"Dia da Independência" em Israel: mito e memória do despojo palestino

A linguagem que torna oficial a ocupação israelense da Palestina completa 67 anos, enquanto Israel comemora o que chama de “Dia da Independência”, nesta quinta-feira (23). A primeira Regulação sobre Leis e Administração (19 de maio de 1948) “anula a Palestina pela primeira vez”, escreve o jurista palestino Raja Shehadeh. A Regulação afirma: “’Palestina’, onde quer que apareça, na lei, deve ser lida, daqui em diante, como Israel.”

Por Moara Crivelente*, para o Portal Vermelho

Calândia - Moara Crivelente

A data original do “Dia da Independência” é o quinto dia de Iyar, oitavo mês do calendário hebraico, que em 2015 coincide com o dia 23 de abril. Em 1948, coincidiu com 14 de maio. O dia seguinte, 15 de maio, foi estabelecido como a data da Catástrofe palestina – a “Nakba”, em árabe – pela memória de 15 mil mortos e 750 mil expulsos, refugiados (hoje estimados em mais de cinco milhões em todo o mundo), além das mais de 500 vilas destruídas e a continuidade de uma história de despojo ainda persistente.

É preciso esclarecer que a chamada “Questão Palestina” – assim denominada pela Organização das Nações Unidas (ONU) – teve seus pontapés iniciais, num esforço de colonização e avanço imperialista, no final do século 19, com o advento do sionismo. Este empreendimento colonizador, de raizes britânica e francesa, instrumentalizou a religião para legitimar e mobilizar a migração massiva de judeus para os territórios propagandeados como inabitados, ainda que o assentamento dos imigrantes ocorra sobre o massacre de milhares de palestinos e a sua expulsão perpetuada.

As imagens das comemorações massivas do “Dia da Independência” em Israel devem trazer à tona a avaliação histórica das chamadas “guerras de independência” culminantes em 1948 e do fim do Mandato Britânico. A colonização da Palestina foi estabelecida sobre a queda do Império Otomano e da partilha do Oriente Médio entre o Reino Unido e a França, através do Acordo da Ásia Menor, mais conhecido como Acordo Sykes-Picot, concluído em 16 de maio de 1916. O episódio, entretanto, enquadra-se na empreitada pela construção da “Eretz Israel”.

O termo religioso é ainda hoje empregado em textos jurídicos da moderna Israel. Para este pedaço da história, o “Dia da Independência” – apesar da narrativa heroica nacionalista-religiosa sobre as guerras travadas pelos judeus contra árabes e os britânicos – foi a conclusão do acordo entre as elites sionistas para o estabelecimento da “Eretz Israel”, com a expulsão dos palestinos. Os clichês repetem-se nas comemorações, iniciadas com o Memorial, na noite de quarta-feira, para transitar para as festividades, nesta quinta (23). Em alternativa, o movimento Combatentes pela Paz realizou um Memorial misto árabe-israelense de protesto em Telavive, na terça-feira (21). 

Os mitos do heroico

O cenário do Memorial oficial foi Jerusalém; mais precisamente, o cemitério militar do Monte Herzl onde, no cume, está enterrado o pai do sionismo político, Theodor Herzl. Ali foi transmitida a mensagem do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu: “Quando olhamos para os países à nossa volta, enxergamos até que ponto Israel é único em sua democracia vibrante e de direitos iguais para todos os seus cidadãos.”

Ultra-nacionalistas israelenses do grupo Kahanistas – seguidores do ex-parlamentar israelense e rabino Meir Kahane,
que defendia a expulsão dos cidadãos palestinos de Israel – gritam frases racistas e protestam contra o
Memorial do Combatentes pela Paz, em Tel-Aviv. Foto: Dan Cohen / Modoweiss

Além do discurso dominante em que se assenta a opressão cotidiana e constante dos palestinos, enquanto concorria à reeleição, em março, Netanyahu instara os judeus a correr para as urnas porque “os árabes” – 21% da população em Israel – estariam abusando no exercício deste direito. Seus comentários foram repreendidos até por seu maior patrocinador atualmente, os Estados Unidos. Na véspera do Memorial, um colono israelense atropelou quatro palestinos na Cisjordânia, inclusive duas mulheres grávidas.  

Estes são apenas exemplos da violência do racismo e da segregação não só no moderno Estado de Israel, mas na própria ocupação da Palestina. As obrigações da “Potência Ocupante”, Israel, são sistematicamente violadas, a ponto de os crimes de guerra serem sistemáticos e cotidianos. Um dos exemplos está na fragmentação deliberada dos territórios palestinos ocupados: Faixa de Gaza, Cisjordânia – à sua vez também estilhaçada em infinitas ilhas – e Jerusalém Oriental, para onde Israel transfere ilegalmente a sua população (um crime de guerra), já ocupando os dois últimos “fragmentos” com mais de 140 colônias e 600 mil colonos, que recebem eletricidade e água encanada roubada dos próprios territórios ocupados, recursos dificultados aos palestinos.

Ali, na “ilha de democracia” em meio a um Oriente Médio "incivilizado", reza a lenda sionista, os israelenses “conquistam” diariamente a sua superioridade, sobretudo através de um Exército que nem mesmo seu advogado oficial, o major-general Danny Efroni, admite chamar de “o mais moral do mundo”, como pregam seus líderes e a máquina de propaganda que gerem. Efroni está encarregado de investigar a conduta das chamadas “Forças de Defesa de Israel” – nunca se vê o aparato israelense admitir a “ofensiva” – no último ataque contra a Faixa de Gaza, entre julho e agosto de 2014, que matou mais de 2.270 pessoas – 83% civis, mais de 500 crianças – e devastou o território sitiado pela terceira vez em cinco anos.

O bairro de Shujayeh, na Cidade de Gaza, continua devastado, quase um ano após a campanha israelense
de 51 dias de bombardeios, em julho e agosto de 2014. Foto: AP, 30 de março de 2015.

Crimes de guerra e a impunidade da ocupação

A investigação israelense é um “mal necessário” ao Exército para fantasiar o esforço de apuração das denúncias de crimes de guerra contra quase 1,8 milhão de palestinos na Faixa de Gaza, um dos territórios mais densamente povoados do mundo. As autoridades e os oficiais do Exército viram na condução da sua própria investigação a forma de contornar o direito internacional, que ainda pode levá-los ao banco dos réus no Tribunal Penal Internacional (TPI). A falta de esforço ou condições nacionais para apurar e julgar esses crimes transfere à justiça internacional a responsabilidade, principalmente desde que a Palestina tornou-se membro efetivo do TPI, em 1º de abril, apesar das ameaças e das sanções israelenses. Por exemplo, o repasse dos impostos coletados por Israel em nome do governo palestino – quase US$ 130 milhões por mês congelados desde dezembro – só foi retomado nesta semana.

Esta é apenas uma das sombras que deveria pairar sobre uma sociedade que comemora hoje um episódio histórico envolto em mitos. Uma reportagem do diário israelense Haaretz afirma que a independência foi declarada porque a nova Israel, envolta em guerras com os vizinhos árabes, temia as “invasões”, ainda que “os árabes” também se vissem “invadidos”. A Declaração de Independência foi assinada em 14 de maio de 1948, dia em que, à meia-noite, estava previsto o fim do Mandato Britânico, conforme sugerido pela Resolução 181 das Nações Unidas (o “Plano de Partilha da Palestina”), para a criação de dois Estados. O Estado da Palestina ficou no papel, enquanto a ocupação israelense, sobretudo a partir da Guerra de Junho de 1967, o consumia, engolindo ainda Jerusalém e territórios dos vizinhos Síria, Egito e Líbano. 

Em 13 de maio de 1948, conta a reportagem do Haaretz, a milícia sionista Haganah tomou a cidade árabe portuária de Yafa. Foi o prelúdio do estabelecimento do Estado de Israel, analisaram os jornais da época. Hoje a cidade é vendida pelo Ministério do Turismo israelense e poucas referências à sua história árabe são encontradas. O mesmo vale para Haifa, também portuária – onde a Sétima Frota da Marinha dos EUA aporta regularmente – e para as mais de 500 vilas palestinas destruídas no processo, além de tantas outras expropriadas, “judaizadas”. São nestas hoje concentrados o racismo e a violência contra os palestinos que resistiram, permaneceram, adquirindo a ilusória “cidadania” israelense.

A avaliação histórica da construção dos mitos em Israel é extensa e coberta por estudiosos como o palestino professor de Direito Raja Shehadeh, o renomado Edward Said, israelenses como Avi Raz, Yeshayahu Leibowitz, Shlomo Sand e Ilan Pappé (críticos do nacionalismo religioso), o estadunidense Noam Chomsky, entre tantos outros. A linguagem da ocupação é profunda e perfurante. Shehadeh dá o o exemplo da Regulamentação sobre Leis e Administração Número 1 (19 de maio de 1948), que “anula a Palestina pela primeira vez”.

Diversas outras leis continuam regulamentando o despojo e até a anexação, como o fez a Lei de Jerusalém, de 1980, além de relegarem os árabes à categoria de segunda classe, enquanto mantêm os territórios palestinos estilhaçados em frações diferentes de ocupação. Mas Israel comemora hoje uma história de “conquistas”, na insuficiência de vozes – ou na perseguição contra aquelas – que se recusam a festejar um projeto que sobrevive da segregação, da expulsão e do massacre do povo palestino.

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*Cientista política, jornalista e membro do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz), assessorando a presidência do Conselho Mundial da Paz.