Para jurista, Fachin priorizou regimento em detrimento da Constituição

O Portal Vermelho entrevistou Samuel Barbosa, professor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP, para falar sobre o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) da ação impetrada pelo PCdoB contra o golpismo nas manobras do rito do impeachment. O professor destaca que o sistema de governo é presidencialista e que o “impeachment não pode ser um instrumento para política ordinária”, pois corre o risco de ser “banalizado”.

Por Dayane Santos

Edson Fachin ministro do STF

“O impeachment não pode ser um instrumento para política ordinária. É um instrumento que deve ser usado em situações extremas. Temos que ler a Constituição, ler o direito de modo a preservar o mandato, a não ser que seja configurado os casos jurídicos. O impeachment não pode ser banalizado”, defendeu o jurista.

Samuel Barbosa salienta a diferença tanto da conjuntura política como dos fundamentos jurídicos que ensejaram o pedido de impeachment de 1992 e o que foi encaminhado e acatado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

“Em 1992, o pedido foi oferecido na Câmara depois que já tinha acontecido uma CPI. Existia prova de crime. A opinião pública estava convencida dos fortes indícios dos crimes de responsabilidade. Quando começou o processo na Câmara, no começo de setembro daquele ano, já tinha uma CPI, já tinha manifestação e existia um amplo consenso na sociedade e no sistema político. O que temos agora? Temos um sistema político dividido e a sociedade dividida. Então é uma situação muito diferente que precisa de um olhar especial”, ponderou.

Fachin: Indispensável que exista fundamento jurídico

Vale ressaltar que, no voto defendido pelo ministro do STF Edson Fachin, relator da ação, apresentado em sessão nesta quarta-feira (16), ele sublinhou: “É indispensável que o parecer da Comissão Especial indique de forma fundamentada a subsunção ao tipo jurídico-político do crime de responsabilidade… A indicação da tipicidade é pressuposto da autorização de processamento, na medida em que não haveria justa causa na tentativa de responsabilização do presidente da República fora das hipóteses prévia e taxativamente estabelecidas”.

O ministro do Supremo ainda enfatiza que se assim não fosse, “o processamento e o julgamento teriam contornos exclusivamente políticos e, do ponto de vista prático, equivaleria à moção de desconfiança que, embora tenha sua relevância própria no seio ‘parlamentarista’, não se conforma com o modelo presidencialista, cujas possibilidades de impedimento reclamam a prática de crime de responsabilidade previsto em lei específica”.

Samuel Barbosa é professor de Direito da USP
Voto secreto


Sobre o voto de Fachin, relator da ação, proferindo na primeira sessão de julgalmento, Samuel Barbosa acredita que “o peso do regimento foi maior do que seria necessário à luz da Constituição”.

“Eu tinha expectativa de que o ministro Fachin fosse discutir com mais detalhes o rito de 1992, porque é o único precedente de um impeachment ocorrido pós-Constituição de 1988. A decisão daquele período não vincula a decisão atual, mas por questão de coerência seria importante olhar para 1992. Mas também havia um problema de apontar como se relaciona a Constituição, a lei de 1950 e o regimento interno da Câmara”, explicou.

Fachin rejeitou praticamente todos os pontos apresentados na ação movida pelo PCdoB. Foi o que bastou para líderes da oposição golpista bravatearem que a decisão de Fachin, sem a análise dos demais 10 ministros, estava dando o aval para o golpismo.

O professor afirma que a oposição está fazendo uma análise política, novamente sem nenhum fundamento jurídico.

“Fachin não entrou na discussão do mérito do impeachment. E o Supremo não vai entrar porque não pode. Não compete ao Supremo decidir se a presidente cometeu crime de responsabilidade. O Supremo tem que definir qual é o direito e a legislação em vigor, as garantias e o rito processual. A oposição está fazendo uma leitura política, usando o voto do Fachin que é uma primeira apreciação”, destaca.

E completa: “Temos que acompanhar como será a discussão no Supremo, mas acredito que não será consensual. Terá muita disputa e discordância, diante do assunto que é complexo”.

De fato, a complexidade do julgamento ficou demonstrada pelo posicionamento do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, se manifestou contra a realização de votações secretas no processo de impeachment e contra a eleição de comissão avulsa.

Para o chefe do Ministério Público, as votações no Congresso Nacional para avaliar o eventual afastamento têm de ser abertas. “A ordem constitucional, pautada no Estado Democrático de Direito e na publicidade dos atos estatais, não autoriza votação parlamentar sigilosa fora das hipóteses taxativas e excepcionais nela previstas expressamente. As casas do Congresso Nacional não têm o direito de decidir por votação secreta quando a lei fundamental do país a tanto não os autorizou. Isso se aplica à eleição dos membros da comissão especial da Câmara dos Deputados no processo de impedimento”, diz trecho do parecer do procurador.

O Ministério Público também se posicionou contrário a “candidaturas avulsas”, lançadas sem aval dos líderes partidários, que compuseram a chapa oposicionista eleita para a comissão, reforçando o pedido feito pelo PCdoB. A “chapa alternativa” foi uma manobra articulada pela oposição e o presidente da Câmara, Eduardo Cunha.

Para o professor Samuel Barbosa, “à luz da Constituição, a melhor tese é a de que não cabe votação secreta”, a não ser nos casos que a Constituição autoriza.

“O processo de impeachment é o julgamento que se dá numa casa parlamentar. É um processo muito particular, muito especial. Não é um caso de disputa política ordinária. Nós estamos no presidencialismo e quem foi eleito tem que concluir o mandato. Essa é a regra. O impeachment está previsto na Constituição? Está, mas é uma situação especial, por isso existem regras específicas para aplicação do impeachment. E nessas regras não está que a votação é secreta. Então a regra é votação aberta”, acrescenta o jurista.

O jurista lembrou que somente o regimento interno da Câmara tem a previsão de votação secreta, mas que o rito é previsto para situações de política ordinária, como eleição da mesa diretora e dos membros das comissões.

“Apesar de ser uma comissão é para um processo de impedimento. A eleição da comissão é para o julgamento do impeachment que envolve os outros poderes. Envolve o Executivo, porque se quer encerrar o mandato do presidente. Envolve o Judiciário porque posteriormente o presidente do Supremo vai presidir a sessão no Senado. É uma situação muito especial, portanto não podemos dar soluções de política ordinária”, ressalta. “A Constituição de 1988 diz que a Câmara admite e autoriza o processo, mas quem instaura e julga é o Senado. Portanto, há uma divisão de tarefas entre as duas casas”.

Senado decide

O professor lembra que no processo de impeachment de 1992, diferentemente do que defende Fachin, o Senado instaurou e voltou pela admissibilidade do processo.

“Em 1992 não foi assim. É certo que naquele período havia um amplo consenso dentro do parlamento. Então, quando chegou a decisão da Câmara, o Senado, em 48 horas, instaurou uma comissão que foi favorável à instauração do processo que, posteriormente, foi instaurado pelo plenário do Senado e o presidente Collor foi afastado”, resgata o jurista.

Ele enfatiza: “Quando analisamos os documentos verificamos que a comissão do Senado poderia ter se recusado a instaurar o processo na Câmara. Portanto, em 1992 foi diferente”.

Samuel também discordou do posicionamento do ministro do Supremo que defendeu que o Senado seja obrigado a instaurar o processo de impeachment caso a Câmara autorize, por 2/3 de seus membros (ao menos 342 dos 513 deputados).

Para ele, se o impeachment não é um instrumento de política ordinária e se a regra é que o presidente eleito tem que cumprir o mandato, “a melhor solução é a apresentada pelo PCdoB”.

“Deixar que a segunda Câmara [Senado] decida se vai ou não instaurar o processo é mais uma garantia de que a convicção das duas casas de que o impeachment tem que continuar. É muito grave afastar um presidente, ainda que seja um afastamento provisório”, ponderou.

STF é o árbitro, mas apita para que lado?

Samuel Barbosa salientou que, caso o processo de impeachment siga em frente, o STF continuará no papel de árbitro das questões processuais da política, aprofundando o processo de judicialização da política.

“Vão bater na porta do Supremo com muita frequência. A decisão do STF não vai encerrar a discussão. Tanto a oposição quanto o governo vão entrar com ações judiciais durante todo o processo. Isso será inevitável porque o Supremo é o arbitro do impeachment. É como num jogo de futebol, em que os times vão continuar falando com o árbitro se é falta ou não.” 

Questionado sobre como a Corte Suprema deve se comportar, ele afirma: “O árbitro pode ter uma postura de mais ou menos contenção. O voto do Fachin é um voto de autocontenção. Sendo um árbitro que só decide contrariamente ao que foi feito em situações muito extremas. Então, ele vai deixar o jogo correr. Ele não anulou nada do que aconteceu até agora. Isso é uma autocontenção. Vamos ver qual o Supremo que vai sair desse jogo. Se é um ou apita falta ou se ele vai deixar o jogo correr”.