Três encontros com Umberto Eco

Encontrei-me com Umberto Eco todas as vezes que ele lançou um romance. Nunca nos vimos, é bem verdade, o que não impediu que nos encontrássemos.

Por Joan Edesson de Oliveira*

Umberto Eco

Quando um escritor traz uma obra à vida ele estabelece toda uma rede de encontros, de parcerias e de comunhão com os seus leitores. Uns mais, outros menos. No caso de Eco, mais, bem mais do que muitíssimos outros. A maioria dos seus romances estabelece ligação imediata com o leitor. E olha que ele não é o que poderíamos chamar de uma leitura fácil, antes pelo contrário. Mas, falava eu dos encontros com Umberto Eco, agora que ele se foi, mais particularmente sobre três deles.

Meu primeiro encontro se deu em torno de O nome da rosa. Duas fascinações e uma paixão ligaram-me de imediato ao romance: o medievo europeu e a história da igreja sempre me fascinaram; os livros constituem, ainda hoje, a paixão permanente da minha vida. Os três temas estão presentes no romance.

Não vou fazer análise crítica da obra mas, tão somente, fazer um exercício de memória, lembrar porque gosto tanto desse livro. Gosto dele porque é impossível não gostar de Guilherme de Baskerville, humanista e renascentista tateando nas trevas da igreja medieval. Amante do conhecimento e da sua divulgação, defensor de que o conhecimento produzido deve vir à lume e ser partilhado por todos, Guilherme busca, nas suas próprias palavras, a verdade. Gosto do livro por causa do venerável Jorge de Burgos, cego, diretor da Biblioteca Nacional da República Argentina… desculpem-me, fiz confusão com outro Jorge. Ou serão a mesma pessoa?

Gosto de O nome da rosa porque nele existem homens como Bernardo Gui, um personagem real e fictício ao mesmo tempo, um homem obcecado em encontrar culpados e em combater a heresia, comparável a determinados magistrados de nossos tempos, em sua desmesurada fé e crença na culpa do outro, ainda que o crime não exista. Para Gui, se havia um culpado, o crime apareceria, ainda que arrancado sob tortura. Gui, talvez, seja o mais atual dos personagens desse romance.

Gosto do livro por inúmeros motivos, pelo embate entre a filosofia e a religião, pelo uso da lógica, pela discussão sobre o papel de Aristóteles, pelo delicioso debate sobre o riso de Cristo e, mais do que qualquer um dos motivos anteriores, gosto do livro pela biblioteca da abadia, pelo seu labirinto, pelo finis Africae e pelos tesouros que ela guardava. Quase chego a compreender o venerável Jorge. É possível que, para que alguns daqueles livros permanecessem ocultos, valesse a pena matar ou morrer. Gosto, enfim, de O nome da rosa, porque é daqueles romances que não se esquecem, e que merecem ser lidos ao menos uma dúzia de vezes.

O segundo dos mais marcantes encontros com Umberto Eco se deu em Baudolino. Sou um contador de mentiras, e lamento muito não ter o talento necessário para contador de histórias, embora a primeira característica, segundo Oto, seja condição para a segunda. O bispo Oto, tio do imperador Frederico Barba Ruiva, aconselha Baudolino e diz que ele é “um mentiroso nato”. Oto vai além e diz que não censura Baudolino: “Se queres transformar-te num homem de letras, e, quem sabe um dia, escrever Histórias, deves também mentir, e inventar histórias, pois senão a tua História ficaria monótona. Mas terás de fazê-lo com moderação.

O mundo condena os mentirosos que só sabem mentir, até mesmo sobre coisas mínimas, e premia os poetas que mentem apenas sobre coisas grandiosas”. Baudolino resolve ouvir os conselhos de Oto e deseja tornar-se um mentiroso perfeito. Os diálogos de Oto com Baudolino substituem muitos dos tratados sobre a literatura que chegaram até nós. Literatura é invenção e, sob esse prisma, é mentira. O mestre Ariano Suassuna repetia muito que seu personagem preferido era Chicó, um mentiroso, e se assumia como um contador de mentiras. O escritor é um ilusionista, aquele que, como em Pessoa, “finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”. Esta ilusão do narrador está presente por toda a obra.

Baudolino, mais do que um romance, é um tratado sobre a relação entre a história e a literatura, com seu personagem principal a testar permanentemente os tênues limites entre ambas. No leito de morte Oto dá os últimos conselhos a Baudolino: “Atenção, não peço que testemunhes o que considerares falso, que seria pecado, mas que testemunhes falsamente o que julgas verdadeiro – o que constitui ação virtuosa, pois supre a falta de provas sobre algo que com certeza existe ou existiu”. Os conselhos de Oto atravessaram os séculos e são fielmente seguidos no presente, não por literatos e contadores de histórias, mas por inventores de “fatos” que se dizem jornalistas e se aliam a juízes inspirados em Bernardo Gui.

De dois livros diferentes de Eco saem personagens que passeiam alegremente pelos dias atuais. O que mais me cativou, entretanto, nesse segundo encontro que narro aqui foi, mais uma vez, uma fala de Oto à beira da morte, dirigindo-se a Baudolino. “Em Paris, hás de estudar retórica e ler os poetas: a retórica é a arte de dizer bem aquilo que não é certo que seja verdade, e os poetas têm o dever de inventar belas mentiras”. Umberto Eco seguiu à risca o conselho do bispo, e inventou, em suas obras, belíssimas mentiras.

Dos encontros com Eco que mais me marcaram, o terceiro foi A misteriosa chama da rainha Loana. Embora seja absolutamente fascinado pelos dois outros livros dos quais falei, esse, ainda hoje, é inquietantemente perturbador.

Sou um homem assustado pela possibilidade do esquecimento. Embora, honestamente, acredite que a memória é, no mais das vezes, uma maldição, e que o esquecimento é uma dádiva, ainda prefiro ter sido amaldiçoado com uma boa memória do que correr o risco de ser abençoado com o esquecimento. O não conseguir lembrar me apavora. As experiências pessoais em torno do esquecimento fazem com que, cada vez mais, eu o tema.

Giambattista “Yambo” Bodoni, o livreiro, quase sexagenário, esquece de si. Não sabe quem é. Crê que o homem à sua frente no espelho do banheiro é ele próprio apenas porque sabe que os espelhos refletem o que há diante de si. Mas não lembra sequer do seu rosto, ou do seu nome. Estranhamente, Yambo guarda a memória das suas leituras. Personagens, fatos, datas, aquilo que foi lido por ele volta a sua memória. E é nos livros que ele vai reconstituir o seu passado, a sua história. Ele precisa redescobrir quem é ele, quem é Paola, sua mulher.

Yambo é, nas suas próprias palavras, um gato que caiu da janela e bateu o nariz. Como os gatos vivem do olfato, aquele que bateu o nariz não consegue mais reconhecer as coisas. Assim é o personagem, um gato que bateu o nariz e não reconhece mais sequer a si próprio. A única saída para ele é tentar reavivar a memória. Os livros da infância, os cadernos escolares, os brinquedos, vão lhe ajudar a reconstruir-se, embora sob o risco de a vida que ele agora reconstitui ser uma espécie de vida paralela a que ele viveu. Como o próprio Yambo, citando os elementos de Euclides, a vida que ele viveu e a que ele tentará reconstruir agora, poderão ficar marcadas pela “desesperada solidão das paralelas que nunca se encontram”.

De todos os livros de Eco que li esse foi o mais assustador e, contraditoriamente, o mais cheio de esperança. Assustador porque me colocou, sozinho, defronte a um dos meus maiores medos. E um alento, uma esperança, ao imaginar que esses inúmeros volumes que se desordenam ao meu redor na minha biblioteca podem, no caso de uma desgraça como a que se abateu sobre Yambo, ajudar no meu reencontro. Tenho a mania de reler os bons livros, alguns deles várias vezes. A misteriosa chama da rainha Loana é o único dos bons romances que nunca tive coragem de reler. Porque me causa medo. Mas também porque me obriga a lembrar sem precisar ler novamente. Enquanto o conseguir, terei a impressão de vencer o esquecimento.

Agora, Umberto Eco se foi. Nunca o vi, embora tenhamos nos encontrado tantas vezes. Certamente nos encontraremos novamente. Seus livros me observam da estante a minha frente. Temo ficar como Yambo, torço para que nunca aconteça. Se, por uma tremenda infelicidade, um desses acidentes me aconteça, rogo aos amigos, deem-me a ler A misteriosa chama da rainha Loana. Ainda lembrarei de Eco, certamente. E, certamente, ele ajudará a que eu me lembre de mim mesmo.

Joan Edesson de Oliveira é educador