Juíza pode ser punida por respeitar direitos e combater prisão ilegal

A desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo Kenarik Boujikian, cofundadora da Associação Juízes para a Democracia, será julgada nesta quarta-feira (27) por uma comissão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo por ter cumprido o que diz a lei e concedido alvará de soltura a dez presos provisórios que já haviam excedido em prisão a pena fixada em suas sentenças.

Kenarik Boujikian desembargadora do TJ SP - Apesp

De acordo com a legislação e a lógica estabelecem que manter em cárcere presos provisórios com sentenças menores que o período de prisão é ilegal, inclusive com direito a indenização pelo Estado. 

Respeitando a lei e as garantias fundamentais, a desembargadora Boujikian determinou a soltura dos dez presos. Mas um colega, o desembargador Amaro José Thomé Filho, decidiu entrar com representação alegando que a decisão de Boujikian deveria ocorrer de forma colegiada, em grupo. No entanto, a lei e o próprio regimento interno do TJ, em seu artigo 232, assegura ao relator do processo – neste caso a desembargadora Boujikian – a autonomia para decisões urgentes, que podem posteriormente ser confirmadas ou não pelo colegiado.

"O que fiz foi correto. Trata-se de uma situação que considero juridicamente muito simples: se a pena foi fixada e não há notícia de soltura transcorrido este período, dei alvará cautelar, para não haver risco de a pessoa ficar presa por mais tempo", afirma Boujikian.

A desembargadora afirma ainda não compreender porque um juiz representa outro por conta da decisão num processo. "Isso é uma violação à independência judicial. Juiz não pode ser processado pelo conteúdo da decisão, salvo se a decisão é fruto de improbidade ou corrupção", enfatizou ela em entrevista ao Brasil de Fato.

E acrescenta: "A independência judicial é uma garantia da cidadania, na perspectiva de um Estado Democrático de Direito. Serve para que o juiz faça seu papel de garantidor. A independência judicial é um direito humano para resguardar os demais direitos humanos. Serve para que o Judiciário, como instância de Poder de Estado, possa garantir os direitos consagrados na Constituição Federal, o que é um dever de todos os juízes. Implica que o juiz não pode estar sujeito às pressões externas e internas para decidir de uma determinada forma".

Ela lembrou ainda que, apesar de ser julgada pela soltura de dez pessoas, adotou a mesma medida em cerca de 50 caso. "Tenho esperança de que o TJ reafirme a independência judicial, que é um compromisso com os direitos fundamentais e com o Estado Democrático de Direito", salientou.

A juíza tem recebido apoio e solidariedade de diversos setores e personalidades. “Não tem cabimento. Querer punir uma juíza que agiu corretamente, fazendo valer os direitos fundamentais da Constituição é, primeiro, um imenso erro jurídico; segundo, um grande passo atrás no processo civilizatório”, disse Pedro Serrano, advogado e professor de Direito Constitucional da PUC-SP.

Para Igor Sant'Anna Tamasauskas, um dos advogados da desembargadora, "o mais grave é a mensagem que este caso passa para a magistratura e os novos juízes: se prender a qualquer custo, não será incomodado, se olhar para os direitos e garantias, sobretudo dos menos privilegiados, pode colocar a carreira em risco".

Entidades como o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), a Pastoral Carcerária, o Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH) e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) divulgaram notas de apoio a Boujikian.

"É algo absolutamente ilegal manter alguém preso além do que é estritamente previsto em sua condenação", explica Cristiano Maronna, vice-presidente do IBCCrim. "A desembargadora deveria ser premiada e não sofrer punição porque está cumprindo o que diz a Constituição."

Outro manifesto, assinado representantes de movimentos populares, entidades em geral e lideranças políticas afirma: “Trata-se de magistrada fiel ao Código de Ética dos juízes, sabidamente um elenco de preceitos muito mais inspirador de efetiva justiça do que servil e cega submissão à lei, particularmente quando esta é aplicada esquecendo que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, e este somente pode ser considerado como legítimo quando posto a serviço do seu povo soberano (parágrafo único do primeiro artigo da nossa Constituição)”.

O documento é assinado por personalidades como o professor Leonardo Boff, a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Lygia Maria de Godoy Batista Cavalcanti, juíza do Trabalho de Natal (Rio Grande do Norte) e o jurista e professor emérito da USP, Dalmo Dallari.