Rosane Pavam: O voo livre de Liniers

Ricardo Siri Liniers acredita que a arte exista para nos separar um pouco da realidade, esta que, em seu entender, nada de novo mostra a quem a vive. Eis por que, para o mais célebre desenhista argentino atual, voar equivaleria a deixar o mundo conhecido para trás. Quando pinguins, meninos na cama, coelhos ou gatos alçam voo em algumas de suas 4 mil tiras, iniciadas há 13 anos, é isto o que parecem procurar, a abrupta separação da vida cotidiana.

Por Rosane Pavam*, na Carta Capital

Ricardo Liniers - Diana Abreu

“Calculo que seja por aí, porque estou pensando nisso somente agora”, diz o artista, surpreendido com a pergunta “por que voar?” aplicada a seus quadrinhos. Para quem o lê habitualmente, contudo, abrir as asas é quase um sinônimo da palavra Liniers.

“Algumas religiões na Índia acreditam que a alma é um pássaro”, diz um de seus personagens, no qual pousa uma ave com chapéu. Após desenhar o percurso de um voo, o animal volta à cabeça do garoto para concluir: “Sim, pode ser”.

Na Caixa Cultural Correios, em São Paulo, a exposição Macanudismo – Quadrinhos, Desenhos e Pinturas mostra até o dia 1º de setembro um grande artista com os faróis voltados para trás. Aos 42 anos, Liniers reverencia o Krazy Kat de George Herriman ao desenhar seu gato Fellini ou evoca a arte de Winsor McCay ao compor Lo que hay antes de que haya algo.

“Para mim, as páginas de seu personagem Little Nemo são as mais incríveis das histórias em quadrinhos”, diz. “E McCay as produzia uma vez por semana sem a obrigação de acertar, sem nada por trás. O artista inventou a HQ e só depois começou a fazer algo com ela. Seguramente é uma influência para mim, mas tão inalcançável, demasiadamente gigantesca.”

Ele que tem 600 obras expostas em São Paulo, cidade onde finaliza um percurso brasileiro de exposições iniciado três anos atrás no Rio de Janeiro, no Recife e em Brasília, caminha para um reconhecimento tão completo quanto o obtido pelo conterrâneo Quino, o criador de Mafalda em 1962. A turma dos Macanudos (ou “supimpas”, como lhe traduziram a expressão ao chegar ao Brasil) tem, como os Peanuts de Charles M. Schulz, uma rua a percorrer. Mas sua verdadeira origem não está somente nesse desenhista americano, antes em escritores como Emilio Salgari, Júlio Verne ou Mark Twain, cujos livros Liniers devorou na infância.

A aventura, portanto, é o que leva Enriqueta a percorrer a terra e o ar com o urso Madariaga, assim como o coelho, alter ego do autor, a localizar no papel suas doces aflições, enquanto o menino Martincito jamais viverá sem o consolo e o carinho da parceira imaginária Olga. Porque, raciocina Liniers, como será possível compreender Jorge Luis Borges sem antes ter saboreado as linhas de Twain? “Não se pode subestimar uma criança”, ele crê. E é preciso, agora mesmo, dar-lhe o melhor. A seu ver, Mafalda prepara alguém para a vida adulta tanto quanto Huckleberry Finn. “Não porque esses dois clássicos personagens nos ensinem o bom comportamento. O que eles nos ensinam é a questionar.”

Ao contrário de Quino, contudo, que por meio de Mafalda pode contestar a razão social asperamente, Liniers busca a imersão enquanto desenha seus personagens plenos de criticismo no céu. E sua maneira lateral de observar o mundo, acrescida da especulação sobre os pequenos fatos da vida, aproxima-o do mundo feminino. “Minhas filhas Matilda, Clementina e Emma são meus motores potentes. Vivo rodeado de mulheres”, orgulha-se. “O lindo sobre os quadrinhos é que, nos últimos 20 anos, tenham recebido todas elas. Isto era um Clube do Bolinha antes. Os homens tinham suas maravilhosas aventuras protagonizadas por Corto Maltese e Lucky Luke, e dos personagens não largavam, enquanto elas ficavam do lado de fora desse universo. Quando as mulheres entraram nos quadrinhos, a riqueza imediatamente se duplicou. Estou sempre conectado com minha menina interna.”

E não se trata de uma proximidade qualquer. Há dois meses, em seu perfil no Twitter, Liniers publicou um desenho em que Enriqueta aparecia de olhos fechados, a mão esquerda levantada em punho e a direita a segurar Madariaga. Sob a hashtag Ni Una Menos, a menina convocava todos para, no último dia 3 de junho, integrar a grande passeata contra o feminicídio, responsável por vitimar a adolescente grávida Chiara Páez, que teve o corpo enterrado na casa do namorado em Rufino, e a advogada Gabriela Parra, assassinada pelo esposo na doceria Caballito, em Buenos Aires.

“Nenhuma a menos”, porque agora, com a adesão das mulheres, o mundo era mais. Sua potente charge, que singularizava a terna Enriqueta no momento de lutar, viralizou mundialmente. “Apareceu gente tatuada com esse desenho na manifestação. Foi uma coisa muito forte para mim, tanto quanto, naquele momento, conversar com os atingidos pela tragédia”, ele conta. “Nunca me pareceu que meu desenho se tornaria tão grande, mas, pensando bem, a ideia ao realizá-lo era mesmo tornar a marcha ainda mais visível. Não se pode aceitar o feminicídio que hoje anda pela Argentina.” Adepto da aquarela por se sentir “um velhinho diante do computador” ou por acreditar na originalidade daquilo que compõe com as próprias mãos, Liniers é antes de tudo um forte, disposto a transformar as coisas. “Creio que a arte pode mudar o mundo, mas apenas no sentido em que os Beatles o mudaram”, ensina. “John Lennon disse as coisas de uma maneira tão adorável, divertida e feliz que nos fez pensar melhor.”