Peru: crimes de lesa humanidade, corrupção, conciliação, esquecimento

Obviamente, a reconciliação não pode ser construída a partir da impunidade, do esquecimento, varrendo a verdade para baixo do tapete. No Peru, entre 1980 e 2000, cerca de 15 mil pessoas desapareceram em função da violência do Estado, e isto não pode ser ignorado ou tratado como mera estatística sem importância.

Por Mariana Álvarez Orellana

Alberto Fujimori - Reprodução

O passado não foi saldado e os mortos e seus familiares reclamam por justiça. Hoje, o novo presidente Pedro Pablo Kuczynski tem a oportunidade e o desafio de construir uma memória que promova a reconciliação num momento em que o resultado difícil, com o plebiscito colombiano desalentando novas iniciativas de pacificação.

O congressista evangélico (e fujimorista) Gilberto Siura, para justificar a Lei de Anistia de 1995 – que durante anos impediu o processamento das violações aos direitos humanos cometidas por agentes do Estado –, afirmou que “temos que mudar o clima político no país, e acabar com o ódio político e a perseguição (contra Fujimori). Peço a todos que tenhamos nobreza e a capacidade do Mestre dos mestres da cultura cristã: praticar o perdão acima de tudo. O perdão pode ajudar a todos os peruanos”.

Com suas palavras, Siura afetou a centenas de pessoas que precisaram esperar a queda do regime para que os crimes pudessem tramitar na Justiça, querendo livrar o governo de Fujimori das responsabilidades pela desaparição dos estudantes da Universidade de La Cantuta, minimizando indícios como a descoberta das chaves de uma das vítimas (o estudante Armando Amaro Cóndor) entre os restos calcinados – segundo o parlamentar fujimorista, se as chaves fossem mesmo do estudante teriam sido destruídas pelo fogo.

O caso de La Cantuta é emblemático, não só pela crueldade e brutalidade da tortura, execução extrajudicial e desaparição dos cadáveres de nove estudantes e um professor, mas também porque deixou em evidência a existência de um grupo paramilitar de agentes do serviço de inteligência do exército que seguia as ordens de Vladimiro Montesinos e Alberto Fujimori.

A anistia decretada em 1995 não foi ampliada, apesar das tentativas de Fujimori e seus correligionários, quando já preparavam para abandonar o Palácio Pizarro. Alberto Bustamante, então ministro da Justiça, quis que os militares comprometidos com o narcotráfico fossem incluídos nas leis de impunidade, o que levou a oposição a deixar a Mesa de Diálogo promovida pela OEA (Organização dos Estados Americanos). A proposta foi considerada grosseira pela opinião pública, e terminou sendo retirada pouco tempo depois.

Nos últimos anos, o ex-presidente Alberto Fujimori vem acumulando condenações por delitos de lesa humanidade, peculato, usurpação de funções e corrupção. “O sistema de combate à corrupção vem tendo um papel importante, especialmente entre 2000 e 2005, mas logo surgiram obstáculos e tudo se viu travado pela falta de vontade política”, comentou Julio Arbizu, diretor do centro Liber e ex-procurador, responsável por causas anticorrupção. Porém, combater a impunidade é uma missão que exige paciência, e que vai além do trabalho do Ministério Público.

Contexto

Nas eleições de 1990, o escritor Mario Vargas Llosa concorreu à presidência – tendo a agenda neoliberal como plataforma – contra um quase desconhecido candidato, surgido de uma ampla coalizão, chamado Alberto Fujimori. O triunfo deste no segundo turno foi uma surpresa, mas a maior surpresa foi o fato dele ter dissolvido o parlamento em 1992, empreendendo uma vigorosa escalada que levou à aniquilação dos movimentos guerrilheiros e à captura do líder do Sendero Luminoso, Abimael Guzmán, em 12 de setembro daquele mesmo ano.

Durante a obscura década fujimorista, o governo se impunha pela mão de ferro do presidente e pelo poder nas sombras de Vladimiro Montesinos, seu principal assessor. A estratégia oficial naqueles anos foi a de ressaltar o conflito como forma de acumular poder e ganhar legitimidade. Essa linha também foi uma permanente fonte de negócios. A dinâmica do conflito permanente entre governo e terrorismo permitiu obviar o debate sobre a corrupção e os crimes de lesa humanidade, além de destacar a figura de Fujimori como “o pacificador”.

Assim, o Peru evitava um debate maior sobre as ações do seu governo e seus efeitos colaterais, e também do papel de Montesinos como executor da parte suja da agenda presidencial.

O exemplo mais marcante sucedeu em 1997, com a operação de desocupação da residência do embaixador do Japão, tomada por membros do Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA), autorizada por Fujimori, permitiu o resgate de 71 dos 72 reféns com vida, e matou todos os membros da guerrilha – três deles já rendidos, executados extrajudicialmente pelos comandos militares.

Desde a sua prisão, em 2001, Vladimiro Montesinos, ex-chefe do Serviço de Inteligência Nacional, enfrenta mais de 60 processos na Justiça, que incluem violações aos direitos humanos, crimes de lesa humanidade (torturas, assassinatos e incineração de corpos), tráfico de drogas e influência, venda ilegal de armas, etc. No dia 27 de setembro deste ano, Montesinos recebeu uma sentença de 22 anos pela desaparição forçada dos estudantes Martín Roca e Kenneth Anzualdo, e do professor Justiniano Najarro.

No começo deste século, após a prisão de seu principal assessor e já com a popularidade em queda, Fujimori fugiu para o Japão, onde realizou os trâmites para recuperar sua cidadania japonesa. Foi julgado no Peru, apesar de sua ausência, e condenado por crimes de corrupção e violações aos direitos humanos, entre outros já citados aqui. Em 2005, o político viajou ao Chile, onde pensou que estaria a salvo, preparando seu regresso a Lima, pensando em voltar a ser protagonista do cenário político em seu país. Porém, os chilenos decidiram lavar as mãos. Após dois anos de prisão domiciliar em Santiago, em 2007, Fujimori foi extraditado ao Peru, onde finalmente foi preso.

Nos anos posteriores, quando dezenas de funcionários da ditadura fujimorista foram processados por corrupção e violações aos direitos humanos, não faltaram as vozes que, “em nome da reconciliação”, exigiam perdão e impunidade, devidamente reforçadas pela imprensa hegemônica.

Gloria Cano, diretora da Associação Pro Direitos Humanos (Aprodeh), afirmou que graças à recente Lei de Rastreamento aprovada na gestão do presidente Ollanta Humala, o atual governo de Kuczynski terá a possibilidade de permitir seguir as pistas dos restos das centenas de pessoas desaparecidas nos quartéis militares peruanos.

Reconciliação não é esquecimento

Um comunicado da Frente Ampla, principal coalizão de partidos de esquerda do Peru, destaca que “qualquer pedido de indulto ou de comutação de penas deve se ajustar ao ordenamento jurídico nacional e internacional. Neste sentido, deve-se considerar o fato de que o senhor Alberto Fujimori foi condenado judicialmente por delitos de assassinato, sequestro agravado e lesões, em episódios como a matança dos Bairros Altos e o caso dos estudantes de La Cantuta – ambos envolvendo opositores ao seu regime, mas não necessariamente militantes de grupos armados. Segundo o Tribunal Constitucional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, esses delitos configuram crimes de lesa humanidade, aos quais está proibido aplicar a figura da anistia ou dos indultos. Portanto, o que um Estado democrático, respeitador da legalidade, não pode se dar ao luxo de promover a impunidade, e fingir desconhecer a gravidade dos acontecimentos”.

A líder da Frente Ampla, Verónika Mendoza, disse que “o fujimorismo usa o termo `perseguição´ para qualificar o que, na verdade, são constatações que permitem aprofundar os conceitos sobre o tipo de populismo imposto ao país nos Anos 90. Para os que eram muito jovens ou nem haviam nascido naquele então, é preciso mostrar a verdade e fazê-los ter a consciência do nível de manipulação ao qual estamos expostos através dos meios de comunicação”.

“O discurso de vitimização leva a que todas as denúncias sobre as condutas perversas do fujimorismo sejam justificadas, e se transfere aos demais a responsabilidade pelo que eles mesmos fizeram”, agrega Mendoza, que insiste em sua visão a respeito do tema: “para acabar com a corrupção, é preciso acabar com esta Constituição corrupta” – em referência à atual carta magna peruana, aprovada em 1993, durante o período mais duro do fujimorismo. “Temos que ter a coragem de chamar os corruptos de `corruptos´, mesmo os que se vestem de paletó e gravata”, completou ela. Sobre o também ex-presidente Alan García, Mendoza recordou o caso dos indultos a pessoas ligadas ao narcotráfico.

Para Salomón Lerner Febres, presidente da Comissão da Verdade, está claro que a figura do indulto não procede para este caso: “o delito de sequestro agravado não contempla que aquele que o perpetrou possa obter benefícios penitenciários de nenhum tipo. O delito de homicídio qualificado –cometido neste caso – foi considerado crime de lesa humanidade pelo tribunal que examinou a responsabilidade de Fujimori nos acontecimentos. Portanto, não cabe a aplicação de indulto nem anistia segundo as exigências do direito internacional”.

Aqueles que defendem a proposta de indulto formularam a tese de que a eventual concessão desta graça teria como consequência a estabelecimento de um clima favorável à “reconciliação nacional”, inclusive, deixado antever que isso seria um elemento importante para “negociar condições de governabilidade” para a nova administração. Obviamente, negociar a impunidade não tem nada a ver com a reconciliação, nem com a afirmação da democracia na sociedade.

A reconciliação só pode ser gestada a partir do exercício da verdade como elemento fundamental – a memória do arbítrio imposto às vítimas –, e também da ação da Justiça em termos legais e políticos.

“As vítimas dos crimes cometidos pelas autoridades políticas nos Anos 90 eram e são peruanos como qualquer um, pessoas que possuem direitos e dignidade. Não se pode desconhecer suas exigências de justiça e reduzi-la a uma simples negociação entre forças partidárias, ou um cálculo dos benefícios dentro do jogo político. Temos que respeitar os princípios que dão sentido à vida social. Por isso, a opinião pública deve observar com atenção o avançar deste tema, de indiscutível importância moral, legal e política”, concluiu Lerner.