José Eduardo Cardozo em Salvador: Golpe é um escândalo e uma vergonha

O ex-ministro da Justiça e ex-advogado-geral da União do governo Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo, foi um dos convidados de um ato pela democracia, promovido em Salvador, na última quinta-feira (13/10), na Faculdade de Direito da UFBA. Junto a outros professores de Direito, Cardozo debateu os equívocos jurídicos na condução do processo de impeachment da presidenta, considerados por ele como “um verdadeiro escândalo e uma absoluta vergonha”.

Na condição de advogado-geral, Cardozo atuou na defesa de Dilma Rousseff no Congresso Nacional e ganhou notoriedade pela firmeza, boa oratória e conhecimento jurídico que demonstrou ter, durante o processo, mesmo que os atributos não tenham sido suficientes para mudar a sentença. Para ele, a sentença já estava pronta antes mesmo do início do processo, mas, ainda assim, não se podia desistir do direito à defesa.

O ex-ministro lembrou de uma lição que ouviu de um professor da faculdade, no período da ditadura militar, em que pessoas eram presas e até mortas sem direito à defesa, e até sem crime. Questionado sobre a utilidade da atuação dos advogados da época, que insistiam na defesa das vítimas, o professor respondeu que, mesmo nas situações de cartas marcadas, é preciso que o advogado cumpra o seu papel para tentar convencer o juiz; não havendo convencimento, a tática muda:

“A primeira [razão de insistir] é para tentar convencer o juiz, mas, se ele não conseguir, é preciso gritar muito alto para se ouvir os gritos da defesa fora da sala de audiência porque o julgamento final será feito fora da sala, por aqueles que não estão ali presentes, mas que podem decidir o futuro e a história”, disse o professor, segundo o relato de Cardozo. A lição aprendida justificou a condução do processo de Dilma. “Foi isso que fizemos desde o início: tentar usar o direito para demonstrar o direito”.

No ato, Cardozo demonstrou, como fez no Congresso, as fragilidades da denúncia apresentada contra a presidenta, baseada no decreto que abriu crédito suplementar e nas pedaladas discais, que foram consideradas operações de crédito. Ele ainda denunciou as ilegalidades no comportamento dos parlamentares, que atuaram como juízes, a partir de práticas de desvio de poder, manifestação prévia do voto, fechamento de posição dos partidos sobre a matéria e aplicação de pena retroativa.

“Toda vez que leio esse processo eu confesso que fico profundamente irritado. Não é possível alguém ser punido por crimes de responsabilidade com pretextos tão infantis, tão mal engendrados. Por exemplo: no caso das pedaladas fiscais, não há ato da presidenta Dilma e a Constituição é clara quando diz que o crime se configura em ato do presidente. O pagamento da operação de crédito do Plano Safra não passava pela presidenta da República. Era ato da Secretaria do Tesouro”, explicou.

Raio-x do golpe

Cardozo também traçou um ‘raio-x’ político da articulação feita em favor do golpe, que, segundo ele, começou no dia seguinte à reeleição de Dilma, em 2014. “As elites não se contentaram com a continuidade de um projeto de transformações sociais, até porque esteve muito perto da vitória. Queriam instaurar, mais uma vez, o campo neoliberal no País e sabiam que tirar os que estavam em outro caminho era o caminho. Ou atingiam o projeto no momento de crise ou teriam que amargar muitos anos esse projeto”, afirmou.

A estratégia utilizada pela oposição, segundo Cardozo, foi buscar, em um primeiro momento, a recontagem dos votos. Como não houve sucesso, instaurou-se uma investigação com o objetivo de impugnar a eleição de Dilma, mas novamente fracassaram. A partir daí começa a se buscar “enlouquecidamente” um fundamento para o impeachment. Faltava encontrar aliados porque a oposição ainda era minoria parlamentar.

Os aliados vieram com o avanço das investigações contra a corrupção no Brasil. “Outro grupo entra em cena: os insatisfeitos com a Lava Jato, que poderia atingir uma classe política brasileira que tinha historicamente um compromisso com a corrupção. Esses setores cobravam de Dilma Rousseff uma postura que parasse as investigações. Esse grupo se desloca dizendo que Dilma é republicana demais e se unem”. O ex-ministro lembrou do áudio em que o senador Romero Jucá, do PMDB, diz que “é preciso estancar a sangria”.

“Há outro nome que se possa dá a uma situação como essa que não seja golpe? Não é o golpe tradicional, de tanques e metralhadoras, mas um golpe que se utiliza de uma retórica jurídica pobre, medíocre, para rasgar a Constituição. Cientistas políticos argentinos chamam de novo golpismo na América Latina, em que se dá aparência de democracia e se fere e corta a soberania popular, impondo o que as elites querem para determinado país”, afirmou.

O palestrante defendeu que a misoginia – aversão às mulheres – também deu suporte ao impeachment. “Uma mulher, quando governa e é firme, é autoritária. Homem firme é estadista”. Ele também fez críticas ao governo de Michel Temer, a quem chamou de vice ilegítimo, e condenou a PEC 241, que congela os gastos públicos pelos próximos 20 anos, por não fazer parte do programa escolhido nas urnas em 2014.

A sala de audiência

José Eduardo Cardozo encerrou a participação no ato convocando a todos a resistir ao governo Temer, e voltou à história do professor da faculdade. “A defesa falou para fora da sala de audiência e, a cada instante, gritam ‘Fora Temer’, dentro e fora do País. Agora vem o passo seguinte: o que fazer? Cabe a cada um de nós honrar aqueles que combateram pela democracia, que foram torturados em períodos de ditadura no Brasil, aqueles que perderam suas vidas lutando pela democracia que agora tentam nos levar com pretextos jurídicos”.

Ele lembrou da Guerra Civil espanhola, em que uma frase se tornou um ícone da luta contra o fascismo: “No pasarán” – “Não Passarão”, em português. “[Aqui], eles passaram, então, agora o grito é ‘Não ficarão’”.

De Salvador,
Erikson Walla