O cearense que inspirou o personagem Quincas Berro D´Água

No livro A Morte e a Morte de Quincas Berro D´Água, Jorge Amado escreve: "Quando um homem morre, ele se reintegra em sua respeitabilidade a mais autêntica, mesmo tendo cometido loucuras em sua vida. A morte apaga, com sua mão de ausência, as manchas do passado e a memória do morto fulge como diamante".

Karoline Viana*

Quicas Berro d água - Divulgação

Enterrado na gaveta 6059 do Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro, a frase poderia ser aplicada ao cearense Wilson Plutarco Rodrigues Lima, mais conhecido pelos amigos como Cabo Plutarco. A despeito da vida pouco exemplar, este ilustre desconhecido poderia muito bem ter caído no esquecimento ou lembrado como aquele rapaz que pediu emprego ao presidente Getúlio Vargas e foi viver na então capital federal, onde morreu de forma prematura. Mas Cabo Plutarco deixou a vida para entrar na ficção, e sua morte, reinventada, ganhou as ladeiras de Salvador, encarnada num bebedor inveterado cujo corpo se perdeu nas ondas verdes do litoral baiano, passando a habitar a imaginação de milhares de leitores.

Nascido em Sobral em 11 de maio de 1920, na Rua da Aurora, Cabo Plutarco era boêmio de longa data, conhecido por suas gaiatices e pelo gosto pelas diversões ligeiras. Quando a mãe, dona Ideusuíte, preocupada com as fanfarras do filho tão longe do Ceará, pedia-lhe cautela com sua saúde, Cabo Plutarco ironizava: dizia ter, no Rio, um lugar para descansar, o "sítio do caju", em referência ao lugar onde ficava o cemitério. E como um agouro que se cumpre, aos 30 anos, acometido de doença súbita e fulminante, Cabo Plutarco veio a falecer, ganhando porém dos amigos de copo uma sentinela singular, em que seu corpo foi levado para a farra derradeira no entorno da Praça da República.
Mas… essa história não parece um tanto familiar? Pois é, a vida e a morte de Cabo Plutarco acabou "emprenhando os ouvidos" de um certo escritor baiano, que fez de uma história de mesa de bar semente e inspiração de um dos mais importantes personagens da literatura brasileira. E aumentando vários pontos no conto ouvido em Fortaleza, Jorge Amado fez nascer Quincas Berro D´Água, cuja história recentemente ganhou as telas de cinema.

As peripécias da gênese de Quincas Berro D´Água são descritas por José Helder de Souza em "Cabo, Plutarco, o Berro D´Água", livro lançado em 1982 pela Imprensa Universitária e que hoje encontra-se esgotado. Filho de tradicional família sobralense, que aportou na ribeira do Rio Acaraú entre o final do século 17 e início do 18, Wilson Plutarco certamente não herdou a sisudez e o ascetismo de seus avós barões.

Primeiras ousadias

Aos quatro anos, Wilson Plutarco e a família (pai, mãe e 11 irmãos) mudaram-se para Fortaleza. Lá, o rapaz foi estudante no Colégio Cearense e no Liceu do Ceará. O título de cabo se deve ao fato de ter recebido certificado de reservista neste posto, após ser recrutado em 1939, aos 19 anos. A patente acabou sendo integrada ao nome de boêmio e folgazão, "carreira" que começara ainda em seus anos de Fortaleza.

Quando ainda era estudante, Getúlio Vargas fez uma visita à capital cearense, desfilando em carro aberto pelas ruas da cidade. Vestido com a farda do Liceu, o rapazote driblou os seguranças, subiu no estribo do carro, deu vivas ao então ditador e aproveitou para pedir-lhe um emprego. Getúlio, admirado com a ousadia galhofeira daquele rapaz, recomendou o jovem para o posto de contínuo no Banco do Brasil, no Rio.

A boemia salva

O livro também registra outras peripécias do Cabo Plutarco, tornando o homem personagem muito antes de inspirar o romancista baiano. O cearense Luiz Gualter Alencar Araripe teria contado a Jorge Amado que, em Recife, onde estava terminando o curso de Medicina, foi chamado às pressas para atender a um louco no hospital.

Lá chegando, encontrou o Cabo Plutarco bêbado e sem roupas, que haviam sido tiradas dele para evitar que fugisse. Ficou sabendo que, ao viajar de paquete do Rio para Fortaleza, Plutarco tomou um porre e colocou a embarcação em polvorosa. Ao atracar em Recife, o capitão do barco mandou a Polícia prendê-lo e só pôde seguir viagem depois que Luiz Gualter se responsabilizou por ele.

Noutra feita, também numa viagem de paquete para a terra natal, a boemia acabou salvando sua vida. Quando o barco fez uma parada em Salvador, o Cabo Plutarco "desembarcou e lá, pelas ladeiras da vetusta cidade, enfiou-se numa bruta farra", segundo José Helder de Souza. O navio Baipendi seguiu viagem e deixou o passageiro para trás.

Numa época em que o Brasil estava prestes a entrar na II Guerra Mundial, o navio foi torpedeado por um submarino alemão. A família, acreditando que Plutarco estava no paquete, chorou sua morte. Mas, dias depois, apareceu o cabo, fazendo a alegria de todos.

Realidade e ficção

Há quem diga que há certas vidas que dão um romance ou mesmo histórias que bem poderiam ter ocorrido na "vida real". O que se vê é que a fronteira entre realidade e ficção (felizmente) tem mais buracos do que se pode imaginar. Ou, nas palavras do escritor Affonso Romano de Sant´Anna: "Volta e meia lemos coisas que confirmam que a vida continua insistindo em imitar a arte, como a se vingar da frase que diz que a arte imita a vida".

O próprio José Helder de Souza, ao tentar restabelecer nomes, lugares e fatos sobre o cearense que inspirou o personagem, escreveu não querer com isso desmerecer a criatividade e a capacidade inventiva de Jorge Amado. "Quincas Berro D´Água é uma entidade autônoma. Só muito longe se parece com o personagem real, com quem motivou ou levou o romancista a escrever a novela". Para ele, não se pode exigir da literatura fidelidade aos fatos.

História vivida, trama reinventada e depois recuperada, o que se sabe é que Wilson Plutarco, mesmo morto, venceu a morte, seja como o Cabo Plutarco das memórias anedóticas ou como Quincas Berro D´Água das páginas dos livros.

O pai de Quincas

No discurso de agradecimento pelo título de "doutor honoris causa" dado pela UFC, Jorge Amado diz: "Homem de muitos amigos, tenho aqui em toda parte do Brasil mesa posta em muitas casas e um copo à minha espera na confraria noturna dos últimos boêmios. Foram esses amigos que ainda vivem a aventura e o riso que me forneceram a ideia de uma das minhas histórias mais divulgadas e melhor consideradas. Refiro-me à ‘A Morte e a Morte de Quincas Berro D´água’. Esse vagabundo dos becos e ladeiras da cidade da Bahia, que hoje trafega mundo afora em mais de vinte línguas, em trinta países, que virou peça de teatro, balé, programa de televisão. Quincas Berro D´água foi gerado em Fortaleza, onde brotou a ideia deste pequeno romance. Deram-me notícia de caso acontecido quando da morte de um boêmio, contaram-me como a solidariedade dos amigos na hora da ausência transformou a dor da despedida em festa".

Assista ao trailer do filme: