Raimundo Rodrigues Pereira: O cheiro de golpe

A Comissão Especial do Impeachment – CEI, para abreviar – funciona há cerca de dois meses e meio, numa sala de acesso restrito no Anexo 2 do Senado da República e suas atividades têm tido escassa repercussão.

Por Raimundo Rodrigues Pereira*

Dilma Rousseff no Recife

A rigor, no entanto, na CEI se concluiu a parte mais crítica do processo de impeachment: a apresentação de testemunhas de acusação e defesa e de provas e contraprovas para se determinar se Dilma Rousseff cometeu ou não os chamados “crimes de responsabilidade.” O impeachment, como se sabe, é um processo político e, se fosse apenas isso, seu desfecho já seria conhecido: na Câmara dos Deputados, a 17 de abril, sua tramitação foi aprovada por 367 votos a favor e 137 contra; e, no Senado, a 12 de maio, se decidiu, por 55 votos contra 22, afastar a presidente do cargo provisoriamente.

Mas, o impeachment é também um processo jurídico e o afastamento definitivo de Dilma Rousseff da presidência exige prova legal de que ela cometeu efetivamente os tais crimes de responsabilidade. E a pergunta que cabe, visto que a fase de testemunhas e provas já passou, é clara: foi ou não provado que os crimes existiram? Afinal, no encerramento definitivo desse processo, numa data que se imagina na segunda quinzena de agosto, no plenário do Senado, presidido por Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal, os senadores, um a um, terão de responder à pergunta: “Cometeu a acusada Dilma Rousseff o crime que lhe é imputado e deve ser condenada à perda do seu cargo?” Será necessário o “sim” de dois terços, 54 do total de 81 senadores, para declarar a presidente “condenada”. Com menos, ela é declarada “inocente” e volta ao cargo.

“No hay carne y hay pastel de carne, algo hay”, dizia o velho e arguto político gaúcho, Leonel Brizola (1922-2004). Na CEI, também ocorreu algo estranho. Entre 8 e 29 de junho foram ouvidas 44 testemunhas. A acusação se empenhou para que houvesse um número pequeno de testemunhas de cada lado, oito para ela, oito para a defesa. A defesa da presidente apelou a Lewandowski e conseguiu oito para cada lado, mas para cada um dos cinco crimes de que Dilma era acusada. E assim convocou quarenta testemunhas. A acusação ficou com as oito, no total. E nem chamou todas, ficou em seis. A defesa chamou 38, e todas repetiram, unanimemente, que os crimes não existiram. Por que a acusação chamou tão pouca gente: não precisava provar que o crime existiu?

Mais curioso ainda: dos seis convocados pela acusação que falaram nas duas primeiras sessões de oitivas, dois apresentaram argumentos pro-Dilma. E, a partir daí, nas doze sessões da CEI da fase de depoimentos, os senadores da bancada pelo impeachment passaram, de um modo geral, a não fazer perguntas às testemunhas da defesa e a pressionar para que o processo acabasse o mais cedo possível. A bancada pro-Dilma, formada por apenas cinco dos 21 titulares da comissão, conseguiu, no Supremo, também graças ao voto de Lewandowski, aprovar a produção de uma perícia para saber da existência ou não os tais crimes de responsabilidade de Dilma. Queria uma junta de peritos internacionais, para fugir do ambiente passional que domina o País. Conseguiu uma trinca de peritos locais, escolhida pelo presidente da CEI, o senador Raimundo Lira (PMDB-PB), entre os técnicos do Senado.

Os dilmistas tentaram, depois, impugnar um deles, Diego Prandino Alves, justamente o coordenador da trinca escolhida. Na reunião da CEI de 15 de junho, o advogado da presidente, José Eduardo Cardoso, com todas as muitas vênias de seu repertório, disse ser Prandino cidadão merecedor do maior respeito, por seu currículo; mas, pelas postagens na sua página no Facebook não seria recomendado para uma perícia de tantas implicações políticas. Numa das postagens, Prandino dizia: “Hoje, os que bradam pela democracia vestem vermelho na sua maioria. Querem ser levados a sério? Tirem essa roupa vermelha. Nossa bandeira nem sequer tem vestígio dessa cor, a não ser, é claro, que você considere que o PT seja mais importante do que tudo…” Cardoso disse ainda que a situação tinha ficado “esquisita” pelo fato de, após o pedido de impugnação ter vazado, não só o perito coordenador, mas também os outros dois da junta pericial terem apagado todas as suas postagens recentes na internet. A impugnação acabou sendo decidida na CEI pelo voto. E, como praticamente em todas as outras votações da comissão, prevaleceu a maioria anti-Dilma: Prandino ficou. A decisão pegou mal. Para o senador Cristovam Buarque (PPS-DF), suplente na CEI e um dos ainda indecisos sobre como votar, a manutenção de Prandino fazia o jogo “dos que chamam de golpe o impeachment”. “Vai ficar esse cheiro”, disse ele aos outros senadores. Posteriormente, o presidente da CEI, senador Lira, embora mantivesse Prandino na junta, o afastou da função de coordenador.

Como se viu, os peritos não parecem santos. O relatório deles foi divulgado há duas semanas e não há outro. Com base nele e nas palavras do ilustre jurista Miguel Reale Jr, principal assinante do pedido de impeachment em tramitação, serão feitas as três considerações grifadas a seguir.

A acusação está, como se diz, “buscando pelo em ovo”. Embora o notável Reale Jr diga que o País está na situação em que está por conta dos gastos ilegais da presidente, computando-se as três imputações restantes contra Dilma Rousseff trata-se de uma “merreca” no gasto público, três milésimos do orçamento.

O notável jurista foi o primeiro a depor na CEI, no dia 28 de abril. Começou atacando o deputado Jair Bolsonaro, do Partido Social Cristão, do Rio de Janeiro que, ao votar na Câmara pela abertura do processo do impeachment, homenageou o mais famoso torturador da ditadura militar, o coronel Brilhante Ustra. A seguir, Reale Jr desatinou: comparou os crimes de Dilma, que considerou tremendos, com os de Ustra. Disse: “Esse pedido de impeachment visa à liberdade. Porque há dois tipos de ditadura: a ditadura explícita dos fuzis e a ditadura insidiosa da propina ou da irresponsabilidade pelo gosto do poder” [ que leva …] “ao desastre da economia pública” [e] “é muito mais grave do que a ofensa que se faz ao patrimônio pessoal, a ofensa que se faz à coletividade” […] “por via de operações de crédito indevidas, por via da decretação de créditos suplementares com desrespeito a essa casa” [no caso, o Congresso, onde ele falava].

Reale Jr, junto com o ex-petista Hélio Bicudo e a advogada Janaína Paschoal, assinou o pedido de impeachment afinal aceito na Câmara por seu então presidente Eduardo Cunha, no final do ano passado. No pedido eram apontados sete crimes de Dilma passíveis de impeachment. O maior deles, da ordem de 50 bilhões de reais, “por via de operações de crédito indevidas” como disse o jurista no discurso na CEI, era o das chamadas “pedaladas fiscais”, supostos empréstimos tomados pelo Tesouro do Banco do Brasil para o chamado Plano Safra, de subsídios no pagamento de juros aos produtores agrícolas entre 2013 e 2015. Os outros seis, todos cerca de cinquenta vezes menores em valor, eram os tais “créditos suplementares” decretados por Dilma, “em desrespeito a essa casa”, como destacou Reale Jr no mesmo discurso citado.

Quando o jurista abriu os trabalhos de oitiva das testemunhas na CEI no final de abril, quatro dessas sete acusações já tinham caído em instâncias anteriores. Na aceitação da denúncia pela Câmara, os supostos crimes ficaram restritos aos que teriam sido cometidos em 2015, por se avaliar que a presidente não poderia ser processada por fatos ocorridos no seu mandato anterior, caindo as chamadas pedaladas de 2013 e 2014 e dois decretos . Com a perícia dos técnicos do Senado caiu mais um decreto de crédito suplementar; e caiu, também, o mais rico dos crimes, o das pedaladas de 2015 no qual não foi encontrado qualquer ato praticado pela presidente. Sobraram três decretos de crédito suplementar. O valor, em dinheiro, da soma dos três: cerca de 1,7 bilhão de reais. Porque dizemos que, em dinheiro, isso é “uma merreca”?

Vejam a desproporção. O orçamento de gastos do governo Dilma para 2015, autorizado pelo Congresso Nacional, era de 2,938 trilhões de reais. Houve um contingenciamento, proibição de gastos de 61 bilhões, o que reduziu aquele valor para 2,877 trilhões. O governo, a seguir, como percebia que o País entrava em recessão e a queda de receitas era muito grande, não “empenhou”, ou seja, não fez andar a papelama que autoriza o gasto. Assim, o total empenhado em relação ao contingenciado foi reduzido em quase meio trilhão de reais, para 2,382 trilhões. E, finalmente, mesmo tendo mandado gastar, não pagou tudo, cortou os pagamentos “na boca do caixa”, como se diz. O resultado: o total efetivamente gasto, ou seja, pago, em 2015, caiu para 2,245 trilhões. Suponhamos ter a presidente gasto, em desafio ao Congresso Nacional, 1,8 bilhão de reais, o valor somado dos seus três supostos crimes restantes. O que é isso? É menos de um milésimo do gasto efetivamente feito. É isso que fez naufragar a economia pública como pretende, voltamos a repetir, o ilustre Reale Jr?

Analisemos, agora, os três créditos suplementares restantes, passíveis de condenação para a presidente. Quem os pediu? Por que pediu? O Poder Judiciário, que cuida das leis do País, pediu créditos desse tipo abominável? Pedidos desse tipo são uma anomalia? Ou era a regra nas programações orçamentárias, até outubro de 2015, quando o TCU baixou norma exigindo que, no lugar dos decretos o governo encaminhasse ao Congresso projetos de lei?
O orçamento brasileiro de cada ano é preparado e administrado num processo que envolve meio milhar de órgãos e centenas e centenas de pessoas. No ano anterior, primeiro, o Congresso aprova uma LDO, lei de diretrizes orçamentarias. Ela define, entre outras coisas, um superavit primário conceito importantíssimo, a ser desenvolvido no último capítulo de nossa história e que, por ora, pode ser definido assim: entre receitas e despesas anuais do governo, deve haver um saldo – o resultado primário – para pagar juros.

Depois, com base nas diretrizes fixadas, e ainda no ano anterior, o Congresso aprova a LOA, Lei Orçamentária Anual, no caso específico, a LOA 2015, do primeiro ano do novo mandato de Dilma. Para isso, toma como base a arrecadação prevista – impostos e outros tipos de receitas – e, a partir dela, define as dotações orçamentárias, os limites máximos de despesa para cada uma das unidades do governo, os muitos ministérios e suas inúmeras subdivisões e mesmo as dotações de gastos dos outros poderes, Legislativo e Judiciário.

Da forma como as acusações contra a presidente foram amplamente divulgadas, os pedidos de créditos suplementares parecem ter sido decisões dela própria, decorrentes de seu gênio ruim e espírito político populista e gastador. Não é nada disso. Os créditos suplementares começam a surgir a partir da execução do orçamento, no início do ano e envolvem centenas de pessoas e órgãos, num processo muito organizado e documentado, a partir de necessidades claríssimas. A soma dos valores dos três decretos suplementares considerados ilegais pela junta de peritos do Senado convocados pela CEI, dá um total de cerca de 1,8 bilhão de reais, sendo apenas um pouco maior que o maior deles, 1,701 bilhões de reais, mais relacionado com o Ministério da Educação. No total de órgãos do governo federal responsáveis pelos pedidos de crédito suplementar estão, por exemplo, do Ministério da Educação, 65 universidades e 13 hospitais federais, 20 institutos de ensino técnico. Estão, ainda, solicitações de órgãos de praticamente todos os outros ministérios, da Defesa – dos comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica -, dos ministérios da Cultura, do Meio Ambiente, da Ciência e Tecnologia. O Poder Judiciário, a partir do Conselho Nacional de Justiça, pediu 183 milhões de reais. O ministério da Justiça pediu 127 milhões.

O que justifica esses pedidos? O orçamento é anual, a LOA 2015 refere-se a receitas e despesas desse ano. Mas o orçamento de 2014, como o de todos os anos, não se resolveu totalmente no ano. Sobraram, em órgãos nos quais ele foi executado, superavits financeiros – por exemplo, num concurso para juiz de um tribunal federal com muito mais gente do que o previsto, a soma das taxas de inscrição superou o estimado. Ou ocorreu um excesso de arrecadação por doação para um hospital federal, por exemplo. Quando o ano de 2015 começou, todos os órgãos citados há pouco nos diversos ministérios começaram a preparar seus pedidos de crédito suplementar, ou seja, encaminharam ao planejamento central do governo pedido para que essas verbas – de excesso de arrecadação ou superavit financeiro – fossem acrescentadas às dotações reservadas para elas pela LOA 2015.

Como os depoimentos na CEI das 38 testemunhas da defesa confirmaram, este é um procedimento natural, antigo, resultante do aprimoramento do processo orçamentário do País. É totalmente parametrizado, ou seja, o funcionário tem um formulário eletrônico a preencher e não pode fugir das suas normas. Do nível mais baixo – por exemplo, a partir de aprovação no departamento competente de uma universidade federal – o pedido de suplementação por decreto presidencial vai subindo, com supervisões técnicas e jurídicas em alguns escalões, até chegar à assinatura da presidente da República. Como disseram vários depoentes, Dilma Rousseff não poderia desautorizar nenhum desses pedidos, nem inventar qualquer um deles, a menos que quisesse interferir ditatorialmente em toda a cadeia de processamento dos créditos suplementares consagrada pelas regras da administração pública há anos.

A acusação diz que o governo tem uma meta de superavit – ou mesmo de déficit primário – anual, aprovada na LOA no início do ano. Mas deve conter a edição de créditos suplementares, no seu acompanhamento da execução orçamentária feito bimestralmente, quando percebe que a meta anual pode não ser atingida. Diz ainda que o TCU advertiu o governo, falando da necessidade de um comportamento mais cauteloso, no início do segundo semestre de 2015, e recomendou que, no lugar de decretos, a presidência enviasse ao Congresso para aprovação projetos de lei.

Na defesa do governo, em depoimento na CEI, no dia 17 de junho, o ex-ministro da Fazenda de Dilma, Nelson Barbosa, apontou como prova da correção da presidente, o fato de, na chamada PEC do gasto, a proposta de emenda constitucional para limitação das despesas públicas apresentada pelo governo Temer ao Congresso recentemente, o sistema de corte do gasto ser igual ao que era adotado antes, ao que foi adotado em 2015, quando se tinha uma dotação aprovada pela LOA e o gasto foi cortado pelo contingenciamento e na boca do caixa. A PEC de Temer diz: “Poderíamos tanto limitar a despesa empenhada (ou seja, aquela que o Estado se comprometeu a fazer, contratando o bem ou serviço) ou a despesa paga (aquela que gerou efetivo desembolso financeiro) aí incluídos os restos a pagar, vindos de orçamentos anteriores e que são efetivamente pagos no ano”. Barbosa concluiu: o governo Temer escolheu o critério financeiro, de garantir o resultado primário pelo regime de caixa, “não escolheu o critério [de limitar o] empenho, muito menos o critério [de limitar a] dotação orçamentária”. O TCU aprovou essa nova regra em dezembro de 2015. É certo que a inventou antes, em julho. Mas, na ocasião, quando foi apresentada ao governo, este recorreu. E obteve efeito suspensivo da medida. E ela só começou a valer de fato, quando o pleno daquela corte o julgou definitivamente, em dezembro. Como diz a defesa de Dilma, nem a partir daí se pode considerar a decisão do TCU como sendo uma norma jurídica; dela ainda o governo Dilma pode apelar ao Judiciário. E mais, a partir da decisão do pleno do TCU o governo não editou novos decretos de créditos suplementares. E essa corte – diga-se de passagem, órgão assessor do Congresso Nacional que sempre aprovou contas de presidentes anteriores com decretos como os hoje considerados proibidos – não pode aplicar suas normas com efeito retroativo, é claro.

Por que se quer tirar a presidente Dilma do cargo?
Muito se disse, na CEI, da lei 1.079, de mais de meio século atrás, da época do governo Dutra, que tipificaria e mandaria punir a presidente da República por crime de responsabilidade. Não é verdade. Trata-se de outra lei, da Lei de Responsabilidade Fiscal, derivada daquela, mas de sentido totalmente diferente, costurada nas suas características básicas em conversas do presidente Fernando Henrique Cardoso com representantes do Fundo Monetário Internacional e do Tesouro dos EUA. No final de 1998, depois de uma orgia de dólares entrados no Pais em busca dos juros mais altos do mundo, que serviram de lastro para o Plano Real, FHC chegou ao final de seu primeiro mandato com o Brasil quebrado e prometeu aos credores internacionais – como se pode ver nitidamente nas gravações do chamado grampo do BNDES – uma mudança na Constituição brasileira para introduzir nela um conceito ampliado de responsabilização dos governantes pelo andamento das contas do País.

O Brasil tinha uma lei antiga, de abril de 1950, do governo Dutra (1946-1951), para definir os “crimes de responsabilidade” dos governantes e regular o seu “respectivo processo de julgamento”. Esta lei, a 1.079, no caso da presidência da República previa oito categorias de crimes pelos quais o governante poderia ser julgado e perder seu mandato. A primeira categoria e a mais extensa era a de atentar contra “a existência da União”. Nela estavam alinhados onze tipos de crimes, como os de não empregar os meios necessários à defesa da integridade nacional e os de “celebrar tratados, convenções e ajustes que comprometam a dignidade nacional”. A parte relativa ao orçamento público era a menor das categorias e definia apenas quatro crimes.

A promessa feita por FHC aos credores do País no final de 1998 iria, a curto prazo, alterar radicalmente a lei 1079, nesta categoria específica: aos crimes orçamentários foram acrescidos mais oito espécies, entre as quais a de “deixar de ordenar a redução do montante da dívida pública consolidada”, quando este ultrapassar limites e, em sentido contrário, o de “ordenar a realização de operações de crédito com entidades da administração direta”, que se tornariam expressamente proibidas. E assim foram aprovadas, logo nos primeiros anos do segundo mandato de FHC, a LRF e a chamada Lei dos Crimes, de número 10.028, que ampliou a lista de crimes da presidência da República na execução orçamentária e reformou, ainda, o Código Penal de 1940 para garantir esse tipo de punição.

Um diálogo na CEI entre Lindbergh Farias, senador do PT, pelo Rio de Janeiro, e a testemunha da acusação Leonardo Albernaz, técnico do TCU, no dia 13 de junho, ilustra bem o sentido maior dos ralos argumentos usados para criminalizar as ações da presidente. Como se sabe, a limitação do gasto é essencial para o chamado mercado, onde estão os aplicadores em títulos da dívida pública, preocupados com o seu descontrole e a possibilidade de não receberam os seus juros. Albernaz argumentava que em julho de 2015, o TCU tinha feito uma recomendação ao governo pelo fato de, aquela época, já se antever o não cumprimento do resultado primário. Ou seja, o governo não estava economizando o suficiente para pagar juros e conter o crescimento da dívida. Pior ainda, não pagaria nenhuma fração dos juros novos devidos no ano, teria deficit, precisaria emitir mais títulos da dívida pública, o que significaria ter de pagar mais juros ainda em 2016.

Nessa situação, embora o cumprimento da meta só se verifique no fim do ano, o governo não teria mais autorização para abrir créditos suplementares, como os assinados por Dilma, argumentou Albernaz para justificar a tese do TCU de os decretos de créditos suplementares de Dilma serem ilegais. A presidente teria de cortar gastos, mais do que cortou. Ao contingenciamento de despesas do início de 2015 teria de acrescentar outro, como fez, mas não de 8 bilhões de reais, de 57 bilhões de reais. “O senhor está dizendo”, retrucou Lindbergh Farias, senador pelo PT, do Rio, que o contingenciamento inicial, feito pelo ministro da Fazenda de Dilma da época, Joaquim Levi, o maior da história recente brasileira, tinha de ser complementado não com um corte de oito mas de 57 bilhões de reais? “Os senhores estão querendo criminalizar um debate sobre política fiscal que está ocorrendo no mundo inteiro”.

Farias se referia ao fato de mesmo conservadores empedernidos mas autênticos como os editorialistas da revista inglesa Economist, liberais desde 1843, estão recomendando políticas anti-cíclicas de elevação dos gastos estatais para se contrapor à enorme crise em desenvolvimento no mundo capitalista. E tem razão. Nossos liberais são mais radicais. Se o governo Temer se tornar verdadeiro, logo se verá. Um dos gurus dos liberais apoiadores do governo interino, o economista Edmar Bacha, já disse em artigo ao diário O Globo e entrevista a O Estado de S. Paulo: o congelamento do gasto público a ser colocado na Constituição é apenas parte das reformas liberais. E não significará nada se não incluir também uma mudança constitucional para reduzir os gastos na Educação e na Saúde.

Se o leitor não quer pagar para ver, faça alguma coisa contra o impedimento final da presidente Dilma Rousseff.