Injustiça fiscal e sonegação sustentam riqueza de uma minoria

“É preciso tirar o Brasil do vermelho”, “é preciso um ajuste fiscal”, “as despesas cresceram demais”, “não tem orçamento que dê conta de tantas políticas públicas, de tantos direitos”, “o Estado está inchado”, “o salário mínimo e os salários em geral estão muito altos”, “onde já se viu esses petroleiros defendendo o próprio umbigo?”, “e estes sem-terra invadindo propriedade alheia?”, “o funcionalismo é muito corporativo”…

Por João Antonio Felicio*

João Felício, Confederação Sindical Internacional - Guilherme Santos/Sul21

Esclarecer o real significado político-econômico e ideológico de tantas e tamanhas desinformações, preconceitos e mentiras é uma questão chave para impedirmos não só assaltos como os que estão em curso contra a Previdência, mas para impedir retrocessos e medidas antipopulares entranhadas na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241 do governo interino.

Afinal, o que está por detrás da campanha contra o Estado e suas necessárias políticas sociais é a manutenção da política de rendição à submissão ao sistema financeiro, via pagamento de juros e rolagem de uma dívida ilegítima. Uma irracionalidade que consumiu somente no ano passado R$ 962 bilhões ou 42% do gasto federal. Nada menos de R$ 540 bilhões foram esterilizados só com juros nos 12 meses até janeiro último, o equivalente a 9,1% do PIB.

Se o Estado é sangrado indevidamente desta maneira, é extorquido ilegalmente pelos sonegadores, a parcela mais rica da sociedade. Estudo do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) estima que a sonegação fiscal tenha atingido 23,2%% da arrecadação em 2015, alcançando R$ 453 bilhões, o equivalente a 7,7% do PIB. O valor supera em mais de quatro vezes os R$ 111 bilhões, que foi o deficit fiscal da União no mesmo ano. Esta mesma parcela abastada é a que berra contra o tamanho do Estado. Para esta minoria, o Estado precisa ser grande no atendimento aos seus privilégios e pequeno para o conjunto da sociedade.

E neste jogo de perde-ganha, para que lado está pendendo a balança? Conforme dados do próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) – insuspeito, no caso – entre 1995 e 2015 a despesa total do setor público teve uma média praticamente constante em torno de 7,7% do PIB. A louvável exceção – que se revelou estratégica para enfrentar os impactos da crise internacional e decisiva para impulsionar o desenvolvimento – se deu no segundo mandato de Lula, quando foi corretamente ampliada, chegando a 10,16% do PIB. Isto foi possível porque a receita do setor público foi crescendo progressivamente, o suficiente para sustentar as políticas sociais daquele período.

Durante o primeiro mandato do governo Dilma ocorreu uma forte redução na arrecadação do Estado devido aos incentivos fiscais sem contrapartidas e também uma drástica redução na contribuição das empresas ao INSS. E, mesmo tendo ficado com uma enorme fatia do bolo, os grandes empresários usaram e abusaram destes recursos para derrubar a presidenta eleita.

É fácil observar que não são as despesas que estão fora de controle, mas as receitas que foram muito diminuídas, o que levou a enxugar “gastos” imprescindíveis para as áreas sociais, com perversas consequências para os salários e empregos.

Para se ter uma idéia do que significou tal montante para os cofres públicos, segundo estudos das professoras Lena Lavinas e Ana Carolina Cordilha, o Estado brasileiro deixou de arrecadar, de 2010 a 2014, R$ 986 bilhões, quase R$ 200 bilhões por ano, valor muito superior ao atual deficit fiscal. Para equilibrar a Previdência basta que as empresas voltem a pagar os mesmos percentuais que pagavam no passado. E não querer que nós paguemos a conta. É simples assim. O resto é conversa fiada de “especialista em contas públicas”, escolhidos a dedo pela mídia e pela elite dos sonegadores.

A objetividade dos valores acima citados demonstra que não falta dinheiro, sepultando a ladainha de uma hipotética incapacidade do Estado de fazer frente às suas responsabilidades legais e constitucionais. Por isso, sublinhamos a necessidade de combater os privilégios fiscais – que redundam e ampliam as desigualdades sociais – e os diferentes mecanismos de transferência de renda do conjunto da sociedade para um punhado de milionários.

Temos, portanto, um Orçamento empobrecido e emagrecido pela sonegação e pela elisão, que via de regra vai parar em paraísos fiscais. Conforme estudo da organização internacional Tax Justice Network (com base em Londres), os super-ricos brasileiros possuíam mais de R$ 1 trilhão depositados nestes infernos offshore, o quarto maior montante de um ranking de países pesquisados em 2012. De acordo com a instituição, as grandes corporações mais envolvidas neste crime contra a economia popular são as que atuam nos setores de mineração, petróleo, farmacêutico, comunicações e transporte. Os bancos são um capítulo à parte, com certeza ainda mais sujo.

Estou farto de ouvir que a carga tributária brasileira é alta. Pode ser alta para quem paga regularmente, mas certamente bastante reduzida para estes ladrões do dinheiro público. Estranhamente não vemos de parte da imprensa e do Judiciário brasileiro os nomes desses assaltantes. Quando recebemos informações, elas nos chegam de fora do país.

Se queremos um Brasil justo, é preciso definir se o tamanho do Estado brasileiro será igual ao Paraguai ou dos países escandinavos (Noruega, Suécia e Dinamarca), onde a população mais rica paga mais, beneficiando o conjunto da sociedade com creches, escolas e universidades gratuitas, excelente qualidade do serviço de saúde pública e aposentadorias dignas. Enquanto isso no Brasil e no Paraguai…

Na verdade, diferente do que os grandes conglomerados privados de comunicação não se cansam de repetir, a carga tributária de cerca de 33% em nosso país não é alta (na Escandinávia é de cerca de 45%), mas extremamente mal distribuída. A estrutura da carga tributária é baseada muito mais sobre o consumo do que sobre a renda e o patrimônio. Certa vez, debatendo com um líder empresarial, ele afirmou que a carga tributária nos Estados Unidos é inferior à nossa. Afirmei ao cidadão que eu trocaria a carga tributária brasileira pela norte-americana. Com isto, reduziríamos o imposto sobre o consumo, mas aumentaríamos substancialmente o imposto sobre renda, herança e grandes fortunas. O cidadão ficou em silêncio, bastante pensativo sobre sua renda, sua herança e sua fortuna.

Atualmente, o trabalhador brasileiro que recebe a partir de R$ 1.903,99 já paga R$ 142,80 de Imposto de Renda, o equivalente a 7,5% do seu salário, e o trabalhador que recebe R$ 4.664,68, paga R$ 869,36 ou 27,5%. Já quando um empresário retira R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais!) mensais de dividendos para o sustento de sua família, ele não paga absolutamente nada de Imposto de Renda! Isto é, o seu trabalhador paga imposto e ele, como patrão, não paga nada. Estes são aqueles que bradam contra o tamanho do Estado brasileiro, defendem a reforma da Previdência e a PEC 241. Não estão nem um pouco preocupados – até porque não utilizam – com a escola pública, com a saúde pública, com a Previdência pública e outros serviços que o Estado tem por obrigação oferecer à sociedade.

Nunca esquecerei de um vídeo que assisti sobre trabalhadores no campo. Nele aparecia uma menina de cerca de 15 anos responsável por cortar toneladas de cana diariamente. Seu rosto parecia o de uma senhora idosa, devido ao sofrimento. Querem impor a milhões de jovens obrigados a entrar no mercado de trabalho a que se aposentem somente aos 65 anos. Diante de tamanha perversão, afirmarmos que a reforma da Previdência proposta pelo ilegítimo governo Temer é contra a população mais pobre.

Portanto, não é a classe trabalhadora brasileira, da cidade e do campo, do setor público e do privado, que deve ser taxada de privilegiada e de corporativos empedernidos.

Por isso que a reforma tributária é uma das principais necessidades do nosso Brasil, que só será plenamente democrático quando não houver mais injustiça fiscal, sonegadores e outros ladrões do dinheiro público.

É hora de começarmos a colocar os pingos nos is e confrontar a mídia e a justiça brasileira, que dão sustentação aos privilégios de uma minoria sem qualquer identidade com o país e seu povo.

*João Antonio Felicio é presidente da Confederação Sindical Internacional (CSI)