então hegemônicos Partido Democrata Cristão e Partido Socialista.

Na década passada, integrou o que seria o Supremo Tribunal Federal italiano, mas renunciou ao cargo para se dedicar a conferências a estudantes e escrever livros. Sua mais recente publicação, lançada no ano passado, tem o título de “Carta a um filho da Mãos Limpas”.

“Lamentavelmente, a corrupção na Itália hoje não diminuiu, em comparação ao quadro que tínhamos no começo dos Anos 90. A herança da Operação Mãos Limpas não foi satisfatória, não esteve à altura das expectativas ela despertou, e a maioria dos acusados hoje estão em liberdade”.

Berlusconi e a pós-política

– Para alguns, a Operação Mãos Limpas foi determinante para a implosão do sistema político surgido depois da Segunda Guerra Mundial, e facilitou o surgimento de Silvio Berlusconi, eleito primeiro-ministro em 1994.

– Isso é o que se costuma dizer, mas considero uma afirmação equivocada. Berlusconi venceu as eleições de 1994, depois perdeu a de 1996, e logo venceu as de 2001, para perder outra vez mais tarde. Sua sorte eleitoral não foi consequência do nosso trabalho. O fato é que nós tivemos que enfrentar vários tipos de acusações, os que disseram que a operação permitiu a ascensão de Berlusconi, enquanto o próprio Berlusconi reclamava que nós favorecíamos o Partido Comunista e que éramos promotores “vermelhos”. Do meu ponto de vista, a crise dos partidos tradicionais ocorrida Anos 90 tem outra explicação: a queda do muro de Berlim, em 1989. Pouco depois disso, o Partido Comunista mudou de nome uma vez (para Partido Democrático de Esquerda), e depois mudou de novo (para o atual Partido Democrático, que está hoje no governo, através de Mateo Renzi). Na década de 90, O Partido Democrata Cristão desapareceu, sendo que era a principal força política depois da guerra. E por que desapareceu? Foi por causa da Mãos Limpas? Não. Os democratas cristão perderam espaço porque uma das razões de sua existência era conter o comunismo – o PC italiano era o mais poderoso do Ocidente e estava pronto para chegar ao poder pela via eleitoral –, e com o fim da União Soviética essa motivação acabou.

– Podem surgir novos Berlusconis?

– Essa possibilidade nunca pode ser descartada, ainda mais quando vemos como cresce atualmente o desencanto da opinião pública com os políticos, como se está vendo agora na Itália.

– Proponho falar sobre a América Latina, o presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o brasileiro Roberto Caldas, lamentou a deterioração institucional na região após os golpes “institucionais” ocorridos em Honduras (2009) e no Paraguai (2012). O próprio Caldas viajou a Brasília antes da destituição da presidenta Dilma Rousseff e expressou sua preocupação pela situação institucional brasileira. Que informações você tem a respeito?

– Tenho poucos elementos para poder falar sobre a América Latina, mas soube de alguns problemas.

– Por exemplo, sobre a denúncia dos advogados de Lula na ONU?

– Tampouco sabia disso, que ele havia recorrido a uma instância supranacional.

– Apelar a organismos internacionais ameaça a atuação dos juízes?

– Não me parece que isso seja negativo, ao contrário, os juízes, assim como os políticos e os governantes, são e devem ser passíveis de controles. Aqui nós temos a Corte Europeia de Direitos Humanos, que cumpre uma função importante nesse sentido, ao revisar as causas judiciais que merecem questionamentos em alguns países. Os juízes não são infalíveis. Nós já investigamos juízes e descobrimos casos nos quais alguns cometeram ações dolosas.

– Como devem proceder os juízes quando o suspeito é um político?

– Os juízes devem trabalhar sobre as denúncias de delitos. Durante o processo da Operação Mãos Limpas, nós investigamos empresários, membros do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Houve mais de mil detenções preventivas. No caso de congressistas suspeitos de corrupção, o Parlamento frequentemente negava a autorização para que os parlamentares fossem detidos. Ainda assim, nós investigamos todas as denúncias que chegavam. Na Itália, é obrigatório investigar toda noticia de delito. Se eu leio no jornal que você matou a sua esposa, devo obrigatoriamente investigar. Se recebo uma carta onde se diz que um parlamentar recebeu suborno de 10 milhões, o que eu faço? Tenho que investigar. Creio que o magistrado teme que investigar, e inclusive ser obstinado, em determinados casos, até chegar ao fundo da verdade. Mas tenho cuidado em ressaltar isso, porque também há juízes que exageram em sua obstinação e produzem o efeito contrário ao desejado inicialmente.

– A obstinação de um juiz é uma virtude ou um defeito?

– Depende do caso Quando penso nos juízes (Paolo) Borcellino e (Giovanne) Falcone, que estavam obstinados em investigar a atuação da máfia, vejo que sua determinação era totalmente justificada, e por isso ambos foram assassinados – em 1992, na cidade de Palermo, feudo da Cosa Nostra. Mas, em outros casos, a obstinação pode ser algo inconveniente. Quando se torna obsessão de um juiz a respeito de um investigado em especial, isso pode ser negativo, e poderia ser resolvido através de uma instância superior, talvez na Corte Suprema, através de apelações. Quando um magistrado teima em ver aquilo que não existe, quando essa obstinação em investigar a uma persona sem ter provas ou elementos concretos, esse magistrado acaba traindo sua profissão. Por isso, o juiz deve ser, antes de tudo, independente e imparcial, e deve cumprir o que indica o código de procedimento, que deve ser muito claro sobre os limites às detenções preventivas, as restrições que temos para privar alguém de sua liberdade. No caso da delação premiada, quando uma pessoa que cometeu um delito colabora com a investigação, quando essa pessoa não constitui uma ameaça de eliminação de provas, quando essa pessoa não dá indícios de que pode fugir, ela pode não permanecer presa. Mas isso deve ser determinado segundo o estabelecido pelo ordenamento jurídico.

A corrupção como espetáculo midiático

Após abandonar sua cadeira na Corte Suprema, Gherardo Colombo foi eleito membro do colegiado que orienta editorialmente a RAI, o poderoso sistema público de rádio e televisão italiano.

– Você já deu entrevistas sobre a relação entre os meios de comunicação, a Justiça e o combate à corrupção, alertando sobre o perigo de que os meios se transformem em tribunal e condenem antes que os magistrados.

– Sim, analisei esse tema num programa televisivo (“Oito e Meio”, do canal italiano TV 7). Eu fui membro do Conselho da RAI durante três anos, entre 2012 e 2015, uma experiência que me permite dizer que os meios têm uma importância extraordinária quando informam sobre os temas judiciais, e tiveram um papel destacado na enorme cobertura da Operação Mãos Limpas. Às vezes, a imprensa trata a informação sobre casos de corrupção de forma imparcial, outras vezes de forma seletiva. Do meu ponto de vista, os meios são bastante seletivos, porque estão interessados em causar comoção no público, e vender notícias. Esta e uma parte do problema. A outra parte é que o público demanda um tipo de notícia de grande impacto, e esse público acredita nas notícias de grande impacto.

– Você pode ampliar esse conceito?

– O público italiano, e talvez isto também aconteça no Brasil, se interessa em saber dos problemas de corrupção, e ao mesmo ansiava pelo surgimento de alguém que milagrosamente resolvesse todos os problemas de corrupção do país, uma espécie de salvador da pátria. Algumas pessoas queriam que a Mãos Limpas fosse a salvação da pátria, e outras pessoas pensaram que esse salvador da pátria era Silvio Berlusconi. Teve gente que viu em nós, os procuradores da Mãos Limpas, essa figura que solucionaria os problemas do país, mas nós estávamos somente fazendo o nosso trabalho. No fim das contas, vemos que nem Berlusconi nem a Mãos Limpas puderam salvar a Itália, e com o tempo a opinião pública foi se perdendo o interesse sobre a Operação Mãos Limpas.

– Você fala de casos de corrupção na política, nas empresas e até na Justiça. E nos meios de comunicação?

– No começo, todos os canais de televisão davam uma intensa cobertura à Operação Mãos Limpas, gerando um clima especial na opinião pública. Mas com o passar dos anos esses mesmos meios começaram a mudar de opinião e a tomar distância do tema, de uma forma… não sei dizer, um pouco estranha. Não posso afirmar nem descartar por completo que exista corrupção nos meios de comunicação. É um tema complexo. A cultura da corrupção está disseminada por todos os lados.