Historiador fala sobre figura do Rei Arthur e a indústria cultural

O ilegítimo Michel Temer deu mais um golpe na história quando confundiu o mítico Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda com o imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França, ao se comparar a este pensando ser aquele. Para esclarecer quem foi cada um destes personagens históricos marcantes, o portal Vermelho entrevistou o professor-doutor Marcus Baccega, da Universidade Federal do Maranhão.

Rei Arthur - Divulgação

O professor da UFMA, doutor em História Medieval pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e pesquisador na área de História Medieval com foco no mito arturiano alemão da Idade Média Central, falou também sobre a ressignificação do mito arturiano e os novos papeis que tem jogado, inclusive em produtos da chamada indústria cultural contemporânea. Baccega emitiu ainda sua opinião sobre o processo de impeachment da presidenta Dilma e o programa de Michel Temer, assim como analisou a governo de Flávio Dino no Maranhão, primeira experiência do PCdoB à frente do poder executivo estadual.

Leia a entrevista na íntegra:

Professor, a confusão feita por Michel Temer entre Carlos Magno e a figura mítica do Rei Arthur despertou a curiosidade das pessoas para o tema. O que é o mito arturiano? Que papel ele jogou na idade média?

Primeiramente, gostaria de registrar meu agradecimento ao Portal Vermelho pelo convite à entrevista, sendo um prazer e uma honra contribuir, de alguma forma, com o PCdoB, que sempre esteve ao lado dos excluídos. De forma sintética, o mito arturiano, que integra uma rede de mitos ainda mais ampla e que podemos nomear como Cristianismo medieval, é um conjunto amplo de narrativas, a princípio transmitidas e partilhadas pela oralidade, depois compiladas ao longo dos séculos 12, 13, 14, 15 e mesmo 16, que versam sobre o Rei Arthur, os Cavaleiros da Távola Redonda e a busca pelo Santo Graal. Este mito foi bastante capilar durante os períodos da Idade Média Central (séculos 11-13) e da Baixa Idade Média (séculos 14-16) e consagrou formas retóricas específicas na tradição escrita do Ocidente, como o roman (não confundir com o romance ficcional ou literário) e as famosas novelas de cavalaria. A Demanda do Santo Graal, em cujo enredo os Cavaleiros da Távola Redonda, convivas do Rei Arthur, e não de Carlos Magno, partem em uma aventura de cavalaria em busca do Cálice de Cristo, é uma novela de cavalaria, um dos textos fundadores da língua portuguesa como a conhecemos, tendo sido adaptada, a partir do original bretão, por Joam Vivas, cortesão do Rei Afonso III (1248-1279), em 1248. Houve, por certo, um uso político deste texto na legitimação do novo rei, que havia conspirado com o clero para a deposição do irmão, Sancho II. Estas narrativas são fundamentais para compreender, no plano das representações ideológicas sobre o poder, o conflito entre um projeto universalista cristão centrado no Papado, que designamos por Reforma Pontifical, que teria no Pontífice Romano um monarca teocrático, e um universalismo centrado na aristocracia laica, a nobreza feudal ou nobreza de espada, com destaque para o Sacro Imperador dos Romanos. Ambos projetos cristológicos universais tentaram sacramentar um ideal de cavalaria. O primeiro, a partir da normativa de São Bernardo de Claraval (c.1090-1153) em seu Elogio da Nova Milícia (c.1134), pregava uma cavalaria cristã, moldada pelas virtudes de renúncia ao mundo e intrepidez apenas para a glória de Cristo e seu Corpo Místico na Terra, a Igreja. O segundo procurava moldar uma ética cavaleiresca cortesã, vinculada ao amor cortês e à bravura e celebridade pelos feitos em armas, torneios e justas palacianas e cortesãs. Os romans e novelas de cavalaria do Ciclo Arturiano (ou Matéria da Bretanha) são um lugar da memória privilegiado para entender este conflito po lítico-ideológico, uma vez que seus enredos expõem as tensões, disputas e compromissos retóricos e disciplinares entre os dois projetos que, ao formularem éticas rivais (e, como rivais, dialeticamente próximas e complementares) para a cavalaria, procuram moldar a totalidade das relações na civilização feudal. Em uma perspectiva gramsciana, a análise dos escritos arturianos a partir do método histórico permite entender as tensões, instabilidades, fissuras e concertações no interior do bloco histórico hegemônico nas formações sociais centro e tardo-medievais, composto pelas duas aristocracias, a nobreza e o clero. Vale a pena ressaltar ainda que tais escritos, já compilados em idiomas vernáculos, são provenientes de um estrato social intermediário, que dialoga diretamente com a cultura oral e a comunica com a cultura letrada latina, sendo uma via privilegiada para compreender, em seus silêncios, contradições e apropriações, um pouco do som silenciado das camadas subalternas de então. Quanto ao deslize de Michel Temer, talvez convenha ainda ressaltar que as novelas de cavalaria são uma derivação modificada das canções de gesta, essas sim portadoras de enredos referentes a Carlos Magno e os Doze Pares de França (Ciclo Carolíngio). São as formas épicas predominantes, respectivamente, na Alta Idade Média e na Idade Média Central.

Esse mito foi ressignificado muitas vezes, inclusive em produtos da chamada indústria cultural contemporânea. Que novos papeis ele tem jogado?

De fato a indústria cultural se apropriou das narrativas e enredos de matriz arturiana para efabular novos produtos culturais que, a despeito da própria intenção de seus produtores – penso aqui, principalmente, nos ramos literário e cinematográfico da indústria cultura contemporânea – produzem um efeito de verdade sobre seus receptores, ocasionando uma nociva fetichização da Idade Média. O período medieval acaba sendo representado como um tempo mágico, fantástico, de cavaleiros e damas idealizados, grandes heróis e reis mítico-redentores, de alegres tavernas, em suma, um tempo idealizado e sem as negatividades e tensões próprias à concretude do acontecer social. Vejo tal fenômeno com apreensão, inclusive pelos efeitos causados em muitos historiadores, que descuram as relações socia is em mutação – objeto da História – e acabam contribuindo para este circuito de fetichização que, no fundo, tem sempre um e mesmo sujeito vampírico e inanimado, ele próprio invertido na sociedade por um fetiche, que é o Capital. Neste sentido, penso que devamos ter uma estética da recepção crítica para tais bens culturais de consumo de massas, já que podem, com facilidade, desempenhar um papel artístico-cultural tendente à alienação. Alienação nossa hoje e alienação da própria Idade Média em relação a sua concretude histórica.

Qual é a força que essa história tem para que ela tenha tanta força imagética, sendo capaz de servir a tantos propósitos e ser reapropriada tantas vezes?

Esta questão é relevante, diria mesmo fundamental, e faz-me recordar um belo e provocativo livro de ensaios de Umberto Eco, publicado em 1967, sob o título Apocalípticos e Integrados. Trata-se de uma discussão intelectual de altíssimo nível com Theodor Adorno e Max Horkheimer a respeito, justamente, da indústria cultural. Eco advoga que não devemos ter para com ela nem o olhar apocalíptico dos frankfurtianos, que vislumbra a indústria cultural como puro fator de alienação, nem a adoção ingênua, integrada, de seus valores e conceitos de belo e bom. Para nós, vindos do campo marxista, trata-se de resgatar a velha e sempre nova perspectiva dialética, que pode entender este movimento de reapropriações, conversões e ressignificações mercantilizadas da Matéria da Bretanha como um sintoma, um poderoso indício da nostalgia do Ocidente por suas raízes medievais. Não é possível, rigorosamente, falar-se em Ocidente enquanto um paradigma civilizatório antes ou para além dos processos complexos de transculturação ocorridos a partir do século 4, com as hibridações culturais greco-romanas, germânicas, célticas e as influências árabes e judaicas (pensemos na Península Ibérica e, a partir dela, da reinserção da Arte Retóricae da Arte Poética de Aristóteles no debate intelectual escolástico). Houve uma poderosa, fértil, versátil linguagem de tradução cultural para tais transculturações, a mitologia cristã. Neste sentido, como fenômeno social de massas que se insere nos circuitos comunicacionais de fetichização da sociedade capitalista em sua fase mundializada, deve obrigatoriamente interessar a historiadores e demais cientistas sociais.

Como o senhor viu o processo de impeachment? Como o senhor vê o governo Temer e o programa que ele pretende implantar?

Apesar de revestido de formalismos jurídico-administrativos e aparentando legalidade e, portanto, legitimação procedimental dentro da arquitetura do Estado de Direito, o processo de impedimento da Presidente Dilma Rousseff foi, efetivamente, um golpe. Um golpe premeditado e encoberto por uma estética política diversa e mais sofisticada que a habitual. Dispensou tanques, canhões, armas e soldados para servir-se de um processo informal – e imoral – de mudança da Constituição e da normativa financeira do Estado Brasileiro. Não posso evitar a lembrança de que, formalmente, Hitler governou ao abrigo do artigo 48 da Constituição de Weimar, que previa o Estado de Exceção por tempo indeterminado se o Reich alemão se encontrasse em situação de comoção ou periclitação de sua segurança. Portanto, medidas de exceção politicamente corrosivas para a democracia podem, perfeitamente, ser perpetradas ao abrigo de uma pretensa legalidade formal. Quanto ao governo de Michel Temer e seu programa de retomada do nefasto Consenso de Washington, permito-me uma analogia bíblica, já que sou militante da Esquerda Católica: voltarão, faceiros e dissimulados, os velhos vendilhões do templo…

O senhor é professor da Universidade Federal do Maranhão, como está vendo o governo de Flávio Dino?

Se tivermos, quanto à política praticada em um sistema de democracia representativa, em que os cidadãos delegam a soberania a representantes e, por conseguinte, não a exercem de fato, uma visão adulta, que considere a concretude das relações de força na sociedade maranhense, Flávio Dino representa um avanço. Um avanço político nas concertações que tem procurado isolar a tradicional oligarquia de Sarney, inclusive se valendo, como é próprio da política real e concreta, de alianças com antigos quadros oligárquicos dissidentes. Flávio Dino tem procurado efetivar o Estado de Direito dentro das limitadas possibilidades que conseguem ser esculpidas no cotidiano de miséria e defecção dos direitos humanos que ainda temos no Maranhão. Portanto, vejo-o com bons olhos. É um governante de esquerda que compreendeu sua missão histórica de governar no capitalismo, em vista da impossibilidade de instaurar uma sociedade realmente justa agora. Como Lula e Dilma, é alguém que me parece preocupado em criar condições fáticas para aplicar as garantias formais e substanciais da ordem econômica e social positivada pela Constituição Federal de 1988.