Argentina: Casa tomada

Não fosse algum pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada. (Julio Cortázar)
 
Há dois meses e poucos dias da posse de Maurício Macri, nada foi surpreendente, suas decisões políticas, essencialmente no plano econômico, não surpreenderam a ninguém. Macri foi eleito pelo establishment e com ele está cumprindo todo o previsto.

Por Guadi Calvo*, para o Vermelho
 

Mauricio Macri - Reprodução

Há pouco mais de 60 dias que está na Casa Rosada (sede do poder Executivo argentino), deu um giro de 180º sobre as políticas do governo da presidenta Cristina Kirchner e do presidente Néstor.
Absolutamente todas suas medidas foram para realizar uma monumental transferência de capital desde os setores populares para os mais ricos do país.

O aumento desproporcional dos alimentos e das tarifas dos serviços públicos (eletricidade, gás, água e transporte) que arrastam a outros setores da economia colocaram as classes baixas e média do país novamente em um cenário que acreditávamos estar superado. Enquanto isso, os setores empresariais agrícolas e agroexportadores se veem beneficiados com retirada de imposto.

O atual governo de agora em diante tem uma única explicação: tudo é culpa do governo anterior, “a pesada herança” se converteu em seu programa de governo.

O ajuste dos preços e do dólar lançarão uma sociedade dilacerada por décadas de altíssima inflação uma vez mais em um espiral inflacionário que segundo os gurus do governo chegará a 25% durante 2016 e segundo economistas não tão comprometidos com o macrismo, poderá disparar até 40%.

Macri e seu grupo de gerentes (80% dos funcionários que atendem por ministros, secretários de Estado e seus subsecretários, são provenientes da atividade privada: grandes empresas nacionais, estrangeiras e bancos de primeira linha, nenhum deles renunciou ao cargo na empresa, obviamente), têm governado em benefício dos grupos de poder concentrado, demolindo leis e disposições com golpes de decreto de necessidade e urgência (DNU), segundo um dos constitucionalistas mais respeitados e prestigiados do Fórum, Eduardo Barcesat: “Estes DNU são mais que suficientes para julgamento e remoção por juízo político” [de Macri].

Os operadores políticos de Macri têm aprendido, nestas poucas semanas, a manter-se no poder, para além da constante baixa de avaliação apresentadas nas pesquisas sobre o atual governo.

O quadro político que seus assessores tem tentado armar parece dar a ele algum ar como que para se manter no governo apesar dos embates que se aproximam. Com regalías obviamente desconhecidas públicamente, um grupo importante (entre 12 e 16) de deputados da Frente Para a Vitória, a estrutura política do kirchnerismo está se dividindo. Apesar desta perda o bloco kirchnerista continua sendo o majoritário com 81 deputados, desta forma o macrismo poderá ter outro tipo de alianças, para conseguir aprovar algumas de suas leis muito passíveis de discussões. Também muitos governadores peronistas, fundamentalmente na província de Salta, Juan Manuel Uturbey, que tem muitas aspirações presidenciais tem se distanciado da presidenta Cristina, tentando se posicionar frente à sociedade como um homem admirável, civilizado, distante do “bestial” kirchnerismo.

As perseguições políticas estão na ordem do dia, já foram despedidas cerca de 75 mil pessoas, tanto de postos públicos como privados, em sua maioria suspeitos de simpatizar com o antigo “regime”.
Enquanto os alimentos e serviços públicos sofrem aumentos siderais, os trabalhadores são pressionados para parar os protestos porque os eternos sindicalistas argentinos já aderiram ao novo governo e traíram seus representados. Obviamente que isso não surpreende a ninguém, personagens como Hugo Moyano, Luis Barrionueo, que na juventude foram suspeitos de participar junto à ditadura de sequestros, tortura e assassinato de militantes populares, hoje se associam a Macri como estiveram ao lado de Menem.

A tentação autoritária.

Macri e seus economistas, emergidos das mais pestilentas latrinas do neoliberalismo argentino, como Alfonso de Prat-Gay, atual ministro da Fazenda e Finanças Públicas; Federico Sturzenegger, presidente do Banco Central e Carlos Melconian, presidente do Banco Nación, que fugiram de operadores bancários por lavagem de dinheiro e fugas de capitais durante os governos kirchneristas se formaram junto a Domingo Cavallo, ministro de economia de Carlos Menem e presidente do Banco Central em plena ditadura militar, para estatizar a dívida privada aumentando em mais de 24 milhões de dólares a dívida externa. Entre as empresas que foram liberadas de suas dívidas figuram Acindar, do ex-ministro de Economia da ditadura, Alfredo Martínez de Hoz; Loma Negra, da família Fortabat; Companhia Naviera, da família Pérez Companc e a automotiva Sevel do Grupo “Macri”.

Não é necessário ser um analista genial para entender que o plano de ajuste, recessão e demissões que trazem nos portfólios essa laia antinacional só pode ser sustentado com um monumental plano de repressão, que foi colocado em marcha horas depois da posse de Macri.

Na cabeça do ministério de Segurança macrista está Patricia Bullrich, casada com Guillermo Yanco, um obscuro personagem da política “por baixo dos panos”, cujo trabalho legal é dirigir um museu da comunidade judia de Buenos Aires, além de ser presidente do Instituto de Estudos Argentinos (Idear) e membro da Rede de Partidos Políticos, uma organização impulsionada pelo Instituto Nacional Democrata para Assuntos Internacionais (National Democratic Institute), criado em 1983 pela ala de direita do Partido Democrata norte-americano que através de outras fundações tem presença em 50 países. Recebe financiamento, entre outras fontes, da Fundação Nacional para Democracia, criada por Ronald Reagan para investir na política interna de dezenas de nações do mundo.

Bullrich esteve gravemente envolvida no suicídio do fiscal Alberto Nisman, caso que tentaram a todo custo acusar a presidenta Cristina Kirchner. No telefone celular de Nisan estavam registradas mais de 70 chamadas que a então deputada Bullrich fez ao fiscal.

Desde dez de dezembro a Argentina deixou de ser um lugar seguro para dirigentes sociais, jornalistas e políticos que não aderiram ao regime de Macri. A censura e perseguição a jornalistas estão na ordem do dia, não só suspendem a pauta publicitária oficial, como extorquem donos de meios de comunicação para aderirem ao regime. São tiradas do ar as cadeias internacionais que possam ser críticas como é o caso da RT (Televisão Russa), ou a popular Telesur [da Venezuela]. A repressão com gases, balas de borracha e chumbo voltaram à moda na Argentina, cada dia se conhece novas repressões contra os trabalhadores que saem a protestar por terem perdido seus empregos, ou pelos altíssimos custos de vida, só a eletricidade aumento entre 300 e 400%. Espera-se uns 200% de aumento no transporte e números similares a outros serviços públicos.

O tripé protetor do regime: o Grupo Clarín, maior concentração midiática do mundo que foi o pior inimigo de Cristina Kirhcner e recebeu novas regalias com o novo governo, ignora as arbitrariedades e alenta ao público a atacar as novas disposições, culpando de tudo o governo anterior. O outro pé deste macabro projeto é o poder judicial, onde o presidente da Corte Suprema, Ricardo Lorenzzeti, se converteu em um comissário político do regime, pactuando com a impunidade. E finalmente, o poder econômico que até agora só se beneficiou e nada fez para dar oxigênio a Macri, que já se sabe, a partir de março seu governo começará a ruir.

A repressão policial diária, detenções como a da dirigente indígena Milagro Sala, as demissões, tentativas de nas próximas semanas envolver Cristina e alguns de seus colaboradores mais próximos, como é o caso de Aníbal Fernandez, apontam um governo que controla pelo medo, porque se não for assim, Macri sabe que seus dias estão contados e terá que abandonar correndo a casa que tomou.