Leandro Moraes Vidal: Europa

Geógrafo, poeta e comunista, Leandro Moraes faz uma reflexão sobre a grave situação que vivem os imigrantes na Europa e os riscos que correm para conseguir atravessar oceanos e chegar ao destino tão sonhado. De forma incisiva e ao mesmo tempo singela, Leandro levanta o debate acerca da questão.

Leia na íntegra:

Bem no meio do mundo (segundo os mapas em que aprendi)
Com uma bela face lusíada a fitar o Atlântico, pode ser,
Mas cotovelos, joelhos e uma bota fincada, isso é certo,
Sobre o dorso da África,
Fica o único continente do mundo que não é
Um continente, mas um apêndice,
Como aquele conhecido monstro vitoriano que ganhou corpo e vida,
Feito de muitas cadáveres cozidos com linha grossa.

"A Europa disse, a Europa não quer, a Europa caminha…"
Asseguram-nos os jornais.

E eis que essa senhora, Europa,
Anunciou ao mundo uma decisão inusitada,
Diante da tragédia vista por todos,
Dos seres humanos morrendo aos montes
Chocando-se contra os dificultosos rochedos de suas fronteiras:

Ela avisa que doravante seus generais
Trabalharão incansavelmente com a missão de planejar
Como utilizarão os mais mortíferos equipamentos militares
Para aniquilar a velha frota de barcos pesqueiros
Que serve ao transporte desses seres humanos.

Impediremos o tráfico negreiro! Berram os entusiastas
Desse curioso conceito contemporâneo,
A intervenção militar humanitária.
Ora, os altruístas e pragmáticos ingleses
Não afundavam eles mesmos as galés abarrotadas
Para impedir que se consumasse o infame comércio de almas?

Alguns detalhes da operação atual são ainda incertos, por certo,
Mas nada que a milenar e especialíssima em sutilezas
Filosofia Ocidental
Não possa resolver.

Por exemplo: a execução da pena da morte
Contra os pescadores líbios
Será feita à revelia de que tribunal?
Terão os ditos traficantes a fineza de identificar seus barcos
Como beligerantes honrados
Segundo as regras da Convenção de Genebra
Evitando dessa forma que os implacáveis projéteis da justiça teleguiada
Atinjam aqueles que se dedicam simplesmente à
Ancestral tarefa de retirar seu alimento do mar?

(Ao custo de dois milhões de dólares por projétil Tomahawk
Iguais aos 110 que a Royal Navy de Sua Majestade
Utilizou num único dia para libertar o povo líbio de si mesmo em 2011)

Apenas, e aqui peço humildemente
Que os inúmeros intelectuais oficiais e comissários de Bruxelas
Iluminem a questão:

Cogito se não seria melhor desinventar de uma vez a navegação.

Não terá se tornado essa prática algo obsoleta
E incompatível com os nossos valores eternos e universais,
Ao trazer tanta miséria à tona?
Não terão justamente começado aí nossos males,
Pelo Mediterrâneo antigo,
Ao se deixar impunes um bando de mercadores morenos
Que chegados em embarcações precárias
E sujeitas a imprevistos naufrágios,
Criaram eles mesmos as primeiras cidades

Da Europa.