Estatuto da Igualdade Racial: marco na política de combate ao racismo

“Negro não se humilhe nem humilhe a ninguém. Todas as raças já foram escravas também. E deixa de ser rei só na folia e faça da sua Maria uma rainha todos os dias. E cante o samba na universidade. E verás que seu filho será príncipe de verdade. Aí então jamais tu voltarás ao barracão”, diz a letra do samba do grandioso Candeia, que além de um compositor extraordinário era um militante da luta contra o racismo e fez da sua arte um instrumento pela igualdade racial.

Por Dayane Santos

Cotas na USP - Reprodução

Esse samba, Dia de Graça, gravado em 1970 no primeiro LP solo lançado pelo compositor, revela que a luta em defesa das políticas afirmativas e, particularmente, das cotas raciais nas universidades, não vem de hoje. Quando Candeia afirma para o negro cartar o samba na universidade, pois “aí então jamais tu voltarás ao barracão”, reforça a necessidade do negro de ocupar todos os espaços, não apenas na arte.

O primeiro projeto de lei propondo ações afirmativas para população negra foi apresentado em 1983, com o nº 1.332, para garantir o princípio da isonomia social do negro. Mas foi somente em 2010, ou seja, 40 anos depois da canção de Candeia, que o país institui o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288), que completou cinco anos de vigência este ano.

Em entrevista ao Portal Vermelho, o senador Paulo Paim (PT-RS), autor do projeto que deu origem à lei, aponta que “a políticas de cotas foi um dos principais avanços conquistados pelo Estatuto”.

Segundo ele, o Estatuto deu base legal para que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidisse, em 2012, em favor das ações afirmativas com a aprovação da Lei das Cotas, tanto nas universidades como também no serviço público.

“Esse foi o grande salto de qualidade. Todos falam que a verdadeira revolução se dá pela educação, pois o Estatuto foi a base legal para assegurar esse direito”, pontuou.

Paim enfatiza que, ainda que a política de cotas sofra resistência de alguns setores da sociedade, “é lei e, por isso, todos são obrigados a aplicar”.

“É uma resistência cultural de um país que foi o último a abolir a escravatura. De um país que o racismo inegavelmente ainda existe. Mas é uma política vitoriosa”, avalia o senador.

E seguindo a luta perseguida e idealizada na composição de Candeia, Paulo Paim afirma que atualmente as salas de aula de uma universidade brasileira são mais coloridas, com brancos, negros e índios.

“Antes da política de cotas, de cada 100 alunos, apenas um ou dois eram negros. Hoje, estamos num patamar de quase 20, o que já é um avanço. Ainda está muito distante daquilo que nós gostaríamos, mas já é um grande avanço”, salientou Paim.

Como destacou o senador, o avanço já é percebido pela sociedade e, inegavelmente, foi assegurado pelos governos do ex-presidente Lula e de Dilma. Agora, o desafio é continuar nesses ritmo dando igualdade de oportunidades para todos os brasileiros e, por outro lado, fortalecer o combate ao racismo, trazendo a população negra para todas as esferas de poder e decisão.

Números

Os negros são, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013, mais da metade da população brasileira, 52,9% – soma daqueles que se declaram pretos e pardos. A porcentagem, no entanto, não se refletia nos espaços acadêmicos.

Com a aprovação da lei que institui cotas raciais nas universidades federais foi garantindo o acesso a pelo menos 150 mil estudantes negros ao ensino superior.

Segundo os números do Ministério da Educação, em 2013, o percentual de vagas para cotistas foi de 33% e em 2014, 40%. A meta é atingir 50% até o final de 2016.

A quantidade de jovens negros que ingressaram no ensino superior também cresceu, passando de 50.937 vagas preenchidas por negros, em 2013, para 60.731, em 2014. Atualmente, entre universidades federais e institutos federais, 128 instituições adotam a lei de cotas.

Além das cotas, os estudantes negros têm acesso também ao Fies e ao Prouni. Dados do Ministério da Educação de 2014 mostram que os negros são maioria nos financiamentos do Fies, cerca de 50,07% e nas bolsas do Prouni, 52,1%.

Um nova Constituição

Todos esses números reforçam a importância do Estatuto da Igualdade Racial. "O Estatuto é quase como se fosse uma mini Constituição no sentido de representar e de unir em um documento só medidas diferentes. Uma coisa interessante no estatuto é a sua própria estrutura. Ele trata de saúde, de educação, esporte e lazer, além de direito de liberdade de consciência, de crença, de cultos religiosos, de acesso à moradia, de trabalho, dos meios de comunicação. Todas essas diversas áreas aparecem de maneira diferente e exigem soluções diferentes", explica o professor de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro, Thomaz Pereira.

De fato, o Estatuto representou um avanço na garantia da plena cidadania de todos os brasileiros. Paim salienta que a lei fortaleceu, por exemplo, a criminalização do racismo, inclusive da injúria.

“Quando se penaliza inclusive a injúria racial como crime hediondo, não podendo ser usada a fiança e nem prescrevendo, é uma demonstração de avanço. Ainda está longe daquilo que nós queremos, mas é inegável que, no geral, é um marco no campo de avançar nas políticas públicas de combate ao racismo e do preconceito”, disse o senador.

Para Paim, a população negra deve se apropriar do Estatuto e fazer com que ele seja aplicado na íntegra. “A lei existe para ser aplicada. Mesmo com a lei sendo aplicada se faz barbárie, como é o caso da Lei Maria da Penha que apesar dos avanços a violência contra a mulher continua crescendo. Calcule como seria se não tivéssemos a lei? A mesma comparação eu faço com a questão racial. Se não tivéssemos todos os projetos que aprovamos, como os meus, da Benedita da Silva, do Abdias do Nascimento e de tantos outros, a situação seria ainda mais cruel”, analisa.

E completa: “Se nós olharmos para traz, vamos ver efetivamente que fizemos muito, mas ainda temos muito por fazer. Hoje, temos pelo menos umas duas dúzias de parlamentares negros. Temos um senador que assume totalmente a sua negritude, que é o meu caso. E, com muito orgulho, digo que sou o parlamentar que em toda a história da República mais apresentou projetos de combate ao racismo e ao preconceito. Se eu apresentei tudo isso e aprovei, significa que nós estamos avançando”.

Sobre o 20 de novembro, Dias da Consciência Negra, Paim reafirma o desejo de que a data seja um momento de “reflexão nacional de políticas contra o racismo e contra todo tipo de preconceito”.

“O 20 de novembro tem uma simbologia por ser a grande data de combate a todo tipo de preconceito. Tenho certeza de que vamos continuar avançando”, concluiu o senador gaúcho.