10 anos do Não à Alca

A 10 anos do Não à Alca, estamos num cenário de esgotamento dos modelos propostos por aqueles que foram protagonistas da luta contra o neoliberalismo. “Temos uma dupla missão: primeiro, enterrar a Alca e o modelo econômico imperialista, capitalista, e depois, companheiros e companheiras, deveremos ser os parteiros do novo tempo, os parteiros da nova história, os parteiros da nova integração, os parteiros da Alba” (Hugo Chávez, Mar de Plata, 2005).

Por Félix Caballero Escalante, na Carta Maior

Manifestação contra a Alca em Cuba - Reprodução

Nos dias 4 e 5 de novembro de 2005, foi realizada a IV Cúpula das Américas, na cidade argentina de Mar de Plata. Na ocasião, os presidentes do continente, liderados por Hugo Chávez, Néstor Kirchner e Lula, disseram não ao tratado continental de livre comércio proposto pelos Estados Unidos, a chamada Área de Livre Comércio das Américas (Alca), uma iniciativa de recolonização continental.

Se inauguraram os anos dourados da vanguarda antineoliberal do começo do Século XXI, promovido por um bloco de governos progressistas (Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai), que buscaram combater as políticas que atentavam contra a soberania nacional e aprofundava as assimetrias.

O epicentro desse movimento antineoliberal se localiza no eixo Havana-Caracas, sob a direção de Fidel Castro e Hugo Chávez, estabelecendo a Aliança Bolivariana para América (Alba) fundada no dia 14 de dezembro de 2004, em Cuba.

A 10 anos do NÃO à ALCA, nos encontramos num cenário de esgotamento dos modelos proposto por esses governos progressistas, que naquele tempo foram protagonistas no processo de ofensiva contra o neoliberalismo, mas agora se encontram infiltrados por correntes internas e externas, que apostam por um capitalismo “humano” ou “corretamente gestado” na aliança com capitais estrangeiros, cuja variante poderia ser que não só provêm de potências tradicionais mas também de países emergentes, como Rússia e China.

O progressismo, um adjetivo ambíguo

O progressismo em nossos tempos envolve uma ampla gama de tendências políticas, o que nos obriga a fazer uma diferenciação:

Por um lado, existem os progressismos de centro-esquerda que promovem uma administração mais autônoma dos recursos nacionais, sem apontar para uma superação do capitalismo. Por exemplo, os governos do Brasil e da Argentina promovem políticas que reduzem parcialmente as diferenças entre as classes sociais, mas o caráter reformista desses processos populares-nacionais os faz vulneráveis a serem submetidos aos interesses das classes que tradicionalmente se beneficiam do capital estrangeiro.

Por outro lado, existem os progressismos que se reivindicam anti-imperialistas, apesar de estarem ameaçados por correntes que promovem o desenvolvimentismo [2], assumem uma postura propositiva para a superação do capitalismo e do sistema-mundo pauperizador. Exemplos claros deste tipo de posturas são os governos do Equador, Bolívia e Venezuela, que propõem iniciativas que reivindicam o poder popular constituinte e promovem o controle soberano dos recursos naturais para investi-los em políticas sociais e ecológicas, baseadas na filosofia Sumak Kawsay.

O neoliberalismo em tempos de polarização

Em paralelo ao esgotamento dos modelos propostos pelos distintos governos progressistas, irradiam do seio do triunvirato (Estados Unidos, Europa e Japão), pilar fundamental da ordem mundial, três megaprojetos que se baseiam nas mesmas premissas do ALCA, mas agora aplicadas numa área geográfica mais ampla e com algumas lições aprendidas dos fracassos em 2005, como a necessidade de reforçar o secretismo das negociações, aplicar uma rigorosidade maior com respeito aos mecanismos de proteção dos investimentos, assim como ampliar a legislação das privatizações dos serviços públicos e das patentes de produção farmacêutica.

Estamos falando do Tratado Transatlântico para o Comércio e os Investimentos (TTIP, por sua sigla em inglês), negociado em segredo entre os Estados Unidos e a União Europeia, o Tratado Transpacífico de Associação Econômica (TPP, por sua sigla em inglês), já assinado por Austrália, Brunei, Chile, Estados Unidos, Japão, Malásia, Nova Zelândia, Peru, Cingapura, Vietnã, Canadá e México, e o mais amplo em termos de territorialidade, o Acordo Internacional sobre Comércio de Serviços (TISA), que conglomeraria dois terços do comércio mundial de serviços através da aliança de 51 países.

O propósito desta contraofensiva neoliberal é o mesmo que se planejaram historicamente desde a Secretaria de Estado dos Estados Unidos, impulsionado através do pan-americanismo desde 1889: alterar as dinâmicas nacionais com a incorporação dos países a uma geopolítica do capital construída por tratados e zonas de livre comércio, negociados de costas para os povos, com a implicação de eliminar as barreiras aduaneiras, levantar as restrições ao capital estrangeiro, forçar os Estados a reduzir o gasto público e social, além de criar mecanismos de proteção aos investimentos estrangeiros, que podem obrigar o Estado a se sentar no banco dos réus num tribunal internacional, por aplicar medidas protecionistas [5].

As incoerências do neoliberalismo

Com a promulgação do Tratado de Marrakesh (1994), que cria a Organização Mundial do Comércio (OMC), os Estados industrializados levaram a economia internacional há um processo paulatino de abertura, satanizando toda iniciativa que pretenda fortalecer as economias nacionais autonomamente, contra os interesses dos capitais transnacionalizados. Apesar disso, com uma atitude hipócrita, os capitalismos de primeira ordem conseguiram se fortalecer unicamente através da implementação de medidas protecionistas promovidas por seus Estados [6].

O Estado, ainda que os ideólogos apologéticos do neoliberalismo o neguem, cumpre um papel fundamental na promoção da ordem neoliberal.

É verdade que este sistema abre as vias para que o capital privado se aproprie das funções principais do Estado, como a manutenção da soberania nacional e a autodeterminação política, o fornecimento de serviços públicos como a água, a eletricidade, a educação, a saúde, a alimentação, a segurança, entre outros.

Não obstante, a teoria neoliberal aponta que a infraestrutura para a mobilidade das mercadorias – aeroportos, portos, estradas, ferrovias e o reforço do aparato coercivo, essenciais para manter a ordem na hora de aplicar os pacotes neoliberais financiados pelos cofres públicos – os que, finalmente, são manejados pela instituição estatal.

O neoliberalismo se baseia num relato mágico promovido por Milton Friedman e seus “Chicago Boys” [7], já que nem a ideia da redução do Estado, nem a concepção de que a abertura aos capitais transnacionais como solução ao “subdesenvolvimento”, foram comprovadas cientificamente.

Para concluir

O progressismo, em sua apresentação reformista ou revolucionária, consegue frear o neoliberalismo, no período entre os últimos anos do Século XX e o começo do Século XXI, com diferentes graus de radicalidade. Entretanto, pelo atual auge das correntes que promovem o mito do “capitalismo humano”, talvez porque não puderam desarticular o metabolismo do capital globalizado, tendo como consequência que este se fortaleça, e se adapte às limitações impostas ao seu funcionamento durante essa onda de mudanças e transformações sociais.

As potências capitalistas industrializadas nunca aplicaram os preceitos do neoliberalismo para fortalecer seus aparatos produtivos nacionais. Apesar dos ideõlogos neoliberais promoverem uma economia que não seja um tema tratado pelo Estado, a figura estatal foi, é será um instrumento fundamental para a constituição da ordem neoliberal.

Se observa, dentro dos diversos países onde os processos progressistas avançam, uma espécie de “empate catastrófico” [8], onde existe a presença de uma oposição que tem não só a capacidade de mobilizar um bloco da população contra os projetos antineoliberais, mas também de promover uma proposta programática de um modelo de país diferente da ordem de capitais transnacionais.

Esse empate, a queda nos preços das matérias-primas e as indefinições por parte da direção política dos governos progressistas, permeados por correntes neodesenvolvimentistas, podem por fim ao ciclo de mudanças e transformações sociais e dar um passo na direção da ditadura do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Não obstante, falar do fim de um ciclo atualmente é negar a capacidade dos povos de lutar e reorganizar, de reaglutinar suas forças e avançar, como se coloca como estratégia na Guerra Popular Prolongada, idealizada por Mao Tsé-Tung.