José Varella: Uma bela amizade que o tempo não desfaz

“Morte vela sentinela sou do corpo desse meu irmão que já se vai
Revejo nessa hora tudo que ocorreu, memória não morrerá”.
  Milton Nascimento / Sentinela
Como diz a canção Maria de Belém Menezes foi sentinela fiel da memória desse seu irmão camarada de fé chamado Dalcídio Jurandir.

Por José Varella*, especial para o Vermelho

Maria de Belém - Elcimar Neves

Agora com a triste notícia de despedida e passagem para o outro lado da vida da amiga dalcidianam número um de volta ao tempo encantado, onde dizem os sábios de antigas tradições todos viventes hão de retornar; do fundo dos arquivos da Casa de Cultura Dalcídio Jurandir, em Niterói-RJ, saiu imediatamente significativo trecho de carta que é prova cabal de uma constância sem descanso da velha amizade que existiu no Pará velho de guerra entre um poeta anarquista da negritude e um jovem romancista comunista vindo do interior, da sua ilha do Marajó, trazendo ainda em suas mãos de artífice o barro dos começos do mundo. Como dele falou o celebrado Jorge Amado, distinguindo-o ademais própria e indelevelmente de “índio sutil” durante cerimônia do prêmio Machado de Assis de 1972, da Academia Brasileira de Letras, dado pelo conjunto da obra do grande escritor marajoara.

Foi desta memória imortal que Maria de Belém testemunhou enquanto ela viveu em sua altiva simplicidade na Cidade Velha tal qual foram as vidas exemplares de Bruno e Dalcídio. A carta da amiga fiel ao escritor talvez seja, pela data, uma das últimas correspondências entre a grande capital paraense e o bairro nobre das Laranjeiras, ao pé do rio Carioca, na cidade do Rio de Janeiro onde o romancista marajoara apesar de sua proverbial pobreza franciscana morou e já doente havia de falecer cerca de cinco meses depois. Diz, de maneira singela, o seguinte:

“Belém, 25/01/1979
Dalcídio querido,
Um papel especial para agradecer-lhe o exemplar de "Ribanceira", hoje trazido por sua irmã Alfredina. Ela veio a nossa casa debaixo de um toró daqueles! (…)

Você não pode calcular a minha emoção ao ver meu nome entre suas amigas! Que bondade sua! Muito e muito obrigado! Mamãe disse: "é muita honra!". Sei que você homenageia, em meu nome, seu irmão Bruno e lhe sou grata por recordar esses velhos laços de amizade. (…)”

O “irmão Bruno” a que ela se referiu era o genitor da missivista, Bento Bruno de Menezes Costa ou simplesmente Bruno de Menezes (Belém, 21 de março de 1893 – Manaus, 02 de julho de 1963), intelectual orgânico nascido e formado no subúrbio de Belém, no Jurunas de João Amazonas e também de Gaby Amarantos, frequentador assíduou do Umarizal de Tó Texeira e da boemia da Academia do Peixe Frito do Ver O Peso, homem de batuque e curador de São Benedito da Praia na fronteira do catolicismo popular e terreiros de casa de Mina com seu chapa da velha guarda Manuel Nunes Pereira, pioneiro do modernismo na Amazônia que além de amigo fraterno dezesseis anos mais velho foi mestre de Dalcídio José Ramos Pereira, mais conhecido como Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, 10 de janeiro de 1909 – Rio de janeiro 16 de junho de 1979).

O “Ribanceira” – réquiem dos mortos da belle époque amazônica no ciclo da Borracha enterrados em alas de primeira, segunda e terceira classe (esta última a parte que cabia a “mulheres da vida fácil”) no pobre cemitério da cidade ao lado do Fortim, tomado aos holandeses por milagre de Santo Antônio com arcos e remos Tupinambás, nos inícios do século 17. Ou talvez uma litania celebrada em Gurupá por oficiante agnóstico que, entre outras coisas, foi secretário da prefeitura e andou alfabetizando crianças de seringal no rio Baquiá, hoje felizmente fazendo parte da reserva de desenvolvimento sustentável Itatupã-Baquiá – , é o último de dez romances do ciclo Extremo Norte iniciado com o romance seminal “Chove nos campos de Cachoeira”, em 1939, em Salvaterra, na ilha do Marajó. Do Extremo Sul restou o solitário “Linha do Parque”, escrito em Porto Alegre, com seus trabalhadores portuários grevistas e o grave defeito de ter sido recebido pela crítica burguesa como primeiro romance proletário brasileiro, aliás traduzido em russo e mandarim por interesses na Rússia e China comunistas para estudo do movimento operário no Brasil.

Em 1941, Dalcídio pegou o Ita do Norte, partiu de Belém do Pará e foi se asilar no Rio de Janeiro levando na bagagem a sua memorial ilha do Marajó, Belém do Ver O Peso e subúrbios no país que se chama Pará habitado pela criaturada grande. A este acervo da memória infatigável se acrescentaram, dia a dia, notícias do Grão-Para pela correspondência constante do velho poeta “babalorixá” Bruno, desde a partida do amigo para o Rio até a morte súbita do animador da Academia do Peixe Frito, ocorrida na cidade de Manaus (1963), em plena alegria do reencontro com confrades do Clube da Madrugada. Pobre de mim, que peguei carona da viagem dos outros e andei e ando ainda atrás destas pegadas. Foi em Manaus onde me encontrava de passagem vindo da fronteira com a Venezuela, em Roraima, que recebi a notícia da morte anunciada de Dalcidio vencido pelo mal de Parkinson. Havia eu falado com ele a última vez por telefone da casa da tia Alfredina de passagem pelo Rio a caminho de Caracas, aonde fui fazer parte de delegação brasileira à conferência da comissão mista brasileiro-venezuelana de limites.


José Varella é autor de diversos ensaios, entre eles: "Novíssima Viagem Filosófica"
Desgraçadamente, a partida de Dalcídio aos setenta anos de idade já era esperada. Até então, durante 16 anos a fio a zeladora desta amizade ímpar na literatura brasileira, a incansável Maria de Belém Menezes; manteve em dia a correspondência iniciada por seu pai com o amigo Dalcídio.

Foi por intermédio dela que as primeiras notícias sobre o inconformado padre italiano em Santa Cruz do Arari chamaram atenção de Dalcídio e repercutiram como sinos na mansarda das Laranjeiras, no Rio, e de volta a Belém as cartas cariocas animaram o criador do Museu do Marajó – curiosa coincidência no ano de 1972, a criação do sui generis museu marajoara e a premiação do autor do Marajó pela Academia Brasileira de Letras – , a publicar o livro-reportagem “Marajó, a ditadura da água”. Giovanni Gallo morreu em 27 de março de 2003, então a Associação de Municípios do Arquipélago do Marajó (Amam) em parceria com o dito Museu do Marajó transferido e instalado na cidade de Cachoeira do Arari desde 1981 prestaram homenagem a Giovanni Gallo com uma exposição na cidade de Santa Cruz do Arari, inaugurada no dia 7 de setembro, onde o museu nasceu. Oportunidade para carta em abaixo-assinado na Câmara Municipal destinada ao Presidente da República pedindo que o governo federal olhasse pela Cultura Marajoara e em especial o Museu do Marajó, em resposta o Iphan que estivera ausente começou a mostrar presença no chão de Dalcídio. Em 2006 os dois bispos católicos do Marajó foram recebidos no Palácio do Planalto e a Casa Civil, dirigida por Dilma Rousseff, foi encarregada de organizar grupo interministerial para acompanhar ações de política pública no Marajó e elaborar um plano para a região insular Pará-Amazonas. No ano seguinte, Lula lançou na maior cidade da ilha, Breves, o “Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó”: em ato simbólico o Presidente do Brasil entregou a uma mulher marajoara moradora do Alto Anajás, nos centros da maior ilha fluviomarinha da Terra, o primeiro título de regularização fundiária do projeto Nossa Várzea na região. Se não fosse o analfabetismo que avassala a antiga ilha dos Nheengaíbas era caso da Irmandade do Glorioso São Sebastião da Cachoeira celebrar Te Deum Laudemus. Que nem aconteceu na Pax de Mapuá, de 1659, com a primeira missa do Marajó celebrada pelo payaçu dos índios Antônio Vieira em presença de sete caciques confederados por Piyé Mapuá.

Pode-se imaginar o que diriam o romancista da Criaturada grande e o padre dos pescadores do Arari se eles fossem vivos. Em 2008 foi a vez de juntar o programa Territórios da Cidadania – Marajó ao Plano Marajó e na reunião do colegiado federativo Codeter em Soute a 7 de maio de 2009 os participantes ao subscrever a “Carta do Marajó” remeteram ao Presidente Lula, por intermédio de representante da Casa Civil, exemplar da obra “Marajó, a ditadura da água” de Giovanni Gallo, com votos de agradecimento e autógrafos. Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena já dizia Fernando Pessoa. Quando eu ainda conservava um pouco mais de minha inata ingenuidade caboca quis eu na terra natal de Dalcídio, então cedido pelo Ministério das Relações Exteriores à prefeitura local, com as lembranças da emigração clandestina de brasileiros para a zona no euro nas Guianas, criar uma entidade a serviço da cooperação federativa em parceria com a associação de prefeitos em homenagem ao ilustre filho de Ponta de Pedras, seria chamada “Fundação Dalcídio Jurandir – FunDAL”.

A ideia de criação da FunDAL foi saudada com entusiamo, anos de 1995 mais ou menos, até nos círculos de amigos em Belém e a Câmara Municipal de Ponta de Pedras aprovou por unanimidade a lei municipal de iniciativa do executivo. Feliz da vida saí em busca de apoio e de recursos, jamais nos regatearam aplausos. Mas, a coisa amofinou e entrou em colapso quando se tratou de arranjar alguns trocados para custeio de proejetos, lá estava o problema. E que problema!… Não era exatamente falta de recursos, mas falta de responsabilidade socioambiental. Antes disso, o primeiro sinal de fumaça veio donde menos se esperava, por erro de comunicação quando saiu uma notinha na imprensa dizendo que Ponta de Pedras iria construir memorial com “museu do homem marajoara” para homenagear Dalcídio. Não foi apenas Dante o único morto ilustre no mundo disputado por berços de nascimento conflitantes.

A leitura no município vizinho de Cachoeira do Arari além de acender sinal de alerta causou taquicardia ao padre Gallo vendo naquilo golpe potencial contra o Museu do Marajó. E olha que ainda não se sabia daquele desejo do jovem Dalcídio em ser sepultado debaixo da árvore Folha-Miúda ao lado do chalé de Cachoeira perto da beira do rio Arari…

Valeu-nos São Camilo Vianna da Sopren e foi assim que fiquei conhecendo pessoalmente o Gallo e ficamos amigos até a morte do marajoara nascido em Turim (Itália). Havia mais, o prefeito pediu-me para consultar a família de Dalcídio a respeito da possibilidade de remover seus restos mortais para o tal monumento que estava sendo cogitado. Felizmente, os dois filhos do escritor mandaram dizer que estavam muito agradecidos e sensibilizados com a lembrança, mas não consentiriam exumar os ossos do pai do cemitério de São João Batista, onde está enterrado na cripta dos imortais da ABL e agraciados do Premio Machado de Assis. Foi muito bem e eu escapei da entalada. Já o conselheiro Silvio Meira, do Conselho de Cultura Estadual do Pará, bondosamente me havia advertido: olhe o que aconteceu com os restos mortais de Joaquim Caetano trasladado de Paris onde jazia em paz para ser depositado na Fortaleza de São José de Macapá… Que foi que aconteceu? Eu quis saber. Estando em obras de recuperação da fortaleza quando deu-se a inauguração a urna fúnebre havia desaparecido com os ossos do estudioso da questão de limites do Amapá com a Guiana Francesa.

Apesar dos evidentes riscos eu não me dei por vencido. Queria encontrar amigos famosos de Dalcídio dispostos a nos ajudar na obra. Foi aí que fiquei sabendo da viagem de Jorge Amado ao Marajó onde o escritor baiano esteve a convite de Rodolfo Steiner (ver Rodolfo Steiner, “Ilha o Marajó: Na Visita de Jorge Amado”). Pessoa da família dizia que durante a estada na fazenda Amado falou o tempo todo de seu velho amigo e camarada Dalcídio e queria ir a Ponta de Pedras e Cachoeira, pena pois estavam para o lado de Chaves e o tempo deveras curto: de fato, a “ilha” é maior do que a Holanda e a distância entre dois pontos nem sempre é uma reta… As vezes para ir de um município a outro vai-se mais depressa através de Belém ou Macapá… Poucas vezes vi Maria de Belém, mas aquela vez contando seguramente com ela entre os fieis amigos de Dalcídio toquei o telefone para me aconselhar. Quais nomes ela indicaria para convidar a fim de fazer parte da direção da entidade que se estava a organizar. Com delicadeza, começou ela por elogiar a iniciativa e se colocar à disposição. Depois usando de extrema franqueza que lhe permitia a longa amizade com o homenageado, aconselhou-me: vamos contar mais com a nossa própria gente. Sabe, seu tio serviu ao comunismo pela vida toda e outros famosos se serviram do comunismo. Era sim aquela senhora de outros tempos e outros modos, seu modo de ser me lembrava minhas avó e tias queridas. Mulheres sábias.

Neste último domingo (3), nesta mesma cidade morena a amiga fiel sentinela de uma grande amizade e camaradagem entre Bruno e Dalcídio para além da vida e da morte, Maria de Belém se foi. Partiu na lembrança como se apaga a chama de uma vela votiva face ao mistério diante de um oratório familiar. Ela foi zeladora de uma relação quase paternal entre seu pai Bruno a quem o escritor chamava, carinhosamente, seu particular “babalorixá”.

*Autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica", "Amazônia Latina e a terra sem mal" e "Breve história da gente marajoara".