À medida que Sanders cresce, desaparece do debate a questão palestina

À medida que Sanders, que é nominalmente um independente, emerge contra a favorita do establishment Hillary Clinton nas primárias do Partido Democrata, a questão palestina praticamente desaparece do debate.

Sanders e Hillary

Em uma conferência de imprensa em março de 1988, ao defender a candidatura de Jesse Jackson à Presidência, Bernie Sanders criticou o tratamento brutal dado por Israel a manifestantes palestinos como uma “absoluta desgraça”.

“A imagem dos soldados israelenses quebrando os braços e as pernas dos árabes é repudiável. A ideia de Israel fechar cidades e impedir a entrada e saída de pessoas é inaceitável”, disse o então prefeito de Burlington, Vermont, a um grupo de repórteres.

Sanders estava se referindo às imagens veiculadas na televisão que chocaram o mundo naqueles primeiros meses da primeira Intifada, em que soldados israelenses quebravam metodicamente braços e pernas de jovens palestinos sob as ordens do então ministro da Defesa, Yitzhak Rabin.

Sanders chegou a sugerir que os EUA utilizassem a “influência” que seus bilhões gastos em suporte militar a Israel e seus vizinhos fossem usados para forçar uma mudança de comportamento, “ou então suspenderíamos os armamentos”.

Este foi um forte apelo, da parte de um representante eleito nos Estados Unidos, tanto para a época quanto para os dias atuais.

Avançando no tempo, em agosto de 2014, o senador de Vermont usou um tom bastante diferente, gritando irritadamente com seus eleitores quando contestaram sua defesa da matança israelense na Faixa de Gaza naquele verão.

“Você tem uma situação na qual o Hamas está jogando mísseis em Israel (…) a partir de áreas povoadas”, disse Sanders, mobilizando argumentos típicos do governo israelense.

Quando um membro da audiência perguntou se os palestinos “têm o direito de resistir”, Sanders gritou: “Cale-se! Você não está com o microfone!” e ameaçou chamar a polícia.

“Você vai começar a prender as pessoas?”, gritou o membro da plateia. Sanders rapidamente mudou o foco da conversa para a brutalidade do ISIS, o Estado Islâmico.

Um ano mais tarde, ativistas solidários à Palestina foram expulsos de um comício de Sanders em Boston e ameaçados com prisão por trazer uma placa que dizia “Will ya #FeelTheBern 4 Palestine?” [“Você sentiria queimar pela Palestina?”, trocadilho com um dos lemas da campanha de Bernie Sanders, “FeelTheBern”, em que se faz referência ao uso de armas químicas que queimam a pele humana por parte do exército de Israel].

À medida que Sanders, que é nominalmente um independente, emerge contra a favorita do establishment Hillary Clinton nas primárias do Partido Democrata, a questão palestina praticamente se ausentou do debate.

Em uma tentativa de segurar o ímpeto dos eleitores que se entusiasmam com as demandas populares de Sanders por maior igualdade econômica, Clinton empregou argumentos neoconservadores anti-Irã que qualificam Sanders como um perigo para Israel.

Este foi um dos poucos momentos em que Israel foi mencionada durante as primárias do partido, em forte contraste com a corrida republicana, que foi dominada pelo fanatismo anti-islâmico e pelo apoio chauvinista à violência israelense.

Embora Clinton continue sendo a candidata favorita no Partido Democrata, Sanders já não é mais considerado uma possibilidade remota.

Muitos dos defensores de Sanders esperam que sua grande vitória nas primárias de New Hampshire deem a ele o impulso necessário para enfrentar Hillary Clinton em estados nos quais ela tem uma grande liderança nas pesquisas.

Vale a pena, portanto, examinar seu histórico no que diz respeito à Palestina e aos israelenses, como seus pontos de vista mudaram e o que devemos esperar dele enquanto tenta aumentar seu apelo junto aos eleitores.

Uma revisão do histórico de Sanders sugere que suas mudanças de opinião estão mais enraizadas no expediente político do que no comprometimento ideológico.

“Sem armas para Israel”

Bernie Sanders nasceu no Brooklyn em 1941, filho de imigrantes judeus poloneses. Muitos dos parentes de seu pai, Eli, que chegou nos Estados Unidos como adolescente em 1921, foram mortos pelos nazistas.

Durante os anos 1960, Sanders passou vários meses em um kibbutz israelense, uma experiência sobre a qual ele ainda fala com orgulho.

Mas a experiência não o impediu de criticar a violência israelense no início de sua carreira política.

De acordo com Peter Diamondstone, cofundador do partido socialista e pacifista União da Liberdade, ao qual Sanders pertenceu nos anos 1970, Sanders defendeu a pauta “sem armas para Israel” durante um evento de sua campanha em 1971 realizado em uma sinagoga, no primeiro ano em que ele se candidatou para um cargo político local.

Após várias candidaturas mal-sucedidas por meio do Partido União da Liberdade, Sanders abandonou o partido e, em 1981, foi eleito prefeito de Burlington como independente, com uma vantagem de apenas 10 votos.

“Em um desvio que surpreenderia até mesmo os cidadãos liberais de Burlington”, observou o jornal The Guardian, em 1990, Sanders “usou seu posto [de prefeito] para fazer pronunciamentos ousados sobre a política externa americana”, como “exigir um Estado palestino” (“Burlington Bernie takes on big parties in Congress fight”, The Guardian, 15/03/1990).

Atualmente, Sanders ainda apoia a posição oficial dos Estados Unidos, que pede a criação de dois Estados nacionais para solucionar o conflito, mas naquela época a defesa do Estado palestino ainda não era uma postura comum.

Estas opiniões foram exibidas na conferência de imprensa de 1988, onde ele defendeu Jesse Jackson.

“Os Estados Unidos da América têm a capacidade, por financiar os exércitos do Oriente Médio, de exigir que estes países cheguem a um acordo razoável, protegendo os direitos dos palestinos, protegendo os direitos de Israel”, disse Sanders.

Mais tarde, no mesmo ano, quando competia por uma posição no Congresso, Sanders manteve seu ponto de vista.

“A política israelense de matar pessoas é inaceitável. É errado que os Estados Unidos forneçam armas a Israel”, disse Sanders a estudantes da Universidade de Vermont. “Não seremos os mercadores de armas das nações do Oriente Médio.”

Quando questionado em 2015 sobre as declarações de quase três décadas antes, o porta-voz da campanha, Michael Briggs, negou veementemente que Sanders tivesse sugerido interromper a exportação de armas americanas para Israel. Briggs acusou The Vermont Cynic, um jornal estudantil da Universidade de Vermont que relatou o antigo ponto de vista de Sanders, de apresentar “uma má interpretação de citações antigas”.

“Ele não disse que o auxílio militar a Israel era errado”, disse Briggs ao jornal no último mês de setembro. “Bernie não apoia e nunca apoiou suspender o envio de armas para Israel, esta nunca foi sua posição”.

A tentativa de Briggs de editar a história é contradita pelas declarações claras de Sanders na conferência de imprensa de 1988.

O que mudou?

Após finalmente conseguir um posto no Congresso em 1990, Sanders continuou utilizando sua nova plataforma para fazer avançar suas antigas pautas. Mas quanto mais tempo passava no Congresso e quanto mais alto ascendia, menos falava sobre os abusos de Israel contra os direitos dos palestinos.

“Eu tenho um problema com a concessão de US$ 2 bilhões para o Egito e US$ 3 bilhões para Israel. Vamos cuidar dos problemas que temos em casa, primeiro”, argumentou Sanders na Câmara em 1991, enquanto votava contra a concessão de US$ 25 bilhões como auxílio externo (“House of Representatives rejects 25-billion-dollar foreign aid measure”, France Presse, 31/10/1991).

Naquele mesmo ano, Sanders votou por reter os US$ 82,5 milhões em ajuda dos Estados Unidos a Israel a menos que o país parasse de construir assentamentos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza ocupadas.

Mais recentemente, contudo, Sanders deixou de exigir cortes no auxílio externo a Israel como forma de pressão. Em vez disso, ele passou a defender totalmente o auxílio americano a Israel, expressando sua esperança de que mais auxílio econômico a Israel e ao Egito, assim como aos palestinos, poderiam fazer com que se diminuísse o auxílio militar em um futuro não especificado.

A campanha de Sanders não respondeu à pergunta da Electronic Intifada sobre se a Casa Branca de Sanders manteria sua intenção de reduzir o auxílio militar americano a fim de forçar Israel a respeitar a legislação internacional.

Histórico de votação ineficaz

Considerando o enorme poder do lobby israelense sobre os dois partidos no Congresso, o histórico de votos de Sanders como parlamentar poderia ser pior.

Mas, em vez de se opor ativamente às atrocidades patrocinadas pelos Estados Unidos contra um povo indefeso e ocupado, Sanders passou a maior parte do tempo com a cabeça baixa.

No final de 2001, durante a segunda Intifada, o periódico Salon observou: “Apenas um membro judeu da Casa [Bernie Sanders] expressou algum tipo de desaprovação” quanto à resolução que culpava o terrorismo palestino pela ascensão da violência.

Em 2004, Sanders foi um dos 45 congressistas que votaram contra uma resolução que expressava o apoio à anexação de Israel, por meio da construção do muro, de terra palestina ocupada na Cisjordânia, mesmo após a Corte Internacional de Justiça ter considerado a medida ilegal.

Hillary Clinton, que era senadora dos Estados Unidos na época, foi uma das idealizadoras da versão do Senado da mesma declaração, o que sua campanha agora usa como um recurso propagandístico.

Em 2011, o Senado aprovou uma resolução que pedia às Nações Unidas a revogação do relatório Goldstone, que encontrou evidências de crimes de guerra durante as campanhas de bombardeio israelenses de 2008 e 2009 na Faixa de Gaza.

Embora alguns tenham dado o crédito a Sanders de se opor a esta resolução, não há nenhum voto registrado. A medida foi aprovada por consenso unânime, o que significa que nenhum senador tomou qualquer medida para rejeitá-la ou convocou algum debate, nem mesmo Sanders.

Enquanto a população civil de Gaza era mais uma vez dizimada por bombas fornecidas pelos Estados Unidos no verão de 2014, Sanders foi um dos 21 senadores americanos que não assinou uma resolução expressando solidariedade incondicional a Israel.

“Fim do bloqueio a Gaza”

Quando indagado no último verão por Ezra Klein, da Vox, se se identificava como sionista, Sanders foi ambivalente, respondendo: “Sionista? O que isso significa? Se acho que Israel tem o direito de existir? Sim, acho. Se acredito que os Estados Unidos deveriam desempenhar um papel justo ao lidar com a comunidade palestina em Israel? É claro que acredito”.

Quando o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu aceitou um convite republicano para denunciar as negociações da administração Obama quanto ao acordo nuclear com o Irã em um discurso ao Congresso, na última primavera, Sanders, que já disse abertamente “não ser um grande fã” de Netanyahu, foi o primeiro senador a anunciar sua intenção de boicotar o discurso.

Em uma entrevista de novembro com a revista Rolling Stone, Sanders tornou público sua mais severa crítica contra a guerra de Israel em Gaza, embora ainda assim justificasse as ações israelenses.

“Eu acredito que Israel reagiu de forma exagerada e causou mais dano civil do que o necessário”, disse Sanders. “Eles argumentam, e eu o respeito, de que tentam garantir que civis não sejam atingidos. Mas o resultado final é que muitos civis foram mortos e muitas residências foram destruídas. Foi causado dano terrível, terrível demais.”

Ao assumir esta posição, Sanders ignorou o achado de, entre outros, a comissão independente das Nações Unidas, afirmando que Israel orientou seus ataques sistematicamente contra edifícios residenciais e infraestrutura palestina, sem qualquer justificativa militar, o que resultou em uma enorme carnificina.

Na mesma entrevista, Sanders tentou lidar com as políticas fundamentalistas do consenso de Washington, o que preocupou muitos membros de sua base de apoiadores mais progressista.

“Os Estados Unidos apoiarão a segurança de Israel, ajudarão Israel a lutar contra os ataques terroristas contra o país e a manter sua independência”, disse. “Mas, sob minha administração, os Estados Unidos manterão uma abordagem imparcial na região.”

Um dos aspectos desta “imparcialidade” pode ser encontrado no website da campanha de Sanders, onde ele parece responsabilizar “ambos os lados”, ignorando o vasto desequilíbrio de forças entre Israel, um ocupante e colonizador armado pelos Estados Unidos, e os palestinos que vivem sob seu regime militar.

Mas, nos Estados Unidos de 2016, mesmo um apelo à “imparcialidade” nestes termos está fora da grande política.

Por mais brandas que sejam suas posições, ele foi muito além de qualquer coisa proposta por Barack Obama, que muitos acreditaram erroneamente, a despeito de todas as evidências, que se tornaria um apoiador dos direitos palestinos quando presidente.

Sanders exige que Israel “acabe com o bloqueio a Gaza, e pare de criar assentamentos em território palestino”, sendo um dos únicos senadores americanos a defender tais pautas.

Ainda assim, está muito distante de seu irmão, o candidato do Partido Verde britânico Larry Sanders, que expressou apoio pelo boicote, retirada de investimentos e sanções a Israel.

E Sanders não é nenhum Jeremy Corbyn, apoiador desde muito tempo dos direitos palestinos que conquistou a liderança do principal partido de oposição britânico, o Partido Trabalhista, com quem o senador de Vermont é frequentemente comparado.

Dito isso, o histórico de Sanders ainda assim mostra gritante contraste com a recepção entusiasmada de sua oponente à liderança direitista de Israel e seu desprezo descarado pelas vidas dos palestinos.

Uma oponente belicosa

Durante o massacre israelense de 551 crianças em Gaza, em 2014, Hillary Clinton acusou os palestinos de “encenar” a cobertura da carnificina para ganhar simpatia internacional e envergonhar Israel.

Desde que concorreu para seu posto no Senado dos Estados Unidos por Nova York, em 2000, Clinton tornou a demonização dos palestinos um hábito a fim de cortejar os eleitores judeus pró-Israel e possíveis doadores.

Ela estava tão determinada a provar sua lealdade a Israel no Senado que votou contra um projeto de lei que buscava restringir o uso de bombas de fragmentação, que matam crianças desproporcionalmente em áreas civis densamente povoadas.

O projeto de lei foi motivado, em parte, pelo ataque de Israel ao sul do Líbano, em 2006, com cerca de quatro milhões de bombas de fragmentação.

O projeto de lei foi derrotado “principalmente porque foi visto como uma medida anti-Israel”, de acordo com o diretor do setor de políticas de armamentos da Human Rights Watch.

Coincidentemente, um dos proponentes do projeto foi o Senador Bernie Sanders.

Um dos mais generosos doadores da campanha de Clinton foi o bilionário do setor midiático Haim Saban, que admitiu publicamente que sua principal prioridade é influenciar a política externa americana em favor de Israel.

Saban e sua esposa, Cheryl, já doaram US$ 5 milhões à campanha de Hillary.

Ela expressou sua gratidão com a promessa de tornar uma prioridade de seu mandato a oposição “ao movimento BDS”, liderado por palestinos e que pede o boicote, retirada de investimentos e aplicação de sanções a Israel (a sigla BDS se refere a “boycott, desinvestment and sanctions”).

“Estive com Israel ao longo de toda minha carreira” e, se eleita presidente, “continuarei nesta luta”, disse Clinton.

Após sua derrota para Sanders em New Hampshire, Clinton supostamente está planejando uma “revanche em Israel”, trazendo à tona a “aparente falta de interesse de Sanders por Israel” a fim de levar os eleitores judeus a “repensar seu apoio ao judeu americano que chegou mais alto do que outros políticos democratas”, de acordo com o jornal The Jewish Daily Forward.

Desentendimentos

A devoção belicosa da ex-secretária de Estado a Israel está cada vez mais em desacordo com a base democrata, um fato que torna particularmente difícil de entender a recusa de Sanders em confrontá-la nesta área.

Hillary é muito impopular entre os eleitores democratas mais jovens, e são estes jovens eleitores que as pesquisas repetidamente mostram ser mais críticos de Israel e receptivos aos direitos dos palestinos.

Mesmo a elite democrata, a parcela mais educada, com maior renda e a maior parte dos doadores ativos, está se afastando de Israel. Uma pesquisa no último verão descobriu que metade deles considera Israel um país racista e cerca de três quartos pensam que o país tem influência excessiva sobre a política americana.

Notavelmente, 45% da elite democrata afirmam estar mais inclinados a votar em um candidato político que critique a violência de Israel contra os palestinos, contra 23% que dizem que isso prejudicaria a imagem que têm de tal candidato.

Diferentemente de Hillary, Sanders não é condicionado por doadores pró-Israel, muitos dos quais são membros da classe dos bilionários, que ele abertamente critica.

Isto pode explicar por que Sanders se absteve, até o momento, de grande parte da ritualística exigida dos candidatos presidenciais americanos: não há qualquer registro de que ele tenha se dirigido ao AIPAC, o mais influente grupo de lobby pró-Israel dos Estados Unidos. Também não está claro quando foi a última vez que Sanders visitou Israel.

Como candidato que tem como base uma plataforma antiestablishment, Sanders está perfeitamente posicionado para desafiar Hillary no que diz respeito ao consenso bipartidário de que Israel-está-sempre-certo, que domina o sistema político americano.

Se a ameaça de Sanders ao status de Hillary como principal candidata continuar a crescer, e em um cenário no qual ele eventualmente se torne o candidato democrata, seus pontos de vista sobre Israel serão mais bem analisados.

Mas na ausência de pressão significativa e constante da parte de sua base, ainda há poucos motivos para acreditar que a administração de Sanders teria uma postura muito diferente da atual quanto à Palestina.

Os próximos meses revelarão que Sanders prevalecerá: o que está preparado para criticar Israel, embora sempre relativizando as críticas com declarações de apoio, ou o Sanders estridente que está preparado para dar início a políticas que exijam a responsabilização de Israel pelo assassinato de crianças inocentes em Gaza.