Alexandre Weffort: Quando a lógica do Direito é virada do avesso

A indignação manifesta pela comunidade jurídica brasileira é um dos dados políticos mais relevantes que a mídia, mesmo aquela comprometida com o golpe, acaba por deixar transparecer. O golpe, que destituiu Dilma Roussef e procura destruir as conquistas sociais alcançadas durante os governos de Lula e Dilma, movimenta seus múltiplos tentáculos, inclusivamente no aparelho judiciário. Essa é a convicção que os fatos vão consolidando na opinião pública.

Por Alexandre Weffort

Gilmar-Mendes - Agência Brasil Antonio Cruz - Agência Brasil/Antonio Cruz

O presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) tem em suas mãos o controle do processo que visa cassar a chapa Dilma/Temer. Segundo notícia publicada na mídia, Gilmar Mendes foi “questionado sobre o julgamento das contas da chapa de Dilma Rousseff e Michel Temer no Tribunal Superior Eleitoral, que poderia cassar o mandato de Temer” e, continua a notícia, o causídico “não quis estimar uma data para a conclusão”, afirmando: “Nós temos um processo todo peculiar porque a figura central desse processo saiu com o impeachment”.

Relembra a notícia que “o pedido de impugnação foi feito pelo PSDB, do candidato Aécio Neves, derrotado no segundo turno da eleição de 2014” e esclarece que, reproduzindo a fala do presidente do TSE, “se o julgamento concluir, ainda este ano, pela cassação da chapa, haverá eleições diretas. Caso uma possível condenação ocorra somente em 2017, terão que ser realizadas eleições indiretas, conforme determina a Constituição”.

Se tivermos em consideração as opiniões sucessiva e prontamente emanadas pelo ministro do STF e presidente do TSE, Gilmar Mendes, perante todo fato político de projeção midiática durante o processo de impeachment a Dilma Rousseff, podemos até formar a convicção de existir um viés político que apontaria para um empenho em que o processo de cassação da chapa Dilma/Temer se desenvolvesse com a celeridade devida. Mas, como assinala a notícia, o processo passou à categoria de “peculiar” (termo juridicamente vago, tal como “convicção”, que passou a ser recentemente motivo de chacota, pelo desastrado uso da expressão).

Convém assinalar uma contradição nesse âmbito, do modo como a “convicção” é criada na esfera política ou judicial. Como ficou demonstrado no processo do impeachment, muitos senadores ignoraram a prova material existente e julgaram Dilma com base em convicções políticas previamente estabelecidas (e declararam isso sem pudor algum). Nos 450 deputados que votaram a cassação de Eduardo Cunha muitos votaram também pelo afastamento de Dilma. A contradição revelada pelo comportamento político tipo “catavento” mostra como esse corpo político se revela inepto para decisões tão críticas.

Voltando à questão do TSE. Se, como reza a notícia, a “figura central” saiu, o mesmo não acontecerá com o material probatório que se terá reunido na investigação (caso contrário, o processo deveria ser simplesmente arquivado). Será que o fato de Temer ter assumido o título de Presidente chega para anular o fundamento jurídico do processo lançado por Aécio contra Dilma? A lógica do processo jurídico diria que não, que essa consequência apenas poderá derivar de uma lógica política, à qual o Tribunal (o TSE ou qualquer outro) deve ser imune.

Será legítima uma convicção feita ex ante do sentido em que julgará o STE no processo de impugnação promovido por Aécio Neves contra Dilma? Olhando apenas à expressão política do problema e às frequentes alocuções públicas do presidente do TSE, poderíamos formar a convicção de que a chapa vai ser cassada. Todavia, a matéria jurídica é mais densa, complexa e, estamos convictos disso, mais exigente que a opinativa política. Poderíamos até conjecturar sobre a relação de proximidade política estabelecida agora entre Temer e Aécio e o impacto que essa relação teria sobre o andamento ou o desfecho do processo, atrasando-o até ser politicamente ineficaz. Mas seria uma convicção perigosamente falha de lógica.

Temer está “a prazo”. Essa é uma constatação política de um óbvio ululante. Mas, qual é o prazo de Temer? Aparentemente, a resposta pode ser encontrada na notícia citada: o prazo de Temer será o prazo do processo de cassação da chapa de Dilma/Temer impugnada por Aécio. E a medida desse prazo será a do ritmo do processo e da eventual condenação que dele resulte.

Se não forem apurados dados suficientes para formar uma convicção de condenação, Temer fica. Se aquela condenação ocorrer antes de 2017 haverá eleições directas. Se ocorrer depois, as eleições serão indirectas. Isto é, se o TSE, superiormente dirigido por Gilmar Mendes, não se atrasar no desempenho da sua função jurídica e os factos alardeados na mídia contra a chapa Dilma/Temer forem dados como provados, haverá eleições directas! Mas, se demorar um pouco mais, Temer sempre cairá, mas a eleição será indirecta, isto é: o Brasil voltará a ter um presidente escolhido, não pelo Povo brasileiro, mas por aquele corpo político “catavento”.

A pressa ultra-liberal de Temer é explícita. O Brasil está a ser posto à venda e a batalha em defesa da nação brasileira trava-se em cada momento de resistência ao desmonte do Estado e ao retrocesso que a política ultra-liberal de Temer pretende impor às conquistas sociais ocorridas na última década.

Está em causa o primado da democracia, da expressão da vontade popular através do voto quando uma qualquer manobra administrativa pode ter, como consequência, o afastamento do Povo e a realização de eleições indirectas. E, está também em causa o primado do Direito quando as convicções políticas se começam a sobrepor, nos próprios atores do sistema judiciário, à matéria probatória que deveria ser a base da decisão num julgamento.

Nos paradoxos da política brasileira de hoje, o poder judiciário permitiu a contaminação ideológica do processo jurídico, enquanto, por outro lado – e essa é uma das bandeiras da ideologia dominante – o poder político pretende impor um total afastamento da consciência ideológica no sistema de ensino, através da chamada “escola sem partido”.

Ao mesmo tempo em que procuram silenciar a consciência de milhares de professores, manifestam relutância em aceitar o princípio constitucional da separação de poderes, no “tribunal sem partido”, princípio que magistrados e políticos deviam, até por imperativo legal, defender. A convicção que fica (já que a expressão “formar convicção” entrou na moda) é a de haver uma forte articulação entre estas diversas facetas da política antidemocrática de direita.

Podemos afirmar também, neste momento, outra convicção: aqueles que hoje assumem o controle político do governo federal do Brasil não teriam o resultado por eles desejado se as eleições fossem directas e não querem correr o risco de, mais uma vez, sofrer uma derrota nas urnas.

Por isso as eleições municipais que se avizinham assumem relevância que ultrapassa o seu impacto local. Serão um novo momento de afirmação popular, na reposição da lógica do voto em defesa da democracia.