Retorno a Ítaca: Mãos à obra. Foi-se o tempo das utopias

“Padura, para mim, é a prova viva da vitória da revolução cubana”, escreve o jornalista Miguel do Rosário. “É o momento em que a revolução adquire tanta confiança em si mesma que se permite dar a um escritor crítico ao regime cubano, o seu maior prêmio: o Prêmio Nacional de Literatura de Cuba.” Ele resume com precisão o que venho pensando faz 15 dias, desde que assisti Retorno a Ítaca, (2014) filme do franco belga Laurent Cantet, que me deixou perplexa.

Por Léa Maria Aarão Reis, na Carta Maior

Retorno a Ítaca - Reprodução

O roteiro é, nada mais nada menos que do excelente escritor Leonardo Padura, crítico consciencioso do regime político cubano, com a colaboração de sua mulher, Lucia López Coll, e do cineasta europeu autor de dois filmes políticos memoráveis: Recursos Humanos (1999) e Entre os Muros da Escola, (2008) ambos premiados em diversos festivais mundo afora.

Lançado no circuito Rio – São Paulo quase em segredo, em cinemas/estúdios pequenos e em horários restritos, ele é o resultado do fascinante trabalho de dois artistas virtuoses embora a fórmula ‘reencontro/de amigos/ décadas depois’ já esteja um pouco aguada. O filme canadense As Invasões Bárbaras, de Denys Arcand, é uma referência, e o ótimo iraniano Procurando Elly, de Asghar Farhadi, são dois dos muitos exemplares que trataram do tema, no passado.

Só que desta vez a narrativa do filme de um grupo de amigos da juventude, agora na meia idade, reunidos depois de longa ausência, e fazendo um balanço de vida durante uma noite inteira, em uma laje da Havana del medio – a região situada entre a cidade moderna, dos grandes hotéis, e a antiga, a histórica, a da Floridita de Hemingway, da Bodeguita, de Chico Buarque, da catedral e da linda praça de armas – tem um ingrediente explosivo.

Estes amigos cubanos de Cantet e de Padura discutem, com o Malecón no fundo, o que fizeram e estão fazendo de suas vidas em La Habana – ou fora dela – amadurecendo sob o regime de Fidel nos anos 90, período mais duro do embargo que a ilha conheceu, pós-derrubada do muro de Berlim, e até hoje – antes, porém do reatamento anunciado com o governo dos EUA. O filme foi lançado semanas antes da notícia-bomba.

O eixo central é a cobrança sobre Amadeo, aquele que poderia ter sido escritor, partiu para a Espanha e agora está de volta – seu retorno é o pretexto para a reunião. Outros, uma médica oftalmologista ressentida cujos filhos preferiram os ares de Miami e nunca mais deram notícias; o engenheiro que trabalha e sobrevive recuperando baterias de carros usadas; o insinuante oportunista que a qualquer momento pode ser detido por corrupção, e o talentoso artista plástico ex – alcoólatra que se rendeu à mediocridade do chamado fácil da publicidade.

Os amigos/atores são excepcionais. Eles lembraram a nossa emoção, e o prazer que tivemos, na época, com o seu frescor, paixão e entusiasmo com que se entregam aos seus papéis, àqueles músicos do Buena Vista Social Club de Wim Wenders e Ry Cooder.

Isabel Santos, Jorge Perrugorria, Fernando Hechavarría e Pedro Ferran, os principais, contribuem decisivamente para a agilidade e o brilho da estonteante narrativa.

Em entrevista ao jornal El País, o autor de O Homem que Amava os Cachorros, Prêmio Princesa de Asturias das Letras, na Espanha – um dos mais importantes do mundo -, diz que se inspirou no episódio de um dos seus romances, La novela de mi vida e que a cenografia do filme é praticamente também um personagem do filme: o bairro Centro-Havana.

“É uma estrutura importante para um cubano; mostra a cidade como proteção, como meio envolvente, e o mar como princípio e fim da cidade e dos sonhos, das possibilidades, das frustrações, das esperanças.” No entanto, “os sonhos podem até ser roubados”, diz Padura através de um dos amigos/personagens, “mas não as nossas vidas.”

O filme comenta o desalento da vida cubana nos anos 90, com o embargo econômico e sem o suporte da extinta União Soviética. A época em que quase não se via batatas, nos mercados, e comia-se as cascas fritas das raras encontradas nos primeiros paladares que despontavam na cidade.

Retorno a Ítaca estende a amargura aos dias de hoje. É um filme imerecidamente melancólico. Mas que pôde ser feito assim, severamente crítico, na ilha, hoje. Comenta Padura, na sua entrevista ao El País: ”Nenhuma instituição cubana ou instância me afeta. Sou um escritor que pode desfrutar de uma grande liberdade escrevendo dentro de Cuba.”

“Naquele enredo,” diz uma espectadora brasileira que trabalhou em Havana, ao deixar o cinema depois de assistir o filme de Cantet-Padura, “as frustrações dos cinco amigos passam também pela frustração de um sonho libertário que embalou a nossa geração. Acho que isso é o que doeu em mim. É verdade, por exemplo, que a Ilha acabou de anunciar ao mundo que no seu território não há mais transmissão do vírus HIV de mãe pra filho! Tantas são as vitórias da pequena Ilha. Mesmo assim, para sermos honestos, não há como negar as escorregadas do regime.”

O romano Tácito dizia transvectum est tempus para significar ‘já se foi o tempo’. É duro, às vezes, aceitar, como escreveu Tarso Genro no seu belo pequeno conto, recém-publicado em Carta Maior, Sobre um Cão Amarelo, que nós, “humanos buscando algo significativo no passado, utopias não realizadas, amizades frustradas por alguma desatenção, enigmas filosóficos” (…) “em vários momentos da vida, quando buscamos processar as nossas perdas de rumo, em qualquer latitude da vida, sem abdicar da visão mais ampla dos nossos roteiros.”

O tempo passou. Agora – sempre –, mãos à obra para construir as novas utopias.