A encruzilhada de um Mercosul sem consenso

Sem se valer de teorias e conceitos, de forma simples, entende-se que consenso é quando duas ou mais partes chegam a um ponto em comum, numa determinada negociação sobre algum tema. Todos são ouvidos e suas opiniões respeitadas, desde o maior ao menor, seja qual for o poder de cada um na mesa.

Por Francisco Denis*

Boicote ao Mercosul - Divulgação

A arte do consenso não é fácil, pois quando as partes têm opiniões diferentes sobre um assunto, e não estão dispostas a ceder em nada, ele simplesmente não acontece, trava-se a negociação e a saída pode ser sofrida, e com mágoas mútuas.

É esse o princípio que orienta as principais decisões no Mercosul, o bloco de integração mais importante da América do Sul. Diferente do que acontece em outras comunidades, como a União Europeia ou a Comunidade Andina de Nações (CAN), o Mercosul não tem instituições supranacionais que possam tomar as decisões do bloco, e sim intergovernamentais, ou seja, tudo se dá pelo consenso entres os governos e representações dos seus cinco estados-membros.

O impasse na passagem da presidência do Mercosul do Uruguai para a Venezuela tem gerado, nas últimas semanas, uma série de discursos políticos, notas diplomáticas, reportagens jornalísticas, textos opinativos na internet, entrevistas de especialistas, mas ainda nenhuma resposta concreta para mais uma crise em sua história. E o mais importante, o problema se mantém sem solução: de quem será a presidência do bloco?

O dia 11 de julho marcou a última reunião entre as representações do Mercosul para tentar resolver o impasse. Estavam na mesa os ministros das Relações Exteriores do Uruguai, Rodolfo Nin Novoa, Paraguai, Eladio Zelada, o subsecretário das Relações Exteriores da Argentina, Carlos Foradori, e o secretário-geral do Brasil para América do Sul, Central e do Caribe, Paulo Estivallet. O resultado não foi diferente do que havia antes: não houve acordo. Os representantes decidiram retornar aos seus respectivos países e consultar seus presidentes sobre o que se deve fazer a partir de agora, mantendo vigentes todas as incertezas sobre o futuro do bloco – incertezas essas que pairam como um risco para a ideia mesma de integração regional.

A data estipulada pelo governo uruguaio para uma decisão definitiva era este 30 de julho. Neste dia, o Uruguai deveria passar a presidência pro-tempore, segundo a regra de revezamento semestral respeitando a ordem alfabética, à República Bolivariana da Venezuela, membro pleno desde 2013. E é aí que está o dilema.

Os governos do Brasil e do Paraguai foram os primeiros a não aceitar a legalidade. José Serra e Eladio Loizada argumentam em notas e entrevistas que a situação política e econômica da Venezuela impede que o presidente Nicolás Maduro exerça a presidência do Mercosul, e alegam que o país não assinou o chamado “Protocolo de Assunção”, sobre compromissos com a promoção e proteção dos direitos humanos.

O governo argentino teve uma proposta ainda mais criativa para a crise. Em declarações, o presidente Mauricio Macri propôs saltar a Venezuela no revezamento, para que a Argentina assuma a presidência. A proposta não teve aceitação nem de sua própria chanceler, Susana Malcorra, que tenta colaborar com o governo uruguaio para encontrar uma saída.


Presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez. O país defende a constitucionalidade do Mercosul 

O Uruguai possui uma reconhecida tradição em termos de direito internacional, sempre sustenta o que diz os tratados do bloco, e tinha a intenção de entregar a presidência à Venezuela no sábado. O chanceler Rodolfo Nin Nova já colocou essa posição em todas as reuniões do bloco e afirma que não há impedimento algum para essa passagem, já que não há ruptura democrática no país caribenho.

Após Brasil e Paraguai confirmarem que não vão participar da reunião do bloco, no dia 30, o chanceler uruguaio cancelou o encontro, seguindo o protocolo pelo qual todas as decisões devem se dar por consenso, mas afirmou que, mesmo sem reunião, encerrará seus trabalhos à frente da presidência e passará o mando para a Venezuela. A estratégia uruguaia é dividir a crise com todos os membros. O governo paraguaio afirmou que o ato da diplomacia uruguaia será ilegítimo, pois defende que o consenso e a presença de todos os governos do bloco é essencial para formalizar as decisões.

Por outro lado, é visível que os argumentos apresentados contra a Venezuela não têm nenhuma base jurídica. Em sua carta fundacional, o bloco não penaliza o membro que não assinou um protocolo a não exercer seu direito à presidência rotativa. O Tratado de Assunção é bem claro quando fala: “a presidência do Conselho se exercerá por rotação dos estados-membros e em ordem alfabética, por períodos de seis meses”.

Outro argumento, que parece ser mais convincente, é o político. Desde que a Venezuela entrou no bloco, em junho de 2013 – após o afastamento do Paraguai, devido ao golpe parlamentar que destituiu o presidente eleito Fernando Lugo – tanto o novo governo paraguaio como a maioria do Senado, faz uma campanha de alimentar picuinhas diplomáticas contra o governo de Nicolás Maduro. Vale destacar que, depois do golpe, todas as instâncias governamentais paraguaias passaram a ser dominadas pelo conservador Partido Colorado, que sempre liderou a resistência ao ingresso da Venezuela no bloco, e que ainda não curou as feridas do episódio em que o próprio Maduro liderou a proposta de afastamento do país devido à crise política de 2012.

Os negociadores que representam o Brasil e o Paraguai nesse impasse têm um passado e um presente questionável quando o tema é defesa da democracia na região. O chanceler José Serra é investigado em casos de corrupção em suas campanhas políticas, além de fazer parte de um governo interino que assumiu o poder após um processo de impeachment controverso, o qual ainda não está concluído e não se comprovou nenhum crime que comprometa a presidente eleita Dilma Rousseff. Já o paraguaio Eladio Loizada também apresenta um histórico nada democrático: foi funcionário da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989), um dos organizadores da Liga Internacional Mundial, braço da Operação Condor na região, e também é investigado por delitos contra a humanidade.

Todavia, o impasse também se topa com os argumentos dos interesses comerciais. As negociações do acordo entre o Mercosul e a União Europeia também são um ponto de discórdia no bloco. A mudança política e econômica no Brasil e na Argentina impulsiona ideias de abertura, e que as negociações de livre comércio não tenham que passar pelo consenso de todos os membros. Tanto Mauricio Macri quanto Michel Temer defendem a flexibilização das regras, e para isso querem caminho tranquilo para seus projetos, sem ter problemas, por exemplo, com uma possível oposição venezuelana ao assunto. Nesse sentido, a ideia é adiar a passagem de presidência para que as negociações não sofram interferências nem críticas.

O acordo com a União Europeia vem sendo negociado há mais de uma década. O bloco europeu é um dos principais sócios comerciais do Mercosul no mundo, e um dos principais entraves na negociação diz respeito às políticas protecionistas no setor agrário europeu, em especial na Alemanha e na França, que dificultam o acordo, pois os países sul-americanos são produtores mundiais de alimentos e não têm como competir com produtos europeus subsidiados. Também estão presentes outras barreiras fitossanitárias e ambientais que dificultam ainda mais o comércio entre as duas regiões, e são armas para implementar políticas protecionistas.

Os Estados Unidos também têm claros interesses econômicos e geopolíticos nessa crise, e está olhando de perto toda a negociação. A troca de mando na embaixada estadunidense em Montevidéu, com a chegada de Kelly Keiderling, não foi por acaso. A nova representante tem dado diversas declarações contra o governo venezuelano. Seu histórico de representações comprova que a embaixadora é especialista em crises pelo mundo: foi primeira-secretária de imprensa e cultura da Secretaria de Interesses dos Estados Unidos em Cuba (a SINA, que era a máxima representação do país na ilha, antes da reabertura da embaixada), onde se descobriu que financiava opositores através do projeto Genesis, denunciado pela agência de notícias AP. Também foi a encarregada estadunidense de negócios na Venezuela, e expulsa do país em 2013, acusada de conspiração junto com a oposição. Keiderling esteve presente no Iraque, onde foi chefa da Oficina do Estado-Maior.

A reorientação política e econômica no Brasil, Argentina e Paraguai ameaça apagar as conquistas do Mercosul nesta última década, apesar dos resultados favoráveis colhidos pela política de integração dos governos progressistas: o comércio entre os países aumentou em quatro vezes e as reivindicações das centrais sindicais e movimentos sociais na integração social foram fundamentais para se chegar a conquistas além do comércio e das empresas. Conquistas como o Fundo de Convergência Estrutural (Focem), o Instituto Social do Mercosul (ISM), o Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos (IPPDH) e o Parlamento do Mercosul, que contribuem para integrar os povos e não só os mercados.

Se o consenso que nos trouxe até aqui ainda valer a pena na hora de negociar, e as regras democráticas do bloco forem respeitadas por todos os estados-membros, nós acordaremos no dia 1º de agosto com a Venezuela na presidência pro-tempore do Mercosul, e durante os próximos seis meses. Qualquer solução diferente disso configurará a imposição de práticas políticas que violam a legalidade no bloco.

Mais que uma crise econômica e política, o Mercosul passa por uma crise de democracia, que desafia governos e organizações a dialogar sobre os caminhos que o bloco tomará, para não deixar de ser a esperança de integração possível que um dia motivou sua criação e que já se tornou fundamental para os povos da região.