Samuel Lima: E o poeta fez seu voo pássaro

A travessia dos vendedores de sonhos começou há quase 50 anos, à sombra generosa dos tambores, sons e sabores de Minas Gerais. Sim, caro poeta Fernando Brant, essa era sua profissão por excelência: “Vendedor de sonhos/ tenho a profissão viajante/ de caixeiro que traz na bagagem/ repertório de vida e canções/ E de esperança/ mais teimoso que uma criança/ eu invado os quartos, as salas/ as janelas e os corações…”.

Por Samuel Lima*

Fernando brant - Reprodução

Contudo, na noite veloz de 12 de junho você fez o seu voo pássaro em sua amada BH, deixando um repertório de vida e canções com mais de 300 composições. Penso, porém, que o seu legado maior é o Clube da Esquina, obra coletiva daqueles meninos que nos anos 1960 ousaram sonhar e lutar em plena ditadura, usando como “arma” seus violões e canções: “sonho feito de brisa/ vento vem terminar”. E lá estavam juntos contigo parceiros como Milton “Bituca” Nascimento, Wagner Tiso, Nivaldo Ornelas, Márcio Borges, Paulo Braga, Beto Guedes, Toninho Horta, Tavinho Moura, Ronaldo Bastos, Lô Borges, dentre outros.

O jornalista Luis Nassif resgatou um texto de sua lavra intitulado “Golpe”, no qual expressas tua visão de menino, mineiro de Caldas, aos 17 anos transitando entre Diamantina e BH, ouvindo pelas ondas do rádio, naquele começo de março de 1964, o prenúncio das mais de duas décadas de trevas que se abateriam sobre o país. Você revela: “A Cultura me alimentou durante esse período de repressão e escuridão. O teatro, com espetáculos poéticos que nos inflamavam, vindos do Rio, São Paulo ou nascidos aqui mesmo, carregava nossas baterias para que suportássemos os tempos que se anunciavam. Música, cinema e literatura eram um saboroso combustível para o quase menino que eu ainda era”.

No pós-1968, quando a ditadura baixou o AI-5 e Decreto 477 (ato institucional contra a liberdade na educação) você recordava: “Senti isso de modo profundo quando voltei às aulas no início de 1969. Tudo era um vazio e um silêncio. Fomos levando nossas vidas na resistência pacífica, eu já escrevia canções nesta época, mas muitos daqueles jovens que beiravam os vinte anos acabaram empurrados para a luta clandestina, o que resultou em muita morte. Tempos de desespero aqueles, que devem ser lembrados para que não mais ocorram. Ditaduras e ditadores, sob qualquer pretexto ou ideologia, merecem desprezo, repulsa e nojo” (Fonte cit.).

Sua palavra, de poeta-cidadão, sempre esteve sentinela e atenta ao que acontecia no Brasil. Poesia “comprometida com a minha e a tua vida”, para lembrar um verso de outro poeta, amazônico, o grande Thiago de Mello. Não obstante você registrou cristalino, no poema 1965: “Quando eu pus o pé na estrada/ Não sabia de estrada nenhuma/ Nem via que caminhava/ O tempo em que caminhando eu ia”.

Sem embargo, poeta, no começo dos anos 1970 o clássico LP Clube da Esquina (1972) saía grávido de alegorias, canções de esperança (“Há sol e chuva na sua estrada/ mas não importa, não faz mal/ você ainda pensa e é melhor do nada…”). Nesse marco do Clube, sua palavra indicava o caminho da vida, e da luta, com rara beleza, em “Saídas e bandeiras”: “O que vocês diriam dessa coisa/ que não dá mais pé?/ o que vocês fariam pra sair dessa maré?/ o que era sonho vira terra/ quem vai ser o primeiro a me responder?”.

A obra se faz definitiva seis anos mais tarde, com o lançamento do Clube da Esquina 2 (1978), bolachão duplo, mais denso ainda que a primeira edição. Clássicos como Paixão e fé, O que foi feito deverá e Maria, Maria davam o tom exato do seu verso, elevado à categoria de canção popular. No dueto com Elis Regina e Milton Nascimento, sua voz se elevaria sobre as montanhas Gerais: “O que foi feito amigo/ De tudo que a gente sonhou/ O que foi feito da vida/ O que foi feito do amor (…)/ Se muito vale o já feito/ Mais vale o que será/ E o que foi feito/ É preciso conhecer/ Para melhor prosseguir”.

No disco Sentinela (Milton Nascimento, 1980), você e seu parceiro maior abrem o novo ciclo, aprofundando os laços com Mercedes Sosa (em canção de Silvio Rodriguez). Mas, é neste trabalho que está sua canção mais bela sobre o amor, o afeto. Um hino à amizade, único, definitivo: “Amigo é coisa pra se guardar/ no lado esquerdo do peito/ mesmo que o tempo e a distância digam não/ mesmo esquecendo a canção/ o que importa é ouvir/ a voz que vem do coração”.

No front da resistência, sua voz na voz de Milton Nascimento se manteria altiva e bela, no ano seguinte, no disco Caçador de Mim (1981): “Quero a utopia, quero tudo e mais/ quero a felicidade dos olhos de um pai/ quero a alegria, muita gente feliz/ quero que a justiça reine em meu país”, berra a plenos pulmões seu “coração civil”, escrevendo com clareza de qual utopia falavas.

No ocaso formal da ditadura militar, nos corações das milhares de pessoas que foram às ruas do Brasil exigir “Diretas, Já” (1984/1985), rebrilhava a esperança. E você traduziu mais uma vez o sentimento com genial sintonia: “Quero a liberdade, quero o vinho e o pão/ quero ser amizade, quero amor, prazer/ quero nossa cidade sempre ensolarada/ os meninos e o povo no poder, eu quero ver”.

No texto “Golpe” você lembra essa passagem: “21 anos mais tarde dessa desgraça que se abateu sobre os brasileiros eu teria meu momento de desforra quando, diretor artístico da rádio pública de Minas, com alegria e muito trabalho, junto com os radialistas e jornalistas, colocamos no ar, durante todo o dia, a festa da vitória no Colégio Eleitoral, que trazia de volta a esperança e a democracia. Como nem tudo é perfeito e a vida nos prega peças indesejáveis, acabamos tendo de engolir o sapo Sarney” (Fonte cit.).

Sua coerente trajetória o levaria a escrever Carta à República, que integra o disco Yauaretê (Milton Nascimento, 1987), já sob o signo da chamada “Nova República”, um eufemismo da velha-guarda udenista da política, liderada por um poeta fake do Maranhão. E denunciavas, pela voz e melodia do Bituca: “Eu briguei, apanhei, eu sofri, aprendi/ eu cantei, eu berrei, eu chorei, eu sorri/ eu saí pra sonhar meu País/ e foi tão bom, não estava sozinho/ a praça era alegria sadia/ o povo era senhor/ e só uma voz, numa só canção/ E foi por ter posto a mão no futuro/ que no presente preciso ser duro/ que eu não posso me acomodar/ quero um País melhor”.

No final dos anos 1990, você continua sua Conspiração de poetas (1997, ouça aqui), agora em parceria com Tavinho Moura, outro velho amigo do Clube da Esquina. E com trilha de Cruzada, de Tavinho, você reafirma todo o sentimento, esperança, sonho de mundo, de Brasil, de ser humano…

“Poesia é meu pão
E a vida meu juiz
Meu destino eu mesmo é quem fiz.
Meu coração, amar
Minha razão, brigar pelo País
A minha fé, sonhar
Minha paixão, viver solidário e contigo
É viver feliz.
Minha canção cantará
Quem souber esse caminho
Quem souber de lua e mar
Poesia espaço de brincar
Quem não quer ficar sozinho
Que conjugue o verbo amar
Poesia espaço de criar
Meu coração vencerá
Vencerá…”

E assim te conheci, pessoalmente, aqui no Feitiço Mineiro, casa que abriga shows e culinária das Gerais, em Brasília, naquele 30 de outubro de 2013 – com Tavinho Moura e Mariana Brant (Conspiração de poetas). Guardo na memória do coração o abraço que pude lhe dar, ao final do espetáculo e você, com aquela humildade cativante me perguntou: “Você gostou? Ficou bom o trabalho?”.

A notícia da sua partida, na noite veloz de 12 de junho de 2015, é um desses acontecimentos que deixam na gente aquela sensação estranha de orfandade, de menino-caboclo tapajoara perdido num temporal amazônico… “Pois seja o que vier, venha o que vier/ qualquer dia, amigo, eu volto/ a te encontrar/ qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar”. E assim, “seguir apaixonado/ fazer a coisa bonita/ cair na vida e na música/ que abriram meu horizonte/ atrás eu vejo estrada/ caminho eu vejo à frente”.

À bênção, poeta e menestrel Fernando Rocha Brant!