Novo presidente da Guatemala: de palhaço a dono do circo

Desde a queda do presidente Jacobo Arbenz, em 1954, a Guatemala jamais parou sua autoimolação. Desde o golpe organizado pelo Departamento de Estado e executado pela CIA, que ungiu como presidente um de seus mais lascivos vassalos, o coronel Carlos Castillo Armas, executado em 1957, se consolidaram razões para a guerra civil que deixou 300 mil mortos, 80 mil desaparecidos e mais de um milhão de refugiados, entre 1960 e 1996, quando se firma o Acordo de Olso.

Por Guadi Calvo*, para o Vermelho

Jimmy Morales - AP

Em 1960, 62% das terras do país estavam nas mãos de 2% da classe dominante. A discriminação contra a etnia Maya-K’iche, que representa 45% da população, mais outros 45% dos “ladinos” (mestiços), impedia que eles tivessem acesso à educação, saúde e qualquer tipo de representação política. Eram, e seguem sendo, submetidos a todo tipo de arbitrariedades do Estado e da classe dominante: desde a superexploração trabalhista à proibição de praticar seus rituais ancestrais.

A discriminação colaborou para a consolidação das condições objetivas para iniciar uma guerra revolucionária. Diferentes organizações de inspiração marxista como as F.A.R. (Forças Armadas Rebeldes), MR-13 (Movimento Revolucionário 13 de novembro), O.R.P.A. (Organização do Povo em Armas), E.G.R. (Exército Guerrilheiro dos Pobres), terminariam aglutinadas em 1982 na URNG (Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca), que resistiu durante 36 anos a todos os embates do exército guatemalteco e comandos especiais como Kaibiles – especialistas em tortura treinados por Israel e Estados Unidos – e grupos paramilitares como Movimento de Ação Nacionalista Organizado, Nova Organização Anticomunista, Conselho Anticomunista da Guatemala, Olho por Olho e Jaguar Justiceiro, que atuaram especialmente contra comunidades indígenas e camponesas. Esta guerra civil deixou 200 mil mortos, 50 mil desaparecidos e um milhão e meio de exilados.

A partir de 1996, uma sucessão de governos neoliberais, que acataram as orientações e aplicaram sem anestesia as recomendações do Fundo Monetário Internacional, aprofundou a crise econômica que a esta altura já era endêmica.

A diferença social entre ricos e pobres se agigantou, ao passo que os índices de criminalidade dispararam geometricamente, convertendo a Guatemala em um dos países mais violentos do mundo.

Maras, feminicídio, linchamentos, cartéis & CIA LTDA

A partir do atentado de 2001, os Estados Unidos começaram a aplicar ferrenhamente diferentes leis sobre a imigração, o que fez com que nos quatro anos subsequentes mais de 20 mil jovens criminosos, de origem centro-americana, fossem devolvidos a seus países de origem.

Aqueles milhares de jovens recém-chegados envolvidos em gangues, junto aos outros milhares que viviam sem rumo nas ruas dos bairros pobres das cidades e povoados guatemaltecos, salvadorenhos e hondurenhos, constituíram a base do que mais tarde seria conhecido como Maras [espécie de gangues], incontáveis organizações criminais que em poucos anos conseguiram dominar toda a gama de delitos, desde extorsão ao tráfico de drogas, do mercado negro de armas ao tratamento de imigrantes. A partir de 2002 as Maras começaram a ter uma presença avassaladora em todos os atos de violência da Guatemala, El Salvador e Honduras.

A Guatemala, particularmente, tem uma taxa de criminalidade de quase 43% a cada 100 mil habitantes, o que significa em torno de 15 a 18 mortes violentas por dia. Apesar de os assassinatos de mulheres serem por outras razões, morrem ao dia mais de duas, colocando o país como o primeiro no mundo em número de feminicídio. A insegurança da sociedade guatemalteca gerou anticorpos extrajudiciais que, como acontece sempre, agravam mais o que tentam resolver. Há alguns anos começaram a promover linchamento de suspeitos por diferentes delitos, ação esta que deu margem às vinganças pessoais. Não é necessário mais que um boato sobre alguém para que este termine golpeado e muitas vezes morto, quando poderia tratar-se apenas de uma discussão entre vizinhos, um parente ou um sócio incômodo. Foram registrados quase dois mil episódios deste tipo nos últimos cinco anos.

Como se isso fosse pouco, pistoleiros pertencentes ao cartel mexicano dos Zetas se fortaleceram em povoados cafeeiros do norte da Guatemala. A polícia se converteu em escolta dos narcotraficantes e juízes e fiscais aterrorizados se desligaram de toda responsabilidade, enquanto alguns operam para o Cartel. Enquanto isso, as autoridades de migração produzem, sem muita burocracia, passaportes guatemaltecos aos traficantes mexicanos.

O exército está encarregado de resistir à invasão e fica com a pior parte. Com armamento obsoleto, sem treinamento e com a população contra (já que os traficantes se estabelecem com milhões de dólares e geram prosperidade na região), deve combater um inimigo com treinamento, armamento e salário melhor. Os Zetas estão vencendo a guerra por território com o objetivo de converter o Norte da Guatemala em uma grande pista de aterrisagem para receber os envios dos cartéis colombianos.

Todos os dias centenas de aviões com mais de mil quilos de cocaína cada um chegam nesta região para então ir ao México, onde seguem a caminho dos Estados Unidos.

Da vez do assassino à vez do palhaço

Frente à derradeira violência que vivia o país, as promessas de ordem e pulso firme do general Otto Pérez Molina iriam se impor nas eleições presidenciais de 2012. Graduado na Escola das Américas, foi chefe de inteligência militar durante a presidência do ditador José Efraín Riós Montt (1982-1983), um dos genocidas mais implacáveis que o continente teve notícia. Os organismos de direitos humanos o culpam pela morte de 70 mil indígenas durante sua presidência que durou apenas 16 meses.

O presidente Pérez Molina foi acusado de participar da onda de corrupção de funcionários estatais entre os quais se inclui a vice-presidenta, Roxana Baldetti. A rede de corrupção conhecida como “A linha”, roubou cerca de US$ 130 milhões dos cofres públicos.

Depois que as denúncias foram comprovadas, Pérez Molina foi deposto de seu cargo em setembro de 2015, quando se abriu um novo processo eleitoral que acabou por transferir o poder a outro representante da direita guatemalteca, o ator Jimmy Morales, que com seus mais de 15 anos de carreira na televisão alcançou grande popularidade.

Morales chega à presidência através da Frente Convergência Nacional (FCN), uma organização de direita fundada em 2008 por militares aposentados, envolvidos em um largo processo de violação dos direitos humanos durante a guerra civil que terminou em 1996.

Jimmy Morales, evangélico de 46 anos, se define como: “empresário, professor universitário, comunicador, acadêmico, filantropo e político”. Ao longo de sua carreira com bobo da corte não perdeu uma única oportunidade de zombar dos povos indígenas, justificando a tortura e o assassinato deste e de outros grupos sociais. Contra o aborto e homofóbico, como presidente tenta calar as vozes de quem pede justiça pelo genocídio promovido pelos militares e pela oligarquia, mas apesar disso se define como “defensor da família” e se diz “temeroso a Deus”.

Os assessores de Jimmy Morales são os mesmos militares e empresários que estavam ao redor de Pérez Molina, por isso se crê que ele dará continuidade às políticas neoliberais de seu antecessor, que atualmente está preso à espera de um julgamento.

Pelo que é possível extrair de seu plano de governo, apresentado em apenas meia dúzia de páginas, Morales pretende encabeçar um governo de unidade nacional.

Entre outras propostas “revolucionárias” para a educação, pretende monitorar com dispositivos GPS a localização dos professores e garantir desta forma o horário das aulas. Considera ainda a possibilidade de criar uma Secretaria da Transparência para combater a corrupção.

Aumentará consideravelmente a quantidade de agentes da polícia, espera modernizar a equipe de segurança e ampliar a logística, ao passo que já anunciou a redução de todos os programas sociais.
Morales, que acabou de assumir a presidência, em 14 de janeiro, deverá trabalhar sobre dois eixos fundamentais: combater a pobreza do país cuja taxa é de 59% para uma população de 16 milhões de pessoas e diminuir drasticamente a violência que causa 35,4 homicídios para cada 100 mil habitantes. Um quadro demasiado dramático para ser resolvido com piadas.