Haroldo Lima: A moral de Danielli

O nome de Carlos Nicolau Danielli volta ao noticiário nacional, neste final de agosto de 2015. Danielli foi torturado pela ditadura até a morte, há 43 anos, para delatar seus companheiros. Morreu sem delatar ninguém.

Por Haroldo Lima*, no blog Renato Rabelo

Carlos Nicolau Danielli

O Ministério Público Federal denuncia agora o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra por ter comandado a tortura e o assassinato de Danielli, nas dependências do Destacamento de Operações e Informações do II Exército, em São Paulo, o famigerado DOI, em 1972.

Conheci Danielli nos ásperos tempos da luta contra a ditadura, há 44 anos. Ambos tínhamos vida clandestina.

A Ação Popular, de cuja direção eu participava, começara um processo de aproximação com o PCdoB, de cuja direção Danielli era membro. No primeiro contacto de direção a direção, Danielli esteve presente, junto com Pedro Pomar, pela parte do PCdoB, enquanto Jair Ferreira de Sá e Duarte Pereira representaram a AP. Daí por diante, outras reuniões se sucederam, e houve encontro em que da parte da AP estiveram Duarte Pereira, Aldo Arantes, Renato Rabelo, além de mim.

Operário de Niterói, Danielli desenvolveu seu conhecimento do marxismo estudando a teoria e participando e dirigindo lutas de classe. Entrou no PC do Brasil em 1948, quando este ainda usava a sigla PCB, e passou a integrar o Comitê Central do Partido em 1954. Esteve com João Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar na linha de frente dos que reorganizaram o Partido em 1962. Ajudou muito na organização da Guerrilha do Araguaia.

Foi o dirigente do PCdoB que acompanhou mais de perto a luta interna que em AP se travou em torno da questão do Partido e que resultou na incorporação de AP ao PCdoB, em 1973. Ouviu, deu opiniões, ponderou, sugeriu. Deixou em todos nós que o conhecemos a impressão de um dirigente atento às nuances, flexível e que, portanto, podia ser firme.

Danielli foi torturado para delatar companheiros, planos do Partido e “aparelhos” da organização desde o momento em que foi preso. Se delatasse, talvez fosse premiado com a vida, mas, delatar, nunca esteve nas cogitações do comunista. Brutalmente massacrado, morreu em 30 de dezembro de 1972, dois dias depois de preso.

A longa tradição dos comunistas no mundo inteiro é a de não revelar segredos partidários, não delatar companheiros, nem sob torturas físicas cruéis, nem sob negociações espúrias.

Quando a ditadura prendia, sobretudo após o AI-5, de 1968, torturava sistematicamente os presos políticos. O objetivo era levá-los à delação e o prêmio era a vida. Muitos não delataram e conseguiram sobreviver; outros não conseguiram sobreviver, mas não delataram; e houve os que delataram para ter uma sobrevida, sem dignidade.

Danielli está no grupo dos que não conseguiram sobreviver à selvageria das torturas que lhe foram infringidas, mas não delatou. Morreu, mas vive na memória de seus companheiros de luta e do povo brasileiro, que lhe considera herói.

Perpassa hoje nos meios jurídicos a ideia da “delação premiada”, que de resto vem da Idade Média, da época da Inquisição. Argumenta-se que tem eficiência, que traz dinheiro roubado de volta, que é traição entre criminosos e não entre revolucionários, que não tem nada a ver com a delação da Inconfidência Mineira feita por Silvério dos Reis, para receber como prêmio o perdão de suas dívidas, e que levou à morte Tiradentes. Aliás, a traição de Silvério dos Reis foi considerado gesto honroso pelas autoridades da época, ligadas à Corte portuguesa, que consideravam criminosos os que foram delatados, Tiradentes e os que tramavam libertar o Brasil.

O Juiz Sérgio Moro, que administra com desenvoltura a “delação premiada”, deve ter estudado bem o assunto no curso sobre lavagem de dinheiro que fez sob os auspícios do Departamento de Estado americano, nos Estados Unidos.

Ele chega a deixar na cadeia, por meses, corruptos ou suspeitos de corrupção, sem culpa formada, em condições precárias, sob a ameaça de longa condenação ou de ter familiares presos, a não ser que decidam delatar. E não considera isto uma forma de tortura. Os que se tornam delatores são beneficiados, os que resistem são punidos.

Esta é a moral que está vigorando. É legal, baseia-se em leis brasileiras, é usada em alguns países, como Itália, Estados Unidos, Colômbia, todavia tem plenitude ética questionável até entre os magistrados responsáveis por sua aplicação.

A moral dos comunistas é outra, é não delatar. Era a moral de Carlos Danielli.