Fusão entre PSB e PPS: O coro dos castrati 

O jornal Folha de S. Paulo publica nesta segunda-feira (18) artigo intitulado “Um novo projeto para o Brasil”, assinado pelos presidentes nacionais do PSB, Carlos Siqueira e PPS, Roberto Freire. Tratando da anunciada fusão entre as duas legendas, os articulistas prometem “uma plataforma política conectada com os anseios da sociedade contemporânea”. A leitura do texto e o conhecimento sobre a trajetória recente destes partidos bastam para revelar o tamanho do embuste. 

Por Wevergton Brito Lima*
 

castrati - Bezerra

O artigo, publicado na página A3 do jornal paulista, é longo. Apesar disto, nele não se encontra qualquer vestígio de conceitos palpáveis que pudessem fundamentar a prometida “plataforma política”. O infeliz leitor se depara com um deserto de ideias, cercado de lugares comuns e chavões. “O fundamental é olharmos para a frente”. “Convidamos a sociedade a participar desse processo (…) o que a sociedade deseja é encontrar novas formas de se expressar e participar – e o novo partido não fugirá de suas responsabilidades”. “Não devemos nos conformar jamais com a desesperança, o descalabro, a desfaçatez, o estelionato eleitoral, a corrupção”. “A nova força política que emergirá da união entre PSB e PPS acredita no Brasil”.

Platitudes como estas revelam o vazio programático desta fusão, tornando pertinente o esforço para entendê-la.

Comecemos pelo menor número desta equação, o deputado federal Roberto Freire.

Se no futuro algum historiador desocupado perder seu tempo analisando a trajetória política de Roberto Freire, terá, ao final, o trabalho de cunhar apenas uma simples frase: “Foi um trânsfuga”. Freire foi o condutor da liquidação do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Militante do PCB desde 1966, quando estudava direito na Universidade Federal de Pernambuco, ele teria supostamente participado da organização das primeiras Ligas Camponesas.

Estranhamente, em 1970 o General Médici, o mais feroz dos gorilas que infelicitaram a nação durante a ditadura militar, nomeou o “jovem advogado comunista” (28 anos) para o importante cargo de procurador do Incra. Lembremos que apenas seis anos antes o regime ditatorial fez o também pernambucano Gregório Bezerra desfilar pelas ruas do Recife sendo puxado por uma corda no pescoço, o que torna ainda mais intrigante este tipo de nomeação em plena ascensão da repressão.

A crise do socialismo, com a queda do muro de Berlim e o fim dos regimes socialistas na Europa, encontrou em Freire um combatente com a consistência de uma manteiga. Rapidamente enfunou suas velas na direção de onde vinha o vento. Anunciou que a “luta de classes era um conceito superado”. Agora, dizia Freire, o que veríamos era a “parceria conflitiva entre capital e trabalho”. Mudou o nome do PCB (depois refundado por militantes que não concordaram com a manobra) para PPS e para não deixar dúvidas de sua total rendição, Roberto Freire entregou à Fundação Roberto Marinho a guarda de documentos históricos do movimento comunista no Brasil.

A cena de um Roberto Freire reverente e bajulador, entrando nas organizações Globo para entregar ao inimigo parte da memória das lutas operárias, nauseou mais de um democrata.

A partir daí o então Partido Popular Socialista (PPS), que surgia para ser a voz de “uma nova esquerda”, foi se transformando de fato em linha auxiliar da direita, apoiando a pauta neoliberal e assumindo um discurso cada vez mais afinado com o conservadorismo.

Na Câmara dos Deputados, são os parlamentares do PPS que fazem alguns dos mais histéricos discursos contra o período iniciado em 2003 com Lula presidente. Igualmente atacam a “ditadura bolivariana” na Venezuela e toda e qualquer experiência da esquerda no continente.

Desmoralizado em seu estado natal, Pernambuco, Freire precisou transferir para São Paulo seu domicílio político para, sob as bênçãos dos tucanos, tentar voltar à Câmara. Mesmo com todo o empenho do padrinho Alckmin, Freire ficou apenas com a quarta suplência, mas o governador garantiu sua posse nomeando deputados titulares para o secretariado estadual.

Em 2013, no entanto, sempre de olho em uma nova oportunidade, Freire tentou acabar com o PPS, fundando o MD (Mobilização Democrática), que surgiria de uma junção com o PMN. Tal movimento fracassou.

Mas agora vai. O trânsfuga prepara o PPS para a morte e engendra uma nova força, que tendo o DNA disgênico de Roberto Freire, já nasce moribunda.

O PSB, fundado em 1947 por João Mangabeira e refundado em 1985 por Jamil Haddad, Evandro Lins e Silva, Antônio Houaiss, Rubem Braga e Roberto Amaral, teve, até há bem pouco tempo, uma trajetória consequente como uma força da social-democracia de esquerda.

Sobre a atual fusão, ninguém melhor para comentar do que o primeiro secretário-geral do PSB de 1985 e ex-presidente da legenda, Roberto Amaral: “Já não existe o combativo partido que se opôs a Sarney, a Collor, que fez frente a FHC e à privataria tucana (…) tudo é possível esperar de sua atual direção. Essa mesma gente entregou o partido em Santa Catarina ao clã Bornhausen, no Paraná a Beto Richa (cuja obra está estampada nas manchetes) e acolheu em seus quadros, como deputado federal, o inefável Heráclito Fortes. (…) essa fusão é moralmente inaceitável, é o ponto final do PSB. É o sepultamento, no seu programa, do socialismo, do nacionalismo e da prática de uma política de esquerda”.

O PPS e o PSB, unidos, recentemente votaram em peso a favor da terceirização. Na sessão solene da Câmara dos Deputados em comemoração aos 50 anos da Globo, Rubens Bueno, líder do PPS, passando por cima do cadáver de Vladmir Herzog, militante do PCB torturado e morto, exaltou a emissora porta-voz da ditadura. O mesmo fez Heráclito Fortes, que representando o PSB, atribuiu à Globo o movimento Diretas Já, em um esforço patético para reescrever a história, envergonhando a memória de Miguel Arraes.

Na verdade, nada tem a oferecer de novo esta fusão do PSB com o PPS.

Antigamente, garotos, em geral pobres e abandonados, eram castrados antes de entrarem na puberdade para que suas vozes não mudassem, garantindo assim um tom original para o coro das igrejas.

A prática da castração foi proibida apenas no final do século 19 e os castrati sumiram do mapa.

A castração ideológica da esquerda é peculiar pois neste caso não existe qualquer conotação de gênero: pode atingir indistintamente homens, mulheres ou partidos, pois do que se trata é do abandono de uma identidade e de seus compromissos basilares.

Neste sentido, PSB e PPS são os castrati do campo político. Unidas, suas vozes serão talvez agudas, mas para servir sempre ao mesmo coro de loas ao status quo do capital e da burguesia, som inevitável que embala esta união entre oportunismo e traição.