Pepe Escobar: A mais nova arma letal da Rússia

Comecemos com um pouco de política russa clássica. O ministro de Finanças Anton Siluanov está traçando a estratégia econômica da Rússia para 2016, inclusive o orçamento do governo. Siluanov – essencialmente liberal, favorável ao investimento estrangeiro – apresentará suas ideias ao Kremlin no final de setembro.

Por Pepe Escobar, no Russia Today

Cidadela do Kremlin, sede do governo da Rússia

Até aqui, nada de espetacular. Mas então, há poucos dias, o jornal online Kommersant vazou que o Conselho de Segurança da Rússia solicitou que Serguei Gláziev, assessor da presidência, concebesse uma sua estratégia econômica, a ser apresentada ao conselho essa semana. Não chega a ser total novidade, porque o Conselho de Segurança da Rússia no passado já várias vezes consultou pequenos grupos de estudos estratégicos, para conhecer a avaliação deles no campo da economia.

O Conselho de Segurança é presidido por Nikolai Patrúchev, ex-diretor do Serviço Federal de Inteligência. Patrúchev e Siluanov não trabalham exatamente no mesmo comprimento de onda.

E aqui entram os detalhes para engrossar o caldo do enredo. Gláziev, economista brilhante, é russo empenhadamente nacionalista – e recebeu sanções pessoais aplicadas contra ele pelos EUA.

Pode-se contar com que Gláziev não economizará munição. Ele é declaradamente a favor de as empresas russas serem proibidas de operar em moeda estrangeira (o que faz perfeito sentido); de se imporem taxas à conversão de rublos para moedas estrangeiras (também faz perfeito sentido); de se proibirem empréstimos externos a empresas russas (os feitos em dólares norte-americanos ou euros); e – o tiro de misericórdia –, induzir as empresas russas que tenham empréstimos a pagar ao ocidente, a não pagar.

Como seria de prever, alguns setores da Think-tankelândia piraram totalmente; imediatamente ‘declararam’ que com absoluta certeza "o setor russo de energia não encontraria muitas fontes de financiamento sem conexões com o ocidente". Tolice. As empresas russas encontrariam financiamento fácil de fontes chinesas, japonesas ou sul-coreanas.

Seja quanta for a atenção que Gláziev obtenha dentro do Kremlin, o episódio inteiro significa que Moscou não tem ilusão alguma quanto ao futuro próximo associado aos excepcionalistas (para o que, basta olhar a relação de candidatos à presidência, de ‘El Trumpissimo’ [aproximadamente "O trunfíssimo” (NTs)], à ‘Hillarator’). Como disse recentemente o vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia Serguei Ryabkov, "devemos esperar sempre maior pressão das sanções.”

Mas uma coisa é absolutamente certa: Moscou não vai recuar para "pacificar” Washington.

Talvez um… neoczarismo?

Pode-se ser tentado a ver os planos de Gláziev como uma volta a uma espécie de czarismo autossuficiente, que cortaria laços com o ocidente. Assumindo que alguma versão próxima disso venha a ser aprovada pelo Kremlin, certo é que pode vir a converter-se em golpe terrível, do qual há risco de a União Europeia não se recuperar.

Imaginem a Rússia não pagando nem um vintém da sua dívida externa de mais de US$ 700 bilhões – sobre os quais as sanções ocidentais acrescentaram custos extra, punitivos, a serem saldados.

O calote seria revide pela dupla manipulação ocidental, dos preços do petróleo e do rublo. A manipulação envolveu jogar no mercado de petróleo mais de 5 milhões de barris/dia a mais, da reserva acumulada por uns poucos suspeitos de sempre, plus manipulação de derivativos na NYMEX, que derrubaram o preço.

Depois, a manipulação derivativa do rublo derrubou a moeda. Quase todas as importações para a Rússia foram virtualmente bloqueadas – e exportações de petróleo e gás continuaram constantes. No longo prazo, assim se criaria significativo superávit na balança de pagamentos para a Rússia: fator muito positivo para o crescimento de longo prazo da indústria doméstica russa.

Vladimir Iakúnin, ex-diretor das Ferrovias Russas, desligado no processo de reformulação da empresa, disse recentemente à AP, em termos bem claros, que o objetivo das sanções dos EUA contra a Rússia sempre foi separar economicamente a Rússia, da Europa.

Sanções, combinadas a especulação contra o petróleo e o rublo, empurraram a economia russa para a recessão em 2015. Iakúnin, como a maior parte da elite econômica/empresarial, conta com que as dificuldades econômicas da Rússia durarão, no mínimo, até 2017.

Atualmente, os únicos produtos russos dos quais o Ocidente precisa são petróleo e gás natural. Calote da dívida russa não teria qualquer efeito nessa demanda no curto-prazo; e provavelmente tampouco no longo prazo, a menos que contribua para uma nova crise financeira no ocidente, semelhante ao que quase aconteceu em 1998.

Todos recordamos agosto de 1998, quando o calote russo sacudiu todo o sistema financeiro ocidental até o fundo. Se a possibilidade de calote da Rússia é hoje objeto de exame sério pelos mais altos escalões do poder naquele país – dentre os quais, claro, FSB, SVR, GRU – não há dúvida de que o fantasma da Crise Financeira Mãe de Todas as Crises Financeiras no Ocidente está de volta. E para a União Europeia pode ser fatal.

Não conseguimos saquear em paz e a culpa é sua

Entra em cena o Irã. O fim das sanções contra o Irã – que se espera que aconteça no início de 2016 – nada tem a ver, na verdade, com o dossiê nuclear. É um "Grande Jogo do Oleogasodutostão” que tem tudo a ver com petróleo e gás natural.

O sonho mais molhado de EUA e UE – continua a ser substituir a Rússia pelo Irã, em termos de gás natural e petróleo importados para a UE. Todos os analistas sérios sabem que pode demorar no mínimo dez anos e exigir mais de US$ 200 bilhões em investimentos, para nem lembrar que a Gazprom resistirá com todas as – formidáveis armas – comerciais – de seu arsenal.

Ao mesmo tempo, as potências financeiras ocidentais no eixo Nova York-Londres não previram que Moscou não se curvaria, nem previram que Putin não aceitaria as ‘ordens’ ocidentais para retirar-se da Ucrânia – de modo que o ‘ocidente’ pudesse saquear à vontade as riquíssimas terras agricultáveis ucranianas. Evidentemente, o ocidente não estuda história: Putin tampouco está retrocedendo, quando impede o ‘ocidente’ de saquear a Rússia.

Assim, todo o lamentável, terrível episódio Kiev, assim como a gambiarra para expansão infinita da Otan, também foram jogadas cujo objetivo era impedir Putin de impedir que o ‘ocidente’ saqueasse a Ucrânia.

O resultado disso tudo é uma deriva geopolítica de dimensões tectônicas: a reconfiguração de todo o equilíbrio mundial de poder, com Rússia e China aprofundando sua parceria estratégica – baseada numa ameaça externa que as atinge ambas, vinda principalmente dos EUA, com a UE como acessório. A inteligência russa sabe muito bem que a aliança torna invulneráveis Rússia e China – as quais, separadas, cairiam facilmente vítimas do "Dividir e Mandar”, marca registrada da destruição.

Quanto ao aspecto anti-Otan, a Rússia teve muito tempo para se remilitarizar, focada em mísseis de defesa e de ataque – que são chaves para alguma futura grande guerra, não os obsoletos pesadões porta-aviões dos EUA. Os mísseis russos de defesa, como o ultramoderno estado-da-arte sistema S-500 e os Topol M de ataque – cada um dos quais transporta 10 MIRVs – podem facilmente neutralizar qualquer coisa que o Pentágono tem na prateleira.

Depois da Rússia, os "Masters of the Universe” financeiros tentaram atacar a China, por ter-se aliado à Rússia. Os suspeitos financeiros de sempre atacaram o mercado chinês de ações, tentando derrubar o que houvesse, servindo-se de intermediários em Wall Street para manipular os mecanismos de compensação, primeiro inflando os preços das ações preferenciais chinesas padrão "A”, para criar um boom gigante, e na sequência invertendo os valores da compensação, para derrubar o mercado.

Não surpreende que Pequim, que entendeu perfeitamente o que se passava, tenha: intervindo massivamente; esteja estudando ativamente todos os movimentos das compensações; e esteja analisando todos os registros dos principais corretores de ações na China.

Batida para prender os suspeitos no banco central

O Kremlin teve de tomar uma atitude naquele Banco Central da Rússia.

O BC russo manteve os juros altos, obrigando produtores russos de petróleo e gás a financiar suas operações com recursos obtidos de fontes ocidentais, o que empurrava a economia russa para dentro da armadilha da dívida.

Esses empréstimos à Rússia eram parte do mecanismo de controle pelo eixo financeiro Nova York-London. Se Moscou ‘desobedecesse’ o ocidente, o ocidente exigiria pagamento imediato, depois de ter derrubado o rublo, tornando impossível qualquer pagamento – como fizeram contra o Irã.

Esse é o mecanismo mediante o qual o ‘ocidente – e suas instituições, o FMI, o Banco Mundial, o Banco Internacional de Compensações, a gangue toda – ‘governa’. Pequim está-se movimentando, seja para complementar seja para substituir esse cenário por novas instituições internacionais mais democráticas.

Se o Banco Central da Rússia estivesse operando sob fundamentos mais confiáveis, teria emprestado dinheiro a juros mais baixos que o ‘ocidente’, e teria conectado cada empréstimo a um investimento produtivo. É modus operandi completamente diferente do que fazem os EUA – onde a maior parte do crédito distribuído pelo Banco Central vai para bancos e financeiras para que possam perpetrar seus ataques especulativos.

Michael Hudson, dentre outros, já demonstrou como o Fed só serve aos interesses de seus patrões financistas e não dá nem bola para a infraestrutura industrial dos EUA, que foi progressivamente migrando para as colônias e/ou estados vassalos, e também para a China.

Foi quando os "Masters of the Universe” acharam que aplicar pressão muito hardcore sobre ambas, Rússia e China funcionaria. Não funcionou. Há boas razões para preocupação: os "Masters of the Universe” continuarão a subir a aposta, mais e mais e mais.

O cenário à frente mostra a Rússia aproximando-se cada vez mais do ocidente, ao mesmo tempo em que labuta para se descolar da teia institucional do ocidente.

A fusão da(s) Nova(s) Rota(s) da Seda codinome "Um Cinturão, Uma Estrada” puxada(s) pela China, com a União Econômica Eurasiana puxada pela Rússia, embora lenta e cheia de obstáculos e despenhadeiros, é irreversível. Interessa aos dois lados investir para desenvolver um empório pan-eurasiano.

O gás natural iraniano irá principalmente para a parte asiática da Eurásia, não para a União Europeia. E a economia chinesa estará trabalhando para se autotriplicar, no mínimo, nos próximos 15 anos – enquanto os EUA continuam a desindustrializar-se.

Seja o que for que Putin e Obama discutam num possível futuro encontro no final do mês em Nova York, nada fará diminuir a pressão excepcional sobre o urso. Faz sentido, pois, que o urso mantenha engatilhada no arsenal uma arma financeira letal.

*Jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Sputinik, Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today e Al-Jazeera.