Rafael Castilho: "O que aconteceu com o Brasil?"

Ouvi algumas dezenas de vezes durante minha viagem as pessoas me perguntando o que estou fazendo aqui e não aproveitando a Olimpíada no Rio. Dizem mais, com um país tão lindo, o que você vem fazer “nesse fim de mundo frio e feio”.

Rafael Castilho, em Helsinque - Album pessoal/Facebook

Confesso que em todas as vezes que fui perguntado sobre o porquê de não estar no Rio me bateu uma tristeza no fundo do coração.

Não estava pronto pra essa sensação de tristeza. Quando decidi viajar, sequer especulei ficar para desfrutar o ambiente dos jogos.

Depois me lembrei de que quando os jogos foram anunciados. Eu comemorei pra caramba. Fazia as contas. Em 2014 terei 38 anos. Ah, vou curtir demais a Copa do Mundo. Vai ser muito legal. Vou a todos os jogos. Em 2016, terei 40 anos. Um pouco velho, pensava àquele tempo, mas ainda sim, em condições de aproveitar os jogos. Vou me mudar para o Rio de Janeiro durante um mês. Ah, não. Talvez não seja necessário. Até lá teremos o trem bala que vai ligar São Paulo ao Rio em uma ou duas horas. Posso passar o dia lá e depois voltar pra casa.

Outra coisa que ouvi bastante nos bate-papos com os amigos que fui fazendo durante a viagem: “O que aconteceu com o Brasil?” Em geral respiro fundo antes de tentar responder. “Quatro anos atrás a bola estava com vocês. Todo mundo só falava de Brasil, Brasil, Brasil. Que daqui por diante o Brasil seria a nova potência emergente. Um país que a gente admira. Que a gente adora. E acontece tudo isso. Termina tudo num melancólico 7 a 1”. Me dava vontade de chorar. Confesso que sinto ainda essa vontade de chorar enquanto escrevo pra vocês. Meu inglês tão ruim ficava ainda pior. As palavras desapareciam. Talvez porque meu cérebro faça questão de fazer um protesto de “operação tartaruga” nessas horas. Primeiramente, Fora Temer, meu cérebro queria dizer. Tentei explicar o panorama geral para todas as pessoas que me perguntaram. Nosso sistema político. A organização da nossa sociedade. A desigualdade social. Memória escravocrata. O comportamento das nossas elites. A conspiração golpista. Os erros históricos do nosso governo. As influências externas. A relação histórica do nosso continente com os Estados Unidos. Coisa e tal.

Na raiz do meu sentimento melancólico, das perguntas que me foram feitas, das opiniões que eu ouvi, daquelas que consegui responder, das reportagens dos programas de televisão que transmitem exaustivamente imagens do Brasil (sim, o retorno para projeção do país é incomensurável), em tudo isso, o que prevalece é aquele sentimento “do Brasil que podia ter sido e não foi”.

Mas por que não foi?

O momento da Olimpíada, logo depois da Copa do Mundo seria certamente o momento da consagração do Brasil. Era isso que se esperava. A inserção do Brasil como potência emergente. Uma potência alternativa. Dinâmica. Democrática. Não violenta. Um país que combatia a miséria e perseguia a inclusão social. Todos os outros desafios que estivessem em aberto seriam superados. Pois estaríamos todos de braços dados, acreditando em nós mesmos e sabendo qual o caminho deveríamos percorrer. Seria um momento de afirmação.

Mas “eles” trabalharam duro. Conseguiram deixar o Brasil de joelhos.

Terra arrasada. Com vergonha de nós mesmos. Sem esperança. Pegaram no fundo da nossa alma. Remexeram em nossos fantasmas. Tiraram o que tinha de pior no fundo da alma da nossa gente. Isso vale mais do que mil bombas sobre nossas cabeças.

O Brasil de joelhos não é um acidente. O Brasil de joelhos é um projeto de dominação. É preciso que tenhamos vergonha de nós mesmos. Que estejamos apáticos. A crise econômica não é somente o resultado da soma dos erros do governo na condução da política econômica. Certamente houve erros decisivos. Mas houve também um ataque feroz e violento sobre nossa economia. Interditaram o Brasil!

O Golpe não foi contra o PT. Foi contra o Brasil. Sim, é verdade que nossas elites apenas suportaram o PT durante algum período e constituiu uma aliança funcional fiada numa trégua conciliada que durou enquanto foi interessante pra todo mundo. Quando acabou o dinheiro, acabou a amizade. Quando secaram as fontes do financiamento do sistema político, minguou o apoio parlamentar ao governo e ele caiu. Certamente outras fontes de financiamento se tornaram mais valiosas e importantes.

Tá bom, dá pra escrever uma enciclopédia listando os milhares de erros cometidos nos últimos anos que redundaram no golpe.

Ainda assim, o golpe tem uma extensão muito maior do que derrubar o governo do PT. Da mesma forma que para as nossas elites locais, um povo esmagado, miserável, deseducado e oprimido é parte da estratégia para a manutenção do grande sistema de privilégios, na política externa funciona da mesma forma. O Brasil consagrado na Olimpíada, simplesmente não poderia existir. Essa nova potência, ainda que regional e desarmada não poderia existir. Os BRICS não poderiam existir, pelo menos com sua representação no continente. As multinacionais brasileiras competindo mundo afora não poderiam existir. Vejam para que bilionários brasileiros estejam na cadeia, é porque essas empresas não podem existir mesmo. As multinacionais brasileiras não podem sair por aí financiando campanhas eleitorais na América Latina e disputando influência nesse continente que tem dono.

Não que o Brasil fosse se tornar uma potência de fato em 2016, na abertura dos Jogos Olímpicos. Mas ele não poderia se tornar nem em vinte, trinta ou cinquenta anos. Nem em dois séculos.

Fica agora o gosto amargo e um pessimismo dilacerante.

Mas sei que é preciso resistir. Não me sinto nenhum pouco velho durante a Olimpíada. Sinto-me jovem. E agora livre. Sem a necessidade de ser pragmático. Com o golpe nos fizeram um favor. Ficaram todos eles na mesma fileira. Como um monte de peças de dominó. Derrubamos uma peça e caem todas. Tiraram também de mim a necessidade de negociar tréguas. De ser paciente e esperar o que nunca vem.. Não tenho que aceitar mais nada, pois está claro que não há nenhum “bem maior” em jogo. Eles já demonstraram que não querem abrir mão de nada. Só nos resta ir pra porrada e defender o Brasil e a nossa gente!

Ah, quando as pessoas perguntam de onde a gente é, e dizemos que somos do Brasil, ainda existe aquele sorriso na boca das pessoas. Talvez não exista nenhuma outra terra no mundo que provoque um sorriso gostoso quando dizemos o seu nome. As pessoas do mundo ainda amam o Brasil. Só a gente ainda se odeia.

*Sociólogo, coordenador de projetos na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, esteve recentemente no Reino Unido em visita técnica pela Fesp, em parceria com a London School of Economics and Political Science, com o patrocínio da Embaixada Britânica no Brasil.