Eduardo Fagnani: O mercado contra a cidadania

A recessão é funcional para o aprofundamento do projeto liberal exigido pelo mercado. As projeções dos agentes privados anteveem três anos consecutivos de contração da atividade econômica (3,7%, 3,5% e 0,5%, respectivamente, em 2015, 2016 e 2017).2

Por Eduardo Fagnani*

O mercado contra a cidadania

A queda da atividade econômica embutida nessas projeções elide as receitas governamentais e torna sempre distante o objetivo do ajuste fiscal das contas primárias (não financeiras). Ao mesmo tempo, taxas de juros básicos elevadas ampliam as despesas financeiras e impõem novos ciclos de cortes de despesas correntes e investimento para cobrir o crescente endividamento financeiro. A deterioração das contas públicas passa a ser a senha para a implantação das chamadas “reformas estruturais”, pois exige mais cortes na despesa não financeira para saldar uma parte desses dispêndios. Esse ciclo não deixa outra saída a não ser impor cortes severos na estrutura de gastos governamentais.

É neste contexto que, hibernados por mais de uma década de crescimento econômico, os defensores do liberalismo ressuscitaram, pois se abriu uma nova temporada de oportunidades para dar sequência a um processo iniciado há mais de duas décadas. Voltam a apontar suas bazucas para os direitos sociais consagrados pela Constituição de 1988. Construções ideológicas dirigidas ao senso comum sentenciam que os gastos sociais assegurados pela Carta de 1988 são o principal desestabilizador do equilíbrio fiscal. Afirmam que sem a “revisão do pacto social da democratização” não haverá solução para a estabilidade da dívida pública. Em última instância, quando deliberam que “o País não cabe no PIB”, estão dizendo que as demandas sociais da democracia não cabem no orçamento.

É intrigante que tais atores não escrevam uma linha sequer sobre a injustiça tributária, a sonegação de impostos, a estrutura de subsídios e as isenções concedidas ao setor privado. Também não abordam a questão financeira, principal desajuste da economia nacional.

Além do SUS (acessível para mais de 70% da população), as transferências monetárias da Seguridade Social (previdência, assistência social e seguro-desemprego), um dos pilares da proteção social brasileira, consomem cerca de 10% do PIB (apenas 1/3 desse montante é pago pela sociedade como um todo, por meio de impostos) e beneficia diretamente mais de 40 milhões de pessoas (indiretamente, mais de 120 milhões de pessoas).

Em contrapartida, em 2015 o Brasil pagará cerca de 9% do PIB com juros (ante 6,5% em 2014), o que beneficia algumas centenas de rentistas. A pergunta a ser feita é o que não cabe no PIB? A proteção social de 40 milhões de pessoas e a saúde de 150 milhões de brasileiros ou a preservação da riqueza de um seleto grupo de abastados? Por que não enfrentam esta questão?

1. Nada de novo no front conservador

Na realidade, trata-se de mais uma etapa do longo processo de ataque às conquistas sociais de 1988, iniciada antes mesmo que a Constituição da República saísse da gráfica do Congresso Nacional.

Como se sabe, a partir de meados dos anos 70, emerge um movimento liderado pela oposição ao regime militar que formula um amplo projeto de reformas progressistas apoiado em três núcleos: a restauração do Estado Democrático de Direito; a construção das bases de um sistema de proteção social inspirado em alguns dos princípios do Estado de Bem-Estar Social; e, a concepção de estratégia macroeconômica direcionada para o crescimento com distribuição de renda.

Liderado por Ulysses Guimarães, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) teve papel destacado na construção dessa agenda. Uma versão consolidada desse projeto encontra-se no documento “Esperança e Mudança: uma Proposta de Governo para o Brasil” (PMDB, 1982). Após longa e difícil trajetória, a maior parte dessa agenda foi consagrada na Constituição de 1988, marco do processo civilizatório brasileiro. Nessa quadra, caminhou-se na contramão do mundo. O movimento social queria acertar as contas com a ditadura, e não havia campo fértil para que o já então hegemônico projeto neoliberal germinasse em nosso País.

Não obstante, as esperanças em torno do referido projeto reformista começaram a esvair-se na derrota da emenda parlamentar visando às eleições diretas para a presidência da República, em 1984. Desde então, as elites conservadoras, bases da ditadura militar, retomaram o fôlego e voltaram para o centro do poder, com o novo pacto conservador de transição.

Setores do mercado não assimilaram a vitória do movimento popular em 1988, mesmo se tratando apenas de garantir direitos sociais elementares para a construção de uma sociedade democrática e justa. Em última instância, o que sempre esteve em esteve em jogo é que essas forças políticas jamais aceitaram que movimento social capturasse parcela do orçamento do Governo Federal (cerca de 10% do PIB), a maior parte concentrada na Previdência Social (8% do PIB).

Não é por outra razão que, desde 1988, a Previdência Social passou a ser vista como a causa central do desequilíbrio das contas públicas. Recapturar esses recursos passou a ser tarefa obstinada. O vale-tudo implicou desde o descumprimento de dispositivos constitucionais até a construção de mitos (déficit, ausência de idade mínima, regras generosas, entre outros) dirigidos ao senso comum. Essa ofensiva inicia-se ainda durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), permanece nas décadas seguintes e ganha vigor em 2015.

2. Tentativas de contramarchas nos anos de 1980

Nessa trajetória não faltaram argumentos curiosos. Em 1988, por exemplo, Delfim Neto, deputado constituinte, chegou a afirmar que o benefício assistencial ao deficiente físico (Benefício de Prestação Continuada) seria “capaz até de estimular a autoflagelação, sobretudo entre as camadas mais pobres da população, como forma de sobreviver pelo resto da vida sem necessidade de trabalhar, em troca, por exemplo, de um dedo da mão ou do pé, o que é suficiente para caracterizar a situação de deficiente físico”.3 Diante da iminência de aprovação dos direitos sociais na Constituição, o líder do PFL (hoje Democratas) à época, deputado José Lourenço, chegou a pregar o fechamento da Constituinte por um ato de força do governo.4

Visões deste tipo eram rebatidas pelos democratas e defensores das conquistas sociais, à época. O senador Fernando Henrique Cardoso (FHC), por exemplo, afirmou que os benefícios aprovados representavam “o mínimo” e sublinhou o fato positivo de que o projeto de Constituição implicaria uma reorientação do gasto estatal, pois “o Estado deve parar de arrecadar de todos e dar aos ricos, pela via do subsídio”.5

O então Senador Roberto Campos afirmou que a Carta Magna “encerra duas curiosidades”. É ao mesmo tempo um “hino à preguiça” e uma “coleção de anedotas.” Representa um “estímulo à ociosidade”. Julgava-a como um ato de “anacronismo moderno”. Descreveu-a como um “misto de regulamento trabalhista e dicionário de utopias”, o “canto do cisne do nosso nacional-populismo” (CAMPOS, 1994).

Mas nada se compara a um ato emblemático do presidente José Sarney (1985-1990). Numa derradeira tentativa para modificar os rumos da ANC, Sarney convocou cadeia nacional de rádio e televisão para “alertar o povo e os constituintes” para “os perigos” que algumas das decisões contidas no texto aprovado no primeiro turno representavam para o futuro do país. A principal tese defendida era que o país tornar-se-ia “ingovernável”.6

O discurso de Sarney provocou a memorável defesa da ANC feita pelo deputado Ulysses Guimarães. A Constituição será a “guardiã da governabilidade”, sentenciou. Reportou-se a um conjunto de aspectos “inaugurais” do texto que seria submetido ao crivo da revisão constituinte. Em seguida, concluiu seu discurso fulminando, magistralmente, a tese do ‘desgoverno’:

“Senhores constituintes: a Constituição, com as correções que faremos, será a guardiã da governabilidade. A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida são ingovernáveis. A injustiça social é a negação do governo e a condenação do governo. (…) Repito: esta será a Constituição Cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros. Cidadão é o usuário de bens e serviços do desenvolvimento. Isso hoje não acontece com milhões de brasileiros segregados nos guetos da perseguição social. Esta Constituição, o povo brasileiro me autoriza a proclamá-la, não ficará como bela estátua inacabada, mutilada ou profanada. O povo nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo.” 7

Entre 1988 e 1990, diversas manobras foram utilizadas com o propósito de retardar a efetivação desses direitos e desvirtuar o espírito de alguns determinados dispositivos constitucionais. Dentre elas, destaca-se o intencional descumprimento dos prazos constitucionais, visando a desfigurar ou postergar o início da vigência dos novos direitos (TEIXEIRA, 1991). Flagrantes inconstitucionalidades no desvio de recursos da Seguridade Social foram admitidas impunemente pelo então Ministro da Previdência, Jarbas Barbalho (PMDB).8

Destaca-se ainda o fato de que Maílson da Nóbrega, então Ministro da Fazenda, determinou que as receitas do Orçamento da Seguridade Social fossem capturados pelo Tesouro Nacional. O senador Almir Gabriel (PSDB-PA), relator do projeto da Seguridade Social da nova Constituição, denunciou a “inconstitucionalidade patente” da decisão, na medida em que a Constituição tornava bem clara a separação dos recursos provenientes das contribuições e os novos impostos resultantes das taxações sobre o lucro líquido das empresas e bancos. 9

3. Tensões entre paradigmas de política social (1990-2015)

A partir de 1990 se forma no Brasil “o grande consenso favorável às políticas de ajuste e às reformas propugnadas pelo Consenso de Washington”, como explica Fiori (1993:152-153). No plano interno, além do esgotamento do Estado Nacional Desenvolvimentista, assiste-se à remontagem da tradicional coalizão que tem sustentado o poder conservador no Brasil. Parlamentares da base de sustentação da ditadura selaram aliança com os democratas para garantir a “governabilidade” desses governos nos anos de 1990, direcionados para a implantação do projeto neoliberal.

No campo econômico, diversos autores sustentam que houve uma opção ‘passiva’ pelo modelo liberal. As elites dirigentes foram conquistadas pela convicção de que “não há outro caminho possível”. Desde então, nossos governos abriram mão das possibilidades de exercício de política macroeconômica ativa.

No campo social, o projeto neoliberal exigia a eliminação do capítulo sobre a “Ordem Social” da Constituição da República. O Estado Mínimo, hegemônico na agenda das instituições de fomento internacional, era incompatível com os valores do Estado de Bem-Estar recém-introduzidos pela Carta de 1988: seguro social versus seguridade social; focalização versus universalização; assistencialismo versus direitos; privatização versus prestação estatal direta dos serviços; desregulação e contratação flexível versus direitos trabalhistas e sindicais.

É desta perspectiva que poderemos perceber a força das ideias que procuram impor a focalização como a única política social possível para o Brasil. Programas focalizados, vistos como estratégica única para se alcançar o “bem-estar”, passaram a se contrapor às políticas universais.

Assim, o período 1990-2015 é marcado por uma longa etapa de tensões entre esses dois paradigmas. Essas tensões foram acirradas entre 1990 e 2005; arrefecem entre 2006 e 2014; e exasperadas em 2015.

3.1. O Período 1990-1992

O primeiro momento da contrarreforma liberal compreende o curto Governo Fernando Collor de Mello (1990-1992), quando seria desfechado o golpe final na “anacrônica” Carta de 1988. Isso porque a própria Constituição previa a revisão em 1993 por maioria simples dos votos. Essa revisão acabou não ocorrendo por conta do impeachment do presidente. Mas, enquanto aguardava a revisão constitucional, Collor lançou pesado arsenal para desfigurar o texto constitucional no processo de regulamentação da legislação complementar da Seguridade Social e seus componentes (Previdência Social, Saúde, Assistência Social e Seguro-Desemprego) e dos direitos sindicais e trabalhistas.

3.2. Período 1993-1994

O segundo momento da contrarreforma compreende o biênio 1993-1994. Sem condições políticas de retomar a ampla revisão constitucional, o Governo Itamar Franco, impôs novas contramarchas preparatórias ao Plano Real, com destaque para a implantação da Desvinculação das Receitas da União (DRU), que captura para o Tesouro Nacional 20% dos recursos constitucionais vinculados ao Orçamento da Seguridade Social, demais políticas sociais federais.

3.3. Período 1995-2002

O terceiro momento compreende o período 1995-2002. A reforma liberal do Estado e o ajuste macroeconômico ortodoxo, centrais da estratégia de FHC, fornecem o pano de fundo para o retrocesso social no mercado de trabalho e nas políticas universais. O ajuste fiscal restringia as possibilidades de se alcançar o patamar do gasto social necessário para suportar as conquistas de 1988. Por serem funcionais para o ajuste macroeconômico, os programas de transferência de renda focados nos “pobres” passaram a ser a única alternativa para o “desenvolvimento social”.

Além do ajuste fiscal, as políticas focalizadas como “estratégia única” abrem as portas para a privatização dos serviços sociais básicos. A ideologia prega que ao Estado cabe somente cuidar dos “pobres” (quem recebe até US$ 2 por dia). Os demais deveriam comprar serviços sociais no mercado, o que abre frentes de negócios ao capital financeiro.

Esses parâmetros mais gerais influenciaram os rumos da política social entre 1995 e 2002. É com esse pano de fundo que poderemos compreender o abandono da reforma agrária; o avanço da mercantilização das políticas sociais (saneamento, transporte público, saúde, previdência e educação superior); a ausência de política nacional de transporte público, habitação popular e saneamento; o esvaziamento do pacto federativo; as restrições ao gasto social, pela captura dos fundos públicos pelo poder econômico (DRU, Seguridade Social, Isenções tributárias).

Da mesma forma destacam-se os retrocessos dos direitos trabalhistas (KLEIN, 2003) e previdenciários. Nesse caso, a Emenda Constitucional n. 20/1998, desmontou o espírito das conquistas de 1988 e instituiu regras mais severas que as praticadas nos países da OCDE. Para justificar esse legado, além dos argumentos falaciosos de sempre, inovaram ao difundir a visão do aposentado como portador de ‘privilégios’ inaceitáveis, um verdadeiro ‘marajá’, que ameaçava a estabilidade recém-conquistada. O próprio presidente da República chamou-os de “vagabundos”.

Assim, é preciso ressaltar que a reforma da previdência que voltou a ser central na atual conjuntura, já foi feita em 1998. As atuais regras de idade mínima para a aposentadoria já são elevadas para a realidade brasileira. São superiores às de países desenvolvidos com realidade socioeconômica e demográfica que são muito superiores à brasileira (FAGNANI, LUCIO e HENRIQUES, 2007). Entretanto, isso não significa que não seja necessário pensar em mudanças que tenham efeito no longo prazo, em função do envelhecimento da população.

Também se destaca a manutenção da prática iniciada em 1989 de descumprir princípios fundamentais da organização e do orçamento da seguridade social e dos mecanismos que asseguram o controle social, todos previstos na Constituição da República.

3.4. O Período 2003-2005

O quarto momento de tensões entre paradigmas compreende o período 2003-2005. A eleição de Lula trazia esperança por mudanças do modelo liberal. Propostas apresentadas pelo PT em documentos como “A Ruptura Necessária” e “Outro Brasil é Possível” davam a tônica do “projeto alternativo”.

Mas, as primeiras contramarchas ocorreram durante a campanha eleitoral. A crise de confiança nos fundamentos da economia foi agudizada no último ano de FHC. O mercado financeiro internacional passou a apostar contra o Brasil. “Era uma verdadeira chantagem que os mercados faziam com os eleitores brasileiros”, afirma Belluzzo. 10 Nesse cenário, foi lançada a “Carta aos Brasileiros”, visando a acalmar os mercados. A esperança venceu o medo, mas o mercado impôs a continuidade da ortodoxia liberal.

O primeiro resgate da “Agenda Perdida”

Dada essa correlação de forças, a composição da equipe do Ministro da Fazenda não surpreendeu. O comando da pasta foi entregue para economistas do mercado, colaboradores de instituições de fomento internacionais e do governo anterior. O segundo escalão do Ministério da Fazenda contava, entre outros, com Joaquim Levy (Secretário do Tesouro), ex-funcionário do FMI, formado em Chicago que trabalhou no governo FHC. A secretaria de Política Econômica foi dada ao economista Marcos Lisboa que havia redigido a versão final da conhecida “Agenda Perdida” (IETS, 2002), consolidada por um grupo de economistas ortodoxos liderados por José Alexandre Scheinkman, da Universidade de Princeton (Affonso Celso Pastore, Armando Castelar Pinheiro, José Marcio Camargo Marcos Lisboa Ricardo Paes de Barros e Samuel de Abreu Pessôa, dentre outros).

Este documento surgiu porque Scheinkman aceitara assessorar o candidato Ciro Gomes à Presidência da República. Seu objetivo era apresentar uma agenda de reformas liberalizantes para enfrentar as causas da estagnação econômica. Mas o documento foi mal recebido até mesmo pelo candidato Ciro Gomes. Um de seus assessores julgou-a “excessivamente neoliberal”.

Não obstante, o Ministro da Fazenda resgatou a agenda de Scheinkman. Mas foi além: trouxe para o primeiro escalão do ministério o economista Marcos Lisboa. A “Agenda Perdida” passou a ocupar o centro da estratégia econômica e social do governo. Em abril de 2003, o Ministério da Fazenda divulgou o documento “Política Econômica e Reformas Estruturais” (BRASIL/MF, 2003). A versão final de ambos os documentos foi elaborada por Marcos Lisboa.

Aprofundando o ajuste fiscal

Passada a etapa do “ajuste necessário” e após três anos de ortodoxia, no final de 2005 o Ministério da Fazenda pretendia ampliar ainda mais o aperto monetário e fiscal. O chamado “Programa do déficit nominal zero” previa a obtenção do superávit nominal de 7% do PIB por um período de dez anos. Assim, em 2015, esperava-se que a relação dívida interna líquida/PIB caísse de 50% para 30%. Em vez de focar no denominador (crescimento do PIB), privilegiava o numerador (redução de despesas primárias) (FAGNANI, 2005).

De forma complementar, os defensores do ajuste preconizavam a redução da meta de inflação e a independência formal do BC. Para “amenizar os custos sociais da transição”, recomendavam que o governo concentrasse suas ações em políticas sociais focalizadas, em detrimento das políticas universais, tal como explicitava a “Agenda Perdida”.

Assim como hoje, a variável de ajuste repousava no sistema de proteção social. Em última instância, o ‘sucesso’ dependia da redução do gasto das políticas universais. Isso implicava uma nova rodada de reformas da Previdência Social e das restrições ao acesso do Benefício de Prestação Continuada (BPC) criado no âmbito da Lei Orgânica da Assistência Social (TAUFNER e GIAMBIAGI, 2007). Além disso, seria necessário aumentar a Desvinculação das Receitas da União (DRU), de 20% para 40% do total (GIAMBIAGI, 2006). Em suma, o ajuste repousava sobre a Seguridade Social. O economista Raul Veloso, foi direto ao ponto:

“O superávit primário acabou. (…) A única saída seria cortar despesas constitucionalmente obrigatórias – em bom português, previdência, saúde, educação e assistência social.” 11

Assim como hoje, a tese do país “ingovernável” voltou a ser reeditada pelos economistas do mercado. Um deles recomendou que todos os todos os esforços fossem concentrados “na mãe de todas as reformas, que será a previdenciária, sem a qual o país será inviável”.12

Na mesma perspectiva, Samuel Pessôa defendia a supressão da ordem social da Constituição, tal como o faz atualmente:

“O país não cresce porque o pacto social construído ao longo do processo de redemocratização da nossa sociedade e que teve seu ponto culminante com a Constituição de 1988, está produzindo este desempenho de baixo crescimento. (…) A economia só vai crescer a taxas maiores e de forma vigorosa se a sociedade estiver disposta a repactuar o pacto social” (PESSÔA, 2007).

A história mostrou que suas apostas não estavam corretas. O Brasil voltou a crescer e teve na Seguridade Social um dos fatores da expansão do ciclo de crescimento concentrado, em parte, na impulsão do mercado interno. Ao mesmo tempo, a Seguridade Social foi um dos pilares da distribuição da renda obtida no período recente (IPEA, 2012).

Naquela época o economista já ensaiava os mesmos argumentos que defende atualmente. Para ele, as conquistas sociais de 1988 gerariam “uma pressão cavalar sobre o gasto público” e, portanto, não haveria “solução” sem a eliminação desses direitos:

“O elemento mais importante do pacto social vigente no Brasil, hoje, é o conjunto de regras em vigor, que torna cidadãos elegíveis a rendas do setor público, como aposentadorias integrais para funcionários públicos, regras de aposentadorias do setor privado, regras de pensões vitalícias (…) universidade pública gratuita, e uma série de outros critérios que permitem que as pessoas tenham direito ao auxílio-doença, sejam elegíveis a seguro-desemprego, e por aí vai. Esse conjunto de direitos outorgados aos cidadãos (…) gera uma pressão cavalar sobre o gasto público. Portanto, o pacto social vigente na economia gerou um “equilíbrio” em que o gasto público cresce a taxas maiores que a taxa de crescimento do PIB” (PESSÔA, 2007).

Mas essas previsões também não se confirmaram. De meados da década passada até 2014, o País cresceu e, por conta disso, a relação dívida líquida/PIB baixou, de 51% para 35%.

Todavia, ocorreu um fato surpreendente. A proposta do “Programa do déficit nominal zero” foi criticada pela então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Para ela, se tratava de “plano rudimentar”, pois não atacava a questão central dos juros 13.

Condicionada por esses fatores, entre 2003 e 2005, a política macroeconômica seguiu, em essência, os parâmetros adotados pelo governo anterior. A continuidade da ortodoxia limitava as possibilidades das políticas sociais. Como no passado, continuou a haver antinomia entre a estratégia econômica e o desenvolvimento social. As tensões entre os paradigmas do Estado Mínimo e do Estado de Bem-Estar, presentes desde 1990, mantiveram-se acirradas.

3.5. O Período 2006-2014

Embora presentes, nesta quadra as tensões entre os paradigmas do Estado Mínimo e do Estado de Bem Estar Social arrefeceram. Houve curta trégua no longo processo de implantar a contrarreforma nos direitos sociais conquistados em 1988.

A partir de 2006, o projeto “social-desenvolvimentista”, formulado antes da eleição de 2002, foi parcialmente resgatado. Impulsionado pelo comércio internacional favorável, o crescimento voltou a ser contemplado na agenda. Mesmo sem alterar o “tripé” macroeconômico ortodoxo implantado por FHC em 1999, o governo optou por políticas fiscais e monetárias menos restritivas. Com a eclosão da crise financeira internacional de 2008, essa postura foi revigorada.

Medidas anticíclicas foram adotadas e os bancos públicos adotaram uma estratégia agressiva de ampliação do crédito, que dobrou entre 2003 e 2014 (de 24%, para 55% do PIB).

O crescimento teve repercussões positivas sobre o mercado de trabalho, transferências de renda da seguridade social e gasto social. Entre 2003 e 2014, cerca de 22 milhões de empregos formais foram criados; a taxa de desemprego caiu pela metade (de 12,3% para 5,5%); e o salário mínimo cresceu mais de 70% acima da inflação.

Entre 2001 e 2012, o total de benefícios diretos da Seguridade Social (Previdência Urbana e Rural; Benefício de Prestação Continuada; e Seguro-Desemprego) passou de 24 para 37 milhões, dois terços dos quais equivalentes ao piso do salário mínimo, cuja valorização elevou a renda desse contingente em mais de 70% acima da inflação.

Entre 2004 e 2010, o gasto social federal per capita passou de R$ 2.100,00 para R$ 3.325,00, aumento real de quase 60% (valores de 2010); em valores absolutos, passou de R$ 375 para R$ 638 bilhões; e em relação ao PIB, subiu de 13,2% para 15,5% (CASTRO et al., 2012).

O principal item de ampliação consistiu nas transferências de renda da seguridade social, sobretudo em função da valorização do salário mínimo. Mas, além das transferências monetárias às famílias, os gastos sociais também foram impulsionados na expansão da oferta de serviços sociais.

Mas os desdobramentos da crise financeira internacional (entre 2011 e 2014) limitaram o crescimento. Além disso, o rumo da economia seguiu trajetória errática: forte ajuste (2011); tentativa de retomar o crescimento (2012); recuo em função do “terrorismo econômico” difundido (2013 e 2014). Dentre os erros domésticos cometidos, destaca-se a política de isenções fiscais que minou as receitas públicas num contexto de desaceleração cíclica (em 2014, as isenções representavam cerca de 25% da arrecadação tributária federal).

Mesmo assim, a economia cresceu e distribuiu renda, fato inédito nos últimos 50 anos. Reconhecer esse fato não implica endossar a ideia de que teria sido implantado um novo modelo de desenvolvimento. Também é questionável a visão de que os governos progressistas eleitos no Brasil e em diversos países da América Latina seriam “pós-neoliberais”. Da mesma forma, um conjunto de problemas crônicos e estruturais não foi enfrentado, em grande medida por causa do modelo de transformação lenta que tem pautado a atuação dos governos do Partido dos Trabalhadores. De fato, tem razão André Singer,14 quando afirma que os governos petistas procuraram fazer a inclusão social “dentro da ordem”, “sem rupturas” por meio de “mudanças graduais”. Essa opção pelo “gradualismo extremo” explica, em grande medida, o fato de que muitos retrocessos nos direitos sociais, implantados nos anos de 1990, não tenham sido enfrentados pelos governos do PT.

Entretanto, esse breve ciclo de crescimento, derrubou diversos mitos da crença liberal. Argumentava-se que a questão financeira da previdência decorria exclusivamente do aumento “explosivo” das despesas. Como hoje, havia uma única saída: novas reformas para suprimir direitos.

A realidade confirmou que, ao contrário, essa questão financeira era agravada, sobretudo, pela retração das receitas governamentais em decorrência do baixo crescimento econômico.

Com o crescimento, houve forte recuperação do mercado de trabalho que potencializou a arrecadação previdenciária e o segmento urbano voltou a ser superavitário, fato que não ocorria desde 1996. Isso ocorreu a despeito da expansão quantitativa dos benefícios, bem como da forte recuperação real dos seus valores decorrentes da agressiva política de valorização do salário mínimo.

Ficou claro que o problema do financiamento refletia mais diretamente fatores exógenos (política econômica) do que fatores endógenos ao sistema (despesas com benefícios).

4. A nova ofensiva (2015)

A crise financeira internacional de 2008 alterou este cenário, trazendo abalo na confiança, destruição da riqueza, paralisação do crédito e contração da atividade em quase todo o globo. A queda dos preços das commodities, a crise do comércio internacional e o acirramento da competição capitalista, afetaram as contas externas dos países periféricos.

Mas, para os economistas liberais brasileiros o mundo caminhou bem entre 2009 e 2014, e os problemas econômicos foram frutos exclusivamente dos erros de gestão da política nacional. O “terrorismo” econômico intensificou-se com a proximidade das eleições. Era preciso desconstruir o governo e derrotar sua candidata.

A imprensa teve papel decisivo na construção de um cenário de “crise” que justificasse a adoção de medidas duras de ajustamento: ao dar espaço quase que exclusivamente para economistas que defendiam este diagnóstico, parcela relevante da imprensa ajudou no processo (eleitoralmente interessado) de convencer a sociedade de que o cenário seria de ameaça absoluta de caos.

Os dados, no entanto, não corroboram esta avaliação. A despeito da crise internacional e dos erros domésticos cometidos, o diagnóstico liberal acerca da gravidade da deterioração dos fundamentos econômicos não se sustenta. Diversos indicadores econômicos estavam satisfatórios, ou melhores, em relação à experiência internacional. 15

O principal argumento daqueles que falam em “crise terminal” da economia no final do primeiro mandato de Dilma Rousseff está relacionado ao déficit primário de 0,6% do PIB ocorrido em 2014. O fato de o Brasil não ter cumprido a meta fiscal de 2014 passou a ser o atestado do “desastre” fruto da “nova matriz econômica” eivada por práticas intervencionistas e ditas populistas.

Todavia, observe-se que nos últimos doze anos, o Brasil gerou expressivos superávits primários. Entre 2004-2013, a média anual foi de 3% do PIB e entre 2011-2013, essa média caiu ligeiramente (2,5% do PIB).

Na comparação internacional, o esforço fiscal brasileiro também não se mostra desajustado perante seus pares. Os países desenvolvidos, via-de-regra, incorrem em expressivos déficits primários durante o período 2009-2014, assim como as economias emergentes (Tabela 1).

Se um País que gerou superávit fiscal por mais de uma década e, num único ano, apresentou déficit primário de apenas 0,6% do PIB, está em “crise terminal”, e imerso em dramática “irresponsabilidade fiscal”, o que dizer de países que desde 2009 apresentam déficits primários recorrentes e elevadíssimos (EUA, Japão, Canadá, Reino Unido, Portugal, Irlanda, Espanha, Grécia e Índia, por exemplo)? Qual é o problema de haver déficit primário de cerca de 1% ao ano, por exemplo, durante um curto período, para enfrentar e superar o final de um ciclo econômico, sem perder a perspectiva do longo prazo?

Entretanto, a visão liberal passou a ser hegemônica junto à opinião pública e mesmo dentre setores progressistas. A criação de um clima de crise fiscal e econômica ganhou a batalha, fazendo com que o governo alterasse sua rota.

O segundo resgate da “Agenda Perdida”

Esse cenário propiciou o segundo resgate da “Agenda Perdida”. Economistas liberais que participaram da formulação daquela agenda em 2002 e integraram o primeiro escalão do Ministério da Fazenda (2003-2005), voltaram a dirigir a economia e ocupar o centro do debate. Em uníssono, voltam a repetir velhos mantras negados pela realidade recente.

Assim, sentenciam que as demandas sociais por democracia, represadas por mais de cinco séculos, “não cabem no orçamento”. Afirmam que “a construção de superávit primário que consiga estabilizar a dinâmica da dívida pública” requer a mudança no “contrato social da redemocratização”.16 Argumentam que desde 1993 os gastos “obrigatórios” têm crescido num ritmo que compromete a estabilização da dívida pública. Em 2014, o próprio ministro da Fazenda Joaquim Levy expressou este ponto de vista, assombrado com o fato de que “o número de beneficiários de programas sociais vem crescendo expressivamente”. Sua preocupação era com as “despesas obrigatórias”, que “inviabilizam a estabilidade da dívida pública”.17

Esses argumentos não se sustentam por diversas razões, que serão apresentados num próximo artigo. O que intriga é o silêncio desses setores ante o espantoso ritmo de crescimento da dívida pública e dos gastos com juros, o verdadeiro desajuste fiscal brasileiro.

Notas Finais

A política de ortodoxa adotada em 2015 provocou uma forte desaceleração da economia. O ajuste fiscal, prejudicado pela queda de arrecadação, torna-se um objetivo difícil de ser alcançado. Por outro lado, os gastos decorrentes da elevação dos juros (subiram para 9% do PIB, ante 6,5% em 2014) elevam o déficit nominal (9% do PIB, contra 6,7% em dezembro de 2014) e a dívida bruta (68% do PIB ante 59% em dezembro de 2014). Em 2015, pagaremos cerca de R$ 500 bilhões de juros, mais que o dobro do que foi pago em 2014.

Esse cenário enfraquece o governo democraticamente eleito, amplifica a crise política e as ações antidemocráticas que estão em curso. Por outro lado, cria condições políticas favoráveis para que o mercado complete o serviço iniciado há mais de duas décadas, de fazer retroceder a cidadania social inscrita na Carta de 1988. É preciso mudar os rumos econômicos para impedir essa nova investida do capital contra a cidadania.

NOTAS
⦁ Artigo escrito para o projeto “ Política, Planejamento e Gestão das Regiões e Redes de Atenção à Saúde no Brasil” (Região e Redes – Caminho para a Universalização da Saúde no Brasil)
⦁ http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/12/1717642-previsoes-de-economistas-ja-estendem-recessao-ate-2017.shtml
⦁ Delfim Neto. “Entrevista. Novo valor eleva a contribuição”. O Estado de S.Paulo, 22/5/1988.
⦁ Matemática confusa. Veja, 27/7/1988.
⦁ Governo poderá gastar até CZ$ 1,6 tri com previdência. Folha de S.Paulo, 1/7/1988.
⦁ Sarney vai à TV criticar o projeto. Gazeta Mercantil. 27/7/1988.
⦁ Ulysses Guimarães (Discurso). “Esta constituição terá cheiro de amanhã, não de mofo”. Folha de S.Paulo, 28/7/1988.
⦁ Um rombo federal. Entrevista com Jáder Barbalho. Veja, 31/5/1989.
⦁ “Senador condena a mudança do Iapas”. O Estado de S.Paulo, 14/1/1989.
⦁ Luiz G. Belluzzo. Entrevista. “Medo da Esperança.” Carta Capital, 11 de julho de 2005.
⦁ Folha de S. Paulo, 2/9/ 2005.
⦁ Fabio Giambiagi, Valor, 18/10/2005.
⦁ O Estado de S. Paulo, 9/11/05.
⦁ “Coalizão com PSDB pode ser único caminho para governo de Marina”. Entrevista, Brasil de Fato, 9/9/2014.
⦁ Consultar http://plataformapoliticasocial.com.br/por-um-brasil-justo-e-democratico-2
⦁ Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2015/07/1654703-a-situacao-se-complica.shtml
⦁ Disponível em: http://cdpp.org.br/site/wp-content/uploads/2014/12/CAPITULO-5.pdf

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