Paulo Moreira Leite: Denúncia contra Dilma é nocauteada 

Se o impeachment estivesse submetido a um debate responsável pela Câmara de Deputados, a discussão teria tomado um outro rumo no final da tarde de segunda-feira (4), quando José Eduardo Cardozo terminou uma intervenção de uma hora e 50 minutos na qual fez a defesa de Dilma Rousseff.

Por Paulo Moreira Leite*, em seu blog

Cardoso na comissão do impeachment - Foto: Alex Ferreira / Câmara dos Deputados

Você pode achar que a palavra de Cardozo, advogado-geral da União depois de ter passado os últimos cinco anos como ministro da Justiça, deve ser colocada sob suspeita em função dos cargos que ocupou. Pode estar convencido de que estamos diante de um espetáculo cínico, onde todas as mentiras se equivalem, todos os personagens são farsantes e todas as explicações não passam de pura fraude. A verdade não é esta.

Por mais baixa que seja a credibilidade dos personagens envolvidos, o debate sobre impeachment envolve a apresentação de provas de crime de responsabilidade contra a presidenta. Caso elas existam, é mais do que razoável que a Câmara encaminhe ao plenário um voto favorável à abertura de um pedido de investigação sobre a presidenta. Caso contrário, o pedido deve ser arquivado e ponto final.

“Onde está o ilícito?”, perguntou Cardozo, mais de uma vez, em seu depoimento. “Onde está a má fé?”

As questões fazem sentido depois que a AGU sustentou um ponto importante. Não é que faltem provas para sustentar uma denúncia de crime. O problema é anterior. A denúncia sequer conseguiu definir um crime para ser provado, demonstrou Cardozo.

Ele mostrou que a denúncia das chamadas “pedaladas fiscais” como uma prática irregular de crédito deixa de fazer sentido quando se considera que envolviam despesas de programas sociais e eram realizadas através de uma conta suprimento na Caixa Econômica, com resultados variáveis conforme os gastos mensais. Quando as despesas eram maiores que os depósitos, o Tesouro pagava juros. Quando eram menores, a Caixa pagava. Cardozo lembrou que, ao final de cada exercício, observou-se uma surpresa: com impressionante regularidade, os gastos com programas sociais geravam juros positivos para o Tesouro. É verdade, ainda que tenha evitado mostrar números. Se o tivesse feito, teria lembrado dados impressionantes, que já publiquei uma vez neste espaço, em outubro do ano passado. Exemplos:

2011 …. R$ 241.578.128,64

2012 …. R$ 188.371.711,48

2013 …. R$100.580. 459,23

2014 …. R$ 141.692.598,98

O outro ponto considerado na denúncia – e que cabia responder na Comissão – envolvia os créditos suplementares. A acusação era que o governo havia feito despesas sem autorização, o que seria proibido pela Lei de Responsabilidade. O problema, demonstrou Cardozo, é que os créditos suplementares não implicam em elevação de despesas do governo, pois não passam da realocação de recursos dentro do orçamento de um mesmo ministério. Num exemplo didático, lembrou que é a mesma situação do sujeito que faz a lista de compras para a feira e, no meio do caminho, decide alterar a lista de mercadorias que serão adquiridas – sem modificar o saldo final.

Ele também esclareceu que esse tipo de alteração, corriqueira em qualquer governo, sempre foi autorizada pelo TCU e, no caso de Dilma, só eram assinadas depois de aprovadas por duas dezenas de técnicos de várias assessorias. Conforme a jurisprudência brasileira, estes cuidados prévios impedem que a chefe de governo venha a ser acusada por esses gastos – mesmo que, porventura, eles venham a ser considerados ilegais, o que nunca foi o caso.

Este cuidado permitiu a Cardozo lembrar a verdade mais importante sobre o impeachment. Não se trata de um processo com bases jurídicas sólidas, mas uma operação política rasteira e unilateral, pequena, embora de consequências gigantescas para o país, que só foi iniciado pelo suíço Eduardo Cunha depois de ter ficado claro que o Partido dos Trabalhadores não iria lhe fornecer os três votos que necessitava para livrar-se de uma investigação que pode cassar seu mandato.

A insistência de Cardozo na crítica a Eduardo Cunha tem um motivo didático – e talvez seja a razão mais importante para se mostrar o absurdo da tentativa de cassar a presidente. Ajuda o país a recordar que o debate sobre o impeachment é uma manobra artificial, contra uma presidenta cuja honestidade não se coloca em dúvida. Sua utilidade real não envolve punir um único gatuno de Brasília. Apenas acoberta um político comprovadamente envolvido em práticas de corrupção, que operou uma barganha indecente à vista de todos: a condenação de uma presidenta inocente, mas detestada pela mídia grande, em troca de eventuais benefícios em seu próprio processo. Por que isso ocorre? Porque interessa à oposição e aos adversários do governo.

“Onde está o ilícito? Onde está a má fé?”

Não é difícil responder.