A urgência libidinática de Tom Zé

Aos 12 anos, menino magrelo, tímido e assustado, Tom Zé, viveu uma epifania cuja força ainda ecoa. Por recomendação escolar, foi ter com uma professora, a fim de ensaiar uma canção para o teatro de fim de ano. O primeiro impacto deu-se ao entrar na sala.

Por Ana Ferraz *

Tom Zé - Lenise Pinheiro

Ao piano, a figura de uma moça bonita e bem-nascida, quase balzaquiana, olhos a relampejar um azul raro por aquelas terras áridas do Sertão baiano. Uma lâmina de sol a infiltrar-se no ambiente incidiu sobre a pele fresca a exalar fragrâncias de sabonete ou, quem sabe, perfume. A luz revelava uma fina poeira dourada flutuante, como se liberada daquele corpo envolto em mistério.

O olhar de menino curioso percorreu cada milímetro daquela aparição. O pé a movimentar as pernas, estas a mexer as coxas e, por fim, o ondular suave das ancas, para cá e para lá. A sala rodopiou. O chão desapareceu.

“Ela cantava Duas Almas, cujos versos falavam em amar com desatino. Só eu e ela. E, de repente, tudo começou a girar porque, quando essas coisas entram na cabeça da gente, acontecem magias incríveis. E aquela exibição, aquele cheiro, as réstias de sol no telhado, aquela mulher se esvaindo em pó. Senti que algo diferente chegava e eu não sabia o que era.”

O despertar da libido e o contato com os graves, médios, médios agudos e muito graves do piano constituíram um universo em si, uma experiência da qual o compositor jamais se recuperou. Esse e outros momentos se juntam agora num disco dedicado ao sexo, Canções Eróticas de Ninar – Urgência Didática. “Sempre fui muito invocado com essa questão e só agora, aos 80, encontrei forças para mergulhar nela”, diz Tom Zé.

Na capa do CD, o olho do artista espreita. Eis aqui mais uma referência à infância de muitos segredos a ser desvendados por meio de artifícios engenhosos. “Eu era o cão em buraco de fechadura. Desenvolvi manhas, artes, porque é uma coisa perigosa.”

Numa das casas em que morou descobriu com júbilo a artimanha de um antecessor, que com engenho subtraiu da porta do banheiro um naco suficiente de madeira para constituí-lo observatório perfeito de intimidades. “O que eu vi por esse buraco não se conta. Minhas primas tomavam banho ao meio-dia, quando não tinha mais ninguém em casa. Ver uma moça nua por debaixo…”

Leitor dedicado de Alexandre Dumas, muito aprendeu com os ardis engendrados pelos heróis em apuros. “Se eu botar uma linha aqui, se subir por ali, se uma pessoa vier vai pisar no fio, derrubar o copo e escapo. Nunca me flagraram.” Tanto malabarismo tinha razão de ser e o subtítulo Urgência Didática a isso se conecta.

Na infância em Irará, habitada por 3 mil almas de pequenos comerciantes e agricultores sujeitos aos melindres climáticos, pai nenhum falava sobre sexo com os filhos. Essa função era exercida pelos empregados, gente simples a desempenhar trabalhos na cozinha, no jardim, na limpeza, na lavagem da roupa.

“Ao sentir que as crianças não sabiam de nada e a continuar desse modo chegariam à idade adulta sem descobrir para que servia uma coisa nem outra, iniciavam conversas de modo sub-reptício e malicioso. Os empregados tinham vários recursos para tocar no assunto. Quando se falava em rola, nome de pássaro e também do órgão sexual masculino, ou periquita, faziam gestos. As moças riam, se encolhiam. E havia figuras de linguagem, metáforas e sinédoques, usadas como se aquelas pessoas pobres dominassem uma grande arte culta.”

Tudo intuído, assim como a sanha adivinhatória em torno do mais candente dos assuntos. “Nessa hora invoco Euclides da Cunha, para quem o sertanejo é analfabeto, mas observa o mundo com a acuidade de um cientista.”

Na faixa Descaração Familiar, Tom Zé relembra as aulas de sexo ministradas a qualquer hora e em qualquer lugar. E em Urgência Didática, parceria com Marcelo Segreto, esclarece o método: “Tinha que ser libidinática a urgência didática; bem descarática, sem-vergonhática, lascivocática, LGBTS, a luta permanece, nosso coração merece”.

Toda a primeira parte de Canções Eróticas de Ninar remete àquela infância de insondáveis mistérios carnais. “Até que você encostava numa moça e descobria que era bom. No começo, tudo é o mundo feminino, as irmãs, as primas, só depois você começa a separar.”

Tom Zé entende ser difícil a um jovem de hoje imaginar que em Irará, há 60 ou 70 anos, rapaz algum ousasse sonhar em transar com uma namorada. A virtude deveria ser mantida sob vigilância severa. “Moça só se casava com 25, 30 anos, porque não havia emprego, recursos.”

E como da dificuldade às vezes brota a criatividade, a conversa das primas na sala, sem se saber ouvidas, rendeu informações úteis. “A canção mais pesada do disco é Dedo, inspirada no papo feminino sobre como driblar a proibição de ter sexo antes de casar.” Entre risos, as mais experientes compartilhavam o conhecimento digital por meio de rimas pornográficas. E as mais ingênuas descobriam o gosto pela burla.

A questão feminina acompanha Tom Zé desde sempre. “Descobri que era mulher aos 6 ou 7 anos”, revela, a fala afoita em contar a cena indelével na memória afetiva. “Um menino desses mais ousados, mais sabedor de descaração, veio me contar que as filhas da moça defronte, pessoal pobre que eu gostava, subiam em árvore sem calcinha. A raiva me dominou. Ao mesmo tempo, eu tinha muito medo, fui criado sob a égide do medo. Tinha medo que os meninos descobrissem que não pensava como eles e viessem me matar. Me doí pelas meninas, me senti ameaçado como elas. Tinha horror de alguém falar de mulher dessa forma, por isso digo que sou mulher, sinto como mulher, ajo como mulher, respeito mulher como mulher se respeita.”

Tal sensibilidade implicou cuidado extremo no fazer de Canções Eróticas de Ninar. “O assunto sexo desata uma violência estranha, o tema está sempre contaminado de agressão à mulher. Por isso foi uma luta escolher o repertório e nisso Neusa Martins, minha mulher e produtora, me ajudou muito.” Fundamentais também foram os arranjos de Paulo Lepetit.

Boa parte das 13 músicas foi composta há muito tempo e permaneceu à espera do momento certo. Por Baixo, por exemplo, delicada elegia à mulher, vestida de seda, timidez e pele crua, é de 1972. Outras faixas igualmente antigas tratam o tema com a sem-cerimônia das traquinagens que o menino envergonhado aprendeu ao longo da jornada.

Até se tornar o aclamado compositor de São São Paulo, Meu Amor, o hino à cidade de então 8 milhões de habitantes que acertou em cheio no coração da plateia, em pé a entoar a canção vencedora do 4º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1968, mesmo ano em que participa do musical Arena Canta Bahia (direção de Augusto Boal), e do disco Tropicália, ou Panis et Circensis, o menino de Irará padeceu.

As incompreensões de uma família de escassos recursos afetivos e rigidez extrema com uma criança sensível causaram estragos. Muitas vezes recolheu-se à tristeza, o coração aos pedaços. O respeito entre os seus foi conquistado à medida de seu avanço nos estudos e do reconhecimento no programa Escada para o Sucesso, na TV Itapoan, em Salvador. “Eu lia os jornais e cantava improvisando. Tinha muito medo e vergonha, mas é o envergonhado que se dá bem no palco.”

Ali nasce o artista performático. “Um disco acontece no tempo, no teatro acontece no tempo e no espaço. Como não tenho pathos de cantor, não consigo dizer coisas capazes de emocionar pela beleza, pela emoção, preciso botar outro significado com corpo, gesto.”

Às vésperas dos 80, em 11 de outubro, velhice é condição que não lhe pertence. “Sempre fui menino, sempre procedi como menino, sempre me preparei para ser menino, faço ginástica todo dia, hidroginástica, alongamento, ioga.” E com teimosia de menino continua a cultivar ojeriza ao tédio.