A utopia de Angela Davis

Em Mulher, raça e classe*, Angela Davis faz um estudo elaborado sobre as condições da população negra nos Estados Unidos por um viés interseccional, ou seja, analisando como racismo, capitalismo e sexismo estruturam as relações gerando formas combinadas de opressão.

Por Djamila Ribeiro

Angela Davis - Divulgação

Davis inicia o livro com o capítulo “O legado da escravidão: parâmetros para uma nova condição feminina” falando sobre o modo pelo qual a mulher negra escravizada era tratada de modo a ofuscar uma “condição feminina” já que elas eram forçadas a desempenhar o mesmo trabalho dos homens negros escravizados. O que as diferenciavam dos homens, e essa se torna uma diferença crucial, era o fato de terem seus corpos violados pelo estupro. Essa outra construção de feminino irá contrastar diretamente com a qual as mulheres brancas lutarão para derrubar: a da mulher frágil, submissa e dependente do homem.

“Proporcionalmente, as mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa na vida das mulheres negras da atualidade reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos da escravidão. Como escravas, o trabalho compulsório ofuscava todos os outros aspectos da existência dessas mulheres. Aparentemente, portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida das mulheres negras na escravidão seria uma valorização de seu papel como trabalhadoras.

O sistema escravista definia o povo negro como propriedade. Já que as mulheres, não menos do que os homens, eram vistas como unidades de trabalho lucrativas, para os proprietários de escravos, elas poderiam ser desprovidas de gênero. Nas palavras de um intelectual, “a mulher escrava era, antes de tudo, uma trabalhadora em tempo integral para seu proprietário, e apenas ocasionalmente esposa, mãe e dona de casa”. A julgar pela crescente ideologia da feminilidade do século 19, que enfatizava o papel das mulheres como mães protetoras, parceiras e donas de casa amáveis com seus maridos, as mulheres negras eram, praticamente, anomalias.”

É muito importante Davis iniciar sua análise pela escravidão porque a mão de obra escrava representava muito para a economia da época e mostra como o racismo é um elemento estruturante e deve ser tido como fundamental para uma análise profunda de sociedades com herança escravagista. Uma análise econômica deve passar necessariamente por essa questão pelo fato do racismo ser uma de suas bases de sustentação.

Guardadas as devidas proporções, podemos falar sobre essa relação no Brasil, país com mais de 354 anos de escravidão negra e último do mundo a aboli-la. Logo, não se pode fazer uma leitura de opressão de classe que desconsidera o racismo, elemento fundante dessa sociedade. Assim como da opressão de gênero. Angela Davis consegue capturar de forma profunda e sofisticada as nuances das diferentes formas de opressão e mostrar como elas agem e ainda constituem a sociedade.

Davis vai apontar a relação direta entre escravismo e trabalho doméstico, que no Brasil ainda se mantém fortemente sendo um trabalho feito em sua maioria por mulheres negras. Do mesmo modo, a escravidão foi usada como modelo para a precarização do trabalho para a população negra.

“Devido ao sistema de contratação de pessoas encarceradas, a população negra foi forçada a representar o mesmo papel que a escravidão anteriormente lhe reservava. Homens e mulheres eram igualmente vítimas de detenções e prisões sob os menores pretextos – para que fossem cedidos pelas autoridades como mão de obra carcerária. Se os proprietários de escravos estabeleciam limites à crueldade com que exploravam sua ‘valiosa’ propriedade humana, esse tipo de precaução não era necessário para os proprietários de terras que empregavam a mão de obra carcerária negra por períodos relativamente curtos. ‘Em muitos casos, detentos doentes eram forçados a trabalhar pesado até caírem mortos’ [Herbert Aptheker, A Documentary History, Vol. 2, cit., p. 689. Texas State Convention of Negroes, 1883.].”

Davis explica que a escravidão foi utilizada como modelo para o sistema de aluguel de condenados que exploravam homens e mulheres juntos.

“Essa distorção do sistema de justiça criminal era opressiva para toda a população saída da escravidão. Mas as mulheres eram especialmente suscetíveis aos ataques brutais do sistema judiciário. Os abusos sexuais que elas sofriam frequentemente durante o período de escravidão não foram interrompidos pelo advento da emancipação. Na realidade, ainda constituía uma verdade que “mulheres de cor eram consideradas presas autênticas dos homens brancos” – e se elas resistissem aos ataques sexuais dos homens brancos, com frequência eram jogadas na prisão para se tornar vítimas de um sistema que era um “retorno a outra forma de escravidão” [W. E. B. DuBois, Black Reconstruction in America, cit., pp.698-9].”

Durante o período pós-escravidão, as mulheres negras trabalhadoras que não enfrentavam a dureza dos campos eram, em sua maioria, obrigadas a se tornarem serviçais domésticas. Sua situação, assim como a de suas irmãs que trabalhavam em sistema de parceria ou das operárias encarceradas, era marcada pelo selo da escravidão. Aliás, a escravidão tinha sido chamada, com eufemismo, de “instituição doméstica” e as escravas eram designadas pelo inofensivo termo “serviçais domésticas”. Aos olhos dos antigos proprietários de escravos, “serviço doméstico” devia ser um termo polido para uma ocupação servil que não estava nem a meio passo de distância da escravidão. Enquanto as mulheres negras trabalharam como cozinheiras, amas-secas, camareiras e domésticas de todo tipo, as mulheres brancas do Sul rejeitaram unanimemente esse tipo de trabalho.

Nas outras regiões, as mulheres brancas que trabalhavam como domésticas eram geralmente as imigrantes que, como suas irmãs ex-escravas, eram obrigadas a aceitar qualquer emprego que conseguissem encontrar.”

Davis é uma grande crítica do sistema judicial e tem realizado discussões acerca do abolicionismo penal justamente por entender sua relação com a escravidão e ser um mecanismo de encarceramento em massa da população negra. Levando em consideração que nos últimos anos aumentou significativamente o número de mulheres negras encarceradas tanto no Brasil como nos EUA, Davis evidencia o fato importante de também se pensar a categoria de gênero nessa equação.

Em “A prisão como fronteira: uma conversa sobre gênero, globalização e punição”, Davis diz “[…]estamos reconceitualizando a relação entre o Complexo Industrial Carcerário e a globalização – desde uma discussão de como a prisão está sendo afetada pela globalização da economia (em que a prisão se encaixa na globalização) até a utilização da prisão como uma instituição histórica contingente que não só prognostica/pressagia a globalização, mas nos permite pensar hoje sobre as intersecções entre punição, gênero e raça, dentro e além das fronteiras dos Estados Unidos”.

Davis enfatiza a importância de se pensar as intersecções das opressões, como a combinação delas colocam grupos em situações de maior vulnerabilidade social e como agem de forma entrecruzada de forma que não é possível hierarquizá-las.

“As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mutuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras.”

Esse olhar interseccional das opressões faz com Angela Davis realize um diagnóstico sofisticado da sociedade entendendo a não possibilidade de pensar as categorias de raça, classe e gênero de forma isolada. Davis se mostra aberta às diferenças e as consideram importantes para se pensar outro modelo de sociedade. A ativista pensa as diferenças como fagulhas criativas que podem auxiliar a criar pontes de comunicação com pessoas de outros campos. Para ela é necessário não forçar todas as pessoas a concordar com uma determinada forma de pensar e a respeitar essas diferentes formas.

Estudar Angela Davis é tarefa essencial para nos aprofundarmos nas questões de nosso tempo. Suas obras revelam um olhar apurado, uma perspectiva revolucionária sempre por viés anti capitalista, sexista e antirracista. Importante também acompanhar suas entrevistas, como a que deu em 2014 para Alice Harrold e Olivia Blair quando do Seminário sobre Stuart Hall na qual foi a conferencista principal. Entre variados temas como o movimento Occupy! e o sistema prisional, fala sobre a cantora pop Beyoncé.

“Claro que, quando se fala em indústria corporativa de cultura de massa e da mercantilização de corpos e da música – claro que tudo isso está posto, mas eu realmente gostei do fato de Beyoncé ter trazido uma das mais interessantes escritoras do nosso tempo, na minha opinião, Chimamanda Ngozi Adichiee – que tenha sampleado o seu discurso sobre feminismo. Estou certa de que muitas mulheres jovens e, espero, homens jovens ou pessoas jovens que não necessariamente se identifiquem como homens ou mulheres se comoveram com isso, para, pelo menos, começar a pensar sobre o que pode significar o feminismo. Isto significa que eles podem ser conduzidos por uma jornada que lhes permitirá adotar uma noção mais ampla do que significa o feminismo, suas metodologias e suas abordagens com relação à militância e à pesquisa. Estou confiante de que ela tocou algumas pessoas com isso.”

Davis ainda se põe a discutir sobre nosso tempo. Uma ativista, intelectual cuja obra e vida foram colocadas para pensar a transformação da sociedade de modo fundamental. Entre várias concepções de utopia pensadas por alguns escritores e intelectuais, a de Davis nos guia para a construção de um modo se interligar as lutas rompendo com uma visão ortodoxa e com a hierarquia de vidas colocada pela lógica opressora:

“Eu realmente penso que utopia é quando a gente se move em novas direções e visões. Utopia no sentido de que necessitamos de visões para nos inspirar e ir para frente. Isso tem que ser global. Precisamos achar um modo de dar conta e saber como vamos interligar nossas lutas e visões e chegar a algumas conclusões sobre como desenvolver novos valores revolucionários e, principalmente, como desatrelar valores capitalistas de valores democráticos.”

*O livro será lançado no segundo semestre deste ano pela Boitempo e contará com um prefácio para a edição brasileira de Djamila Ribeiro.