Osvaldo Bertolino: Cervejas do barulho

O poder das corporações privadas é um desafio para os Estados democráticos. A empresa que controla a produção de cerveja no Brasil, a Ambev, é um caso exemplar. Como constatou Karl Marx, a produção é dominada por um número constantemente menor de magnatas do capital. Ao trazer o assunto do poder para a discussão econômica, ele desmistificou a noção de absolutismo do mercado.

Por Osvaldo Bertolino

Ambev trabalhador

A Ambev, gigante da indústria de bebidas, desde que foi constituída, em 1999, por onde passa faz muito barulho. O mais recente caso ruidoso envolvendo a empresa no noticiário econômico foi o acordo das duas maiores cervejarias do mundo, a SABMiller e a AB InBev (controladora da Ambev), para formar um grupo ainda maior. Fala-se em cifras bilionárias, na casa dos US$ 100 bilhões. Se o negócio for concluído, será a quinta maior fusão da história corporativa global e a maior aquisição já feita de uma companhia inglesa; o grupo produzirá um terço da cerveja consumida no mundo.

Um fundo de investimentos administrado por brasileiros controla parcialmente a AB InBev. Não se sabe ainda, de acordo com o noticiário, qual será o papel da Ambev no negócio, mas é certo que a empresa entrará na dança. Até a cervejaria Itaipava, do brasileiro Grupo Petrópolis, está na jogada — recentemente, ele firmou um acordo de produção e distribuição com a SABMiller.

A notícia confirma uma tendência mundial de múltiplos contratos particulares das grandes corporações privadas para elevar seus lucros. Foi assim que o capitalismo se desenvolveu, formando as categorias de países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Há, certamente, contradições e rivalidades entre os integrantes dos cartéis, trustes e monopólios, mas a regra é a de acordos em torno de seus interesses comuns. O Brasil se inseriu nesse esquema por opção ideológica dos seus setores dominantes, que nunca se interessaram por um projeto nacional de desenvolvimento, com os resultados que ainda hoje estão bem à vista de todos.
Industrialização brasileira

Nos anos 1990, o processo de desindustrialização aplicado pelo projeto neoliberal promoveu um desmonte do pouco de soberania econômica que o país acumulou, sobretudo após a Revolução de 1930 comandada por Getúlio Vargas, e abriu caminho para a onda de fusões e aquisições que varria o mundo “globalizado”. Foi pelas mãos dos neoliberais que a ordem mundial com pretensões à univocidade, surgida das cinzas da Guerra Fria, baseada na mais dura ortodoxia liberal, chegou ao Brasil com a determinação de liquidar qualquer veleidade de soberania nacional.

A constituição da Ambev é um exemplo emblemático. A barulhenta fusão das cervejarias Antárctica e Brahma rompeu a acirrada concorrência no setor, que vinha do início da industrialização brasileira. Criadas por latifundiários de São Paulo, juntamente com comerciantes-importadores locais de origem alemã ligados ao banco Brasilianische Bank für Deutschland — a Antárctica em 1891 e a Brahma em 1902 —, elas representaram, por longo tempo, o potencial da indústria brasileira. Basta citar, como exemplo, a fundação da Companhia Vidraria Santa Marina por Antônio da Silva Prado (figura destacada do mundo político paulista) em associação com as duas cervejarias para abastecê-las com garrafas.

O economista clássico inglês Adam Smith, considerado o pai do liberalismo, escreveu em seu livro Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações — mais conhecido simplesmente como A Riqueza das Nações —, publicado em 1776, que uma ação benfazeja resulta da livre concorrência de todos os capitalistas, uns contra os outros. Para ele, a mão invisível do mercado, a busca do interesse de cada um, equilibra a sociedade. Se os produtores de mercadorias se associam em cartéis e trustes não pode haver liberdade de mercado, disse o próprio Adam Smith. Os empresários não deveriam sequer frequentar o mesmo clube para evitar a tentação de se associarem em monopólios, recomendou.

Multinacional verde-amarela

Essa ideia liberal cedo foi suplantada pela tendência da maximização dos lucros, conceito muito bem formulado por Vladimir Lênin na obra Imperialismo, fase superior do capitalismo. Mais recentemente, com a ordem neoliberal, a tendência de dominação da economia mundial por grupos poderosos (sobretudos ligados ao mundo financeiro, como esse que controla a Ambev) ganhou impulso. Como escreveu o historiador Eric Hobsbawm, não há como duvidar de que em fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e outra nova começou. Nesta, um aspecto relevante é o enfraquecimento do papel dos Estados nacionais.

Quando a Ambev foi criada isso ficou patente. Sob o slogan de multinacional verde-amarela, a empresa mostrou, logo no seu início, que seus interesses não eram nada patrióticos. A Brahma e a Antarctica já estavam associadas à Miller e à AnheuserBusch, respectivamente, gigantes cervejeiros norte-americanos, uma clara demonstração de que não há mocinhos nesse terreno dominado por atiradores profissionais do mercado mundial. A reação da cervejaria Kaiser, controlada pela Coca-Cola, ajudou a revelar os bastidores das negociações.

O presidente da Kaiser, Humberto Pandolpho, denunciou que os dirigentes da Ambev se utilizavam de falácias ao vender a ideia de que estava sendo criada uma multinacional verde-amarela. A tentativa de convencer a opinião pública e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) escondia que a fusão objetivava a formação de um monopólio no mercado de cerveja, com o propósito de aumentar o lucro dos banqueiros envolvidos na operação, segundo ele. O caso foi parar na Polícia Federal (PF), que elaborou um relatório demonstrando suborno no julgamento da fusão no Cade, envolvendo a conselheira-relatora do caso, Hebe Romano.

Um pé em cada canoa

No meio do barulho, o governo brasileiro foi uma força diminuta. Na disputa da opinião pública por meio de um fenomenal aparato propagandístico, o presidente da República, o neoliberal Fernando Henrique Cardoso (FHC), manteve um pé em cada canoa. Logo depois do anúncio da Ambev, ele recebeu do presidente mundial da PepsiCo, Steve Reinemond, uma garrafa promocional do guaraná Antárctica, com o rótulo em inglês. Em seguida, presenteou com um livro o líder do grupo Kaiser, Humberto Pandolpho.

A economia brasileira já enfrentava os percalços da consolidação do Plano Collor pela “era FHC”, alicerçado na política de privatizações e de abertura comercial e financeira. A fase de estratégias e ajustes empresariais fora impulsionada por três projetos do governo para o setor industrial: Programa de Apoio à Capacitação Tecnológica (PACT), Programa Brasileiro de Produtividade e Qualidade (PBPQ) e Programa de Competitividade Industrial (PCI). O "choque de concorrência" proporcionado pela diminuição da proteção cambial e tarifária trouxe para o Brasil a onda de reestruturação produtiva que provocava alterações radicais nos dois polos do modo de produção capitalista: o capital e o trabalho.

Numa ponta do processo, símbolos do capitalismo brasileiro — como Metal Leve, Cofap, Arisco e Bamerindus — entregaram as chaves para ícones do mercado mundial, como Bosch-Siemens, Gessy Lever e Hongkong & Shangai Banking Corporation (HSBC). Outros se aliaram a conglomerados estrangeiros. Internamente, muitas empresas também se juntaram para dominar mercados. As empreiteiras Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez se uniram para explorar concessão de rodovias. O grupo Votorantim aliou-se ao Bradesco e a Camargo Corrêa para participar das privatizações do setor elétrico. E assim por diante.

Encrencas futuras

Na outra ponta do processo, o neoliberalismo empurrou vastos contingentes populacionais para o abismo social. Em São Paulo, por exemplo, a expulsão de pequenas e médias empresas do mercado criou áreas necrosadas. Antigas indústrias viraram galpões caindo aos pedaços e chaminés tomadas pelo mofo. Levas de desempregados começaram a perambular pelas ruas, sem perspectivas, contribuindo para elevar os estratosféricos índices de criminalidade. Era a lógica de que para que alguns possam emergir triunfantes, muitos precisam submergir na pobreza e na miséria. Os que possuíam equipes de salvamento e coletes salva-vidas — como sindicatos combativos e legislação social e trabalhista — eram estorvos inadmissíveis.

Fundir significa também simplificação de estrutura e cargos, traduzida como contribuição ao desemprego. Para os neoliberais, no entanto, as dores provocadas pelo corte de pessoal são fatos irrelevantes. "Esses dramas humanos são terríveis e não devem ser esquecidos, mas é preciso compreender que o investimento direto estrangeiro produz resultados de longe mais positivos para a economia e para a sociedade do que a tentativa de manter o país fechado ao capital de fora", disse recentemente o ex-ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega, agora um renomado consultor neoliberal.

No mundo das coisas práticas, a comoção causada pelo desemprego é mais do que terrível. No Rio Grande do Sul, por exemplo, funcionários da Antárctica deram um "abraço" na sede da empresa para denunciar o fechamento, pela Ambev, das três unidades da fábrica no Estado. Estima-se que oito mil dos dezesseis mil e quinhentos trabalhadores das duas cervejarias fundidas foram demitidos. Continua na ordem do dia, portanto, a defesa do desenvolvimento soberano e inclusivo. Como disse Eric Hobsbawm, "uma economia mundial que se desenvolve pela geração de desigualdades tão crescentes está quase inevitavelmente acumulando encrencas futuras."