Guilherme Mello: Desafios da esquerda democrática no pós-golpe

Não é suficiente resistir ao projeto liberal-conservador representado pelo governo golpista. Apesar de necessária, a denúncia e a resistência não conquistarão “coração e mente” dos brasileiros se a esquerda não demonstrar qual tipo de sociedade defende e com quais medidas pode alcançá-la.

Por Guilherme Mello*

Diretas Já - Foto: Mídia NINJA

É inegável que o golpe parlamentar-jurídico-midiático abalou os planos do campo democrático popular. Também é verdade que, mesmo antes do golpe ser concluído, o ministério do segundo governo Dilma já anunciava a derrota, em particular na economia. Por fim, é preciso reconhecer que apesar dos inegáveis avanços sociais e econômicos, algumas políticas e escolhas econômicas dos governos Lula e Dilma não condiziam com uma estratégia de esquerda.

Apesar disso, o campo democrático popular de esquerda parece estar longe do aniquilamento, como desejariam seus adversários. Através de grandes mobilizações sociais em âmbito nacional, uma imensa força jovem e transformadora tomou conta das ruas, mesmo que de maneira pouco articulada e planejada.

Diante deste quadro, é preciso garantir um sentido estratégico para as ações políticas a partir deste novo cenário, reagrupando as esquerdas e promovendo uma reflexão crítica, com o objetivo de superar as eventuais divisões e dinamizar as mobilizações. Este texto busca elencar quatro temas que deveriam ser enfrentados para atingir tais objetivos.

1 – Realizar uma análise crítica dos governos Lula e Dilma.

A esquerda será incapaz de dialogar com o resto da sociedade se não apontar os erros dos governos Lula e Dilma, em particular em sua fase final. É fundamental defender as importantes conquistas do período, mas é preciso explicar as causas da crise atual.

Responsabilizar apenas a crise internacional e a irresponsabilidade da oposição golpista é insuficiente como narrativa. Se quiser ser ouvida e elaborar novos projetos, a esquerda precisará refletir criticamente sobre os limites de atuação e os erros que cometeu nos últimos anos.

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer as insuficiências. A ausência de reformas profundas (como a tributária, política, dos meios de comunicação etc.) foi indevidamente justificada em nome da estabilidade de um sistema político fracassado.

A manutenção do tripé econômico, mesmo que flexibilizado, se mostrou contraditório com o objetivo de mudança estrutural da economia, ao se valer de juros altos e câmbio valorizado. No campo do Estado, a manutenção de uma estrutura político-burocrática corrompida, classista e politicamente conservadora, além de enfraquecida por décadas de liberalismo, trouxe limitações ao avanço do investimento público e partidarizou alguns setores de controle e investigação.

Por fim, é preciso reconhecer os equívocos: As alianças espúrias com partidos conservadores visando garantir a governabilidade; a adoção de uma estratégia econômica liberal com vistas a aplacar a sanha do mercado; a cooptação e falta crescente de diálogo com os movimentos sociais. Em suma, a ideia de transformação estrutural sem conflito político enfraqueceu a capacidade de resistência e mobilização do campo popular, que se viu engolido pela onda conservadora já nas manifestações de 2013.

2 – Construir e propor um novo projeto de país.

Não é suficiente resistir ao projeto liberal-conservador representado pelo governo golpista. Apesar de necessária, a denúncia e a resistência não conquistarão o “coração e mente” dos brasileiros, caso a esquerda não consiga demonstrar qual tipo de sociedade defende e por meio de quais medidas podemos alcançá-la.

As propostas concretas devem derivar dos valores deste campo, como a defesa dos direitos sociais, da igualdade de oportunidades, da democracia efetiva e do desenvolvimento econômico/social ambientalmente sustentável.

A defesa da ampliação e melhoria dos serviços públicos pode ser o coração da estratégia, dialogando com as manifestações de 2013. A política econômica e as estruturas de Estado (devidamente reformado) devem sustentar estes objetivos, ao incentivar mudanças na estrutura produtiva e social.

Por fim, o conjunto das propostas deve ser perpassado pelos novos temas colocados pela sociedade, como a igualdade de gênero, racial, a liberdade sexual, a sustentabilidade ambiental, o direito à cidade etc.

3 – Garantir sentido estratégico para suas propostas e ações.

Nesta nova quadra histórica, a esquerda precisará se valer de estratégias de diálogo que disseminem seus ideais pelo conjunto da sociedade. Esta tarefa precisa ser enfrentada com mente aberta ao diálogo, sem purismos precipitados, pois é impossível para a esquerda avançar em uma sociedade dominada por valores preconceituosos e economicamente liberais.

Neste sentido, garantir sentido estratégico para a ação significa disputar (com unidade) os valores e ideais políticos da sociedade. As lutas deste campo devem reforçar as ideias de solidariedade social, liberdades civis e do Estado de bem-estar, se recusando a atuar conjuntamente com forças políticas que não compartilhem desses valores fundamentais.

4 – Fortalecer as novas formas de organização social e mobilização.

A mobilização e organização política ganharam novos contornos a partir de junho de 2013. Atualmente, a maior parte das mobilizações contra o golpe é convocada pelas redes, através de grupos temáticos e sem a participação direta dos partidos ou sindicatos. Coadunar a força das tradicionais organizações sociais dos trabalhadores/estudantes com a energia da juventude mobilizada nas redes e periferias é o grande desafio da esquerda democrática.

Neste sentido, a criação de “frentes” de esquerda, como a Frente Brasil Popular ou a Frente Povo sem Medo, são bem-vindas. A organização na academia, através do Fórum 21, também atende a necessidade de organização das esquerdas.

No entanto, é preciso garantir a sinergia destes movimentos, sem recriar protagonismos indevidos e sem descaracterizar a luta temática de cada grupo, evitando rupturas e garantindo a aproximação com os grupos temáticos não abarcados por estas frentes.

O desafio de unificar o campo é a tarefa mais importante para a esquerda nos anos vindouros. Apenas assim será possível aproveitar a nova energia trazida pela juventude para dentro da luta estratégica do campo democrático popular.

Conclusão

Obviamente, os desafios e rumos da esquerda democrática não se encerram nestes quatro pontos sugeridos. A discussão do papel dos partidos políticos, por exemplo, não foi abordada neste texto. Apesar de tais insuficiências, os temas aqui tratados não podem ser desconsiderados caso a esquerda queira transformar a atual energia social em ações políticas efetivas. No seio da denúncia do golpe pode surgir uma nova esquerda mais forte e unida.

* Guilherme Santos Mello é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (CECON-UNICAMP).