Não dói o útero, dói a alma

Dois casos de estupro coletivo abalaram o país nesta semana. Uma jovem de 17 anos foi estuprada por mais de 30 homens no Rio de Janeiro. Outra, de 16, no Piauí, foi vítima de cinco homens. A primeira teve hemorragia interna e uma ruptura na bexiga, a segunda foi encontrada horas depois do crime ferida e amordaçada com a própria calcinha. “Não dói o útero, dói a alma”, disse a de moça de 17anos depois de sair do hospital e voltar para casa com a família.

Por Mariana Serafini

Marcha das vadias - Reprodução

Dói a alma porque sabemos que vivemos em uma sociedade onde o estupro foi naturalizado. Todos os dias as mulheres recebem lições sobre como devem se comportar, se vestir, falar, caminhar, para se proteger porque sempre que um caso de estupro vem à tona, tentam, de alguma forma, culpar a vítima. Foram 33 homens, em nenhum momento um deles falou aos outros “o que é que nós estamos fazendo?”. Pelo contrário, eles fizeram, e mostraram com o orgulho o feito. Compartilharam vídeos e imagens do corpo da jovem dilacerado depois do estupro nas redes sociais e tiveram centenas de “likes” e comentários de aprovação.

Devemos refletir sobre o que fez estes homens se sentirem confortáveis para fazer o que fizeram e acreditar que não seriam punidos. É duro pensar que precisamos de um caso emblemático assim para refletir sobre a cultura de estupro. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, acontece um estupro a cada 11 minutos no Brasil. Um estupro a cada onze minutos! E apenas 10% dos casos são registrados porque normalmente as mulheres têm medo de denunciar o agressor. 

Tweet publicado por Danilo Gentili em sua conta oficial no microblog 

O estupro é o crime que mostra quem manda na sociedade. É o ato que permite ao homem mostrar que a mulher é inferior, que para ele não existe limites, ele pode invadir o corpo alheio porque a sociedade ensina todos os dias as mulheres a se defenderem e não os homens a não atacarem.

Os dois casos têm características em comum: as jovens estavam em festas, elas beberam e interagiram com seus agressores antes de serem atacadas por eles. E por conta disso choveu comentários machistas na internet que questionam o que elas fizeram para “merecer” um estupro. Não sejamos hipócritas, jovens saem para se divertir e na maioria das vezes isso significa ingerir bebidas alcoólicas em excesso e usar drogas ilícitas. Mas na sociedade patriarcal, cabe às mulheres serem belas, recatas e do lar. Se ultrapassarem este limite serão culpadas por qualquer tipo de violação que sofrerem porque a liberdade pertence aos homens, mesmo sobre um corpo que não seja o dele.

Camisetas da marca Use Huck, que pertencia ao artista Luciano Huck

Estes dois casos reacenderam o debate sobre um termo chamado “cultura de estupro”. O que é a cultura de estupro, afinal? Comerciais de cerveja, preservativos e marcas de grife que mostram com naturalidade uma mulher submissa servem para fortalecer a cultura de estupro. Comentários “engraçados” (que não tem nada a ver com piada e sim com machismo) de humoristas famosos endossam a cultura de estupro. Erotização infantil contribui para a cultura de estupro. Enfim, uma sociedade que questiona a vítima e não o agressor, foi moldada por uma cultura de estupro.

Estes crimes nos fazem refletir sobre como devemos agir enquanto sociedade. No mesmo dia que os dois casos vieram à luz, o ministro interino da Educação, Mendonça Filho (DEM) recebeu o ator Alexandre Frota para apresentar uma pauta ao ministério. Frota é o ator que confessou ter estuprado uma mulher durante um programa de humor, apresentado por Rafinha Bastos, transmitido em rede nacional (veja o vídeo no final do texto). À época muito se falou sobre “não levar isso a sério, ele só quer mídia”. Não importa o que ele pretende ao contar isso fazendo piada. Importa o que isso causa: ele empodera criminosos.

Em meio à crise política e o golpe em curso no país, o deputado Jair Bolsonaro exaltou o torturador Brilhante Ustra durante a votação de impeachment da presidenta Dilma na Câmara Federal. Ustra é o único oficial do exército condenado por tortura pela justiça brasileira, uma das atrocidades praticadas frequentemente contra as mulheres presas por ele era o estupro. Este é o mesmo deputado que emitiu a frase "não te estupro porque você  não merece" à deputada Maria do Rosário (PT).

Não bastasse isso, Bolsonaro, junto com outros deputados da Bancada Evangélica, entre eles Marco Feliciano, defendem um projeto de lei que dificulta o atendimento de vítimas de estupro no SUS. Eles oficializam a “culpa das mulheres” e colocam em xeque a palavra de quem sofreu a violência.

Ao mesmo tempo, temos no Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes que concedeu habeas córpus ao médico Roger Abdelmassih, condenado a 278 anos de prisão por ter estuprado 52 mulheres, todas clientes de seu consultório.

Apenas 48 horas depois que o vídeo da jovem carioca foi divulgado o presidente interino Michel Temer decidiu se posicionar sobre o caso e “prestar solidariedade à vítima”. Melhor teria sido não extinguir a Secretaria Nacional das Mulheres, criada para desenvolver políticas públicas de proteção e facilitar a orientação às vítimas de violência.

Melhor teria sido também não montar uma equipe ministerial composta apenas por homens brancos. Isso não acontecia desde a gestão do ditador Emílio Garrastazu Médici, findada em 1974.

Os dois crimes que chocaram o país são resultado de uma sociedade que não empodera suas mulheres. Nenhuma de nós pode imaginar o que essas duas meninas sentiram. Pensamos na dor, na humilhação, no medo, na vergonha, mas jamais teremos dimensão do quanto a vida delas ficará marcada para sempre. Não podemos mudar o que aconteceu, infelizmente, mas podemos lutar juntas para que a cultura de estupro acabe agora. Podemos lutar juntas para não aceitar os retrocessos apresentados pelo governo golpista que atinge diretamente às mulheres. Devemos lutar juntas para que mais políticas públicas sejam desenvolvidas a fim de proteger as mulheres e punir os agressores.

Alguns dos homens que participaram do crime no Rio já foram identificados pela polícia. A vítima está tentando se recuperar em casa, ao lado da família, e recebeu mensagens de solidariedade e apoio de milhares de pessoas. O Ministério Público recebeu mais de 800 denúncias de internautas que viram em suas redes os vídeos e as imagens compartilhados pelos algozes. Uma comoção nacional nos faz lutar contra este crime, mas devemos fazer isso todo os dias, até que nenhuma mulher mais seja vítima de qualquer tipo de violência simplesmente pelo fato de ser mulher. 

Assista ao vídeo de Alexandre Frota: