Jarid Arraes: Álcool, drogas e machismo

Os debates sobre a legalização e a regulamentação das drogas vêm ganhando cada vez mais força, sempre acompanhados de uma realidade incômoda: a “guerra contra as drogas” não tem surtido efeito.

Por Jarid Arraes*, no Portal Forum

Jarid Arraes: Álcool, drogas e machismo

De fato, as pessoas não deixam de consumir substâncias psicoativas por causa do alarmismo da mídia e da postura repressiva da polícia. Pelo contrário; pesquisadores e especialistas alertam para a necessidade de se falar abertamente sobre o assunto, deixando de lado os posicionamentos proibicionistas e criando um maior acolhimento em sociedade.

Entre os diversos pontos importantes a serem levantados, as perspectivas de gênero se mostram profundamente relevantes para melhor compreender o consumo de álcool e de outras drogas. Com o debate de gênero em campo, os indicativos são evidentes: se a sociedade deseja reduzir os danos causados pelo abuso de substâncias, é necessário solucionar também o problema do machismo.

A terapeuta ocupacional e especialista em Farmacodependências Aline Godoy vem dedicando sua vida profissional ao descortinamento do consumo de drogas. Segundo Godoy, que é também Mestra em Saúde Coletiva e colaboradora do Grupo de Pesquisa “Fortalecimento e Desgaste no Trabalho e na Vida: Bases para Intervenção em Saúde Coletiva”, o consumo problemático de drogas é tão determinado socialmente quanto o consumo compulsivo de qualquer outra mercadoria, incluindo, por exemplo, a internet. A chave para identificar a raiz do problema de alguém com consumo problemático, seja de álcool, drogas ou roupas, está em compreender o sofrimento dessa pessoa e seu contexto social. “Pessoas que estejam fragilizadas em relação a sua participação afetiva, cultural, laboral, simbólica, estética e política na sociedade em que vivem apresentam sofrimentos importantes, com impactos nas formas de viver, relacionar-se, trabalhar e consumir”, explica Godoy.

Por isso, se o sofrimento de uma pessoa interfere em seu modo de consumir, sua relação com uma sociedade que estimula e até mesmo coage ao consumismo certamente será repleta de danos. “Nossa sociedade apresenta o consumo como forma de relação consigo e com os outros”, pontua Godoy. “A publicidade apresenta formas mil de combater o sofrimento, a angústia, a tristeza e o tédio pela via do consumo – de spas e viagens a medicamentos e planos de saúde. Todas e todos estamos submetidos a essa lógica de fuga do sofrimento pelo consumo, mas há diferenças nas formas de acessar essas respostas, determinadas pelos grupos sociais dos quais fazemos parte”.

No caso das mulheres, os clichês e valores sexistas propagados pela cultura potencializam ainda mais a relação com o consumo, criando a ilusão de que as mulheres são mais inclinadas ao consumismo por natureza, quando na realidade tudo não passa de cultura, ensinada e reproduzida à exaustão. Além disso, o machismo é responsável por padrões e expectativas nas quais as mulheres devem se encaixar e atender, o que gera grande sofrimento, já que esses critérios arbitrários são extremamente excludentes e limitados. Se o padrão ditado só consegue ser alcançado por uma parcela limitadíssima de mulheres, a maioria se sentirá, obviamente, excluída e inadequada, gerando grande sofrimento para essa parte da população.

Além disso, a estrutura misógina da sociedade também tenta vender a solução para o sofrimento que ela mesma causa. Convenientemente, a solução vendida nunca está na quebra de padrões, mas sim no estímulo indiscriminado ao consumismo. Nessa relação mora o estímulo ao consumo de cirurgias, aos produtos estéticos e também a substâncias como controladores de apetite, antidepressivos, álcool e outras drogas. “A sociedade patriarcal está organizada, entre outras coisas, em torno de um controle dos corpos e das mentes das mulheres, que as impele e compara permanentemente a um modelo ideal de corpo e comportamento. O sofrimento relacionado à insuficiência e à impossibilidade de tornar-se esse ideal exerce um papel estrutural na fragilização e gera busca de emagrecimento, calma para cuidar dos filhos, vigília para a jornada tripla de trabalho, relaxamento nas poucas horas de lazer e ócio, alívio de dores, na busca de ser aceita por um companheiro ou companheira que consuma drogas, na busca de esquecer tudo isso, mesmo que momentaneamente”, afirma Aline Godoy.

Por isso, é de extrema relevância lembrar que muitas mulheres não possuem qualquer acesso a terapias ou acompanhamento profissional. Pelo contrário, elas estão em situação de vulnerabilidade, fome e desassistência. Sendo assim, suas chances de lidar com o sofrimento de maneira efetiva são, no mínimo, improváveis, ampliando ainda mais as possibilidades de uma relação problemática com drogas.

“Mulheres que consomem drogas sofrem mais preconceito do que homens, seguindo a lógica de comparação a um modelo ideal, bem comportado – boa filha, boa mãe, boa esposa, boa empresária. Assim, é comum entre as mulheres que tenham muita vergonha de falar de seu consumo de drogas, mesmo em contextos de atenção à saúde, o que gera acesso ao cuidado específico tardio, quando já existe uma gravidade instalada”, alerta Godoy. A especialista chama atenção para as consequências da invisibilidade criada, que estabelece tabus equivocados a respeito do consumo de drogas por mulheres. Além disso, as pesquisas sobre os determinantes desse sofrimento são feitas essencialmente com homens e dados específicos sobre mulheres ainda são muito escassos. “Os serviços e propostas de cuidado têm dados enviesados sobre os quais propor intervenções”, afirma Godoy.

Outro ponto interessante e revelador apresentado pela terapeuta mostra que, nos grupos específicos de tratamento para mulheres consumidoras de drogas, o assunto dificilmente gira em torno do consumo. “O andar da vida, os filhos, a beleza, as demandas dos familiares e da organização da casa são essencialmente os temas levantados pelas participantes e é ali que reside a gênese de seu sofrimento”. Por meio desse fato, evidencia-se a fragilidade apresentada pelas mulheres, inseridas num contexto social de misoginia – e essa fragilidade não se transforma pelas formas tradicionais de tratamento das quais se tem lançado mão.

“Se é no levar da vida que o sofrimento delas acontece, é nas estruturas sociais, culturais, econômicas e materiais que deve haver transformação para que elas possam melhorar. Falar do sofrimento, tornar-se consciente, interpretar estruturas psíquicas, ter acesso a alguns recursos assistenciais pode fortalecer essas mulheres, mas a determinação última do sofrimento continua esperando por elas em casa (quando há casa)”, argumenta Godoy. Por esses motivos, um modelo de atendimento que não seja específico para mulheres acaba sendo ineficaz.

Violência doméstica x Álcool e outras drogas

“A estrutura patriarcal em que vivemos é determinante do sofrimento das mulheres relacionado ao consumo de drogas, mas não o único. A violência gera sofrimento”, explica a terapeuta. Para ela, a violência doméstica está relacionada ao consumo de drogas entre as mulheres, pelo tipo de contexto adoecedor e fragilizador em que acontece.

No caso da relação entre álcool, drogas e violência doméstica, ainda é possível levar o foco para as relações de gênero e o modo como o machismo atua na vida das pessoas. No caso dos homens, a mídia e a cultura agem com mais insistência para que o consumo seja maior e mais frequente. Basta ligar a televisão ou olhar para as paredes de um bar: em todos os lados há demarcações de gênero que relacionam o consumo de bebidas alcoólicas com a masculinidade. Na nossa cultura, beber muito é “coisa de homem”.

Aline Godoy explica que o sistema capitalista influencia o consumo. “O consumo de álcool por homens é mais influenciado na mídia do que o consumo de álcool entre mulheres; para as mulheres, são mais vendidos os medicamentos, principalmente os calmantes”, ressalta. Por isso, não é difícil entender por que há tantos casos de homens que possuem relações problemáticas com o álcool e que também agem com violência misógina contra esposas e companheiras. No entanto, Godoy alerta para o equívoco que pode acontecer quando se relaciona o abuso de substâncias com a violência doméstica: “O álcool não incute comportamentos nas pessoas. Nem as outras drogas. Eles possibilitam condições para comportamentos humanos se manifestarem – comportamentos que sempre estarão de acordo com valores, culturas, tempo histórico e contexto”. Ou seja, é necessário retornar às bases do problema. No caso dos problemas relacionados aos papéis de gênero e ao machismo, é preciso compreender que o álcool não transforma um homem em um machista violento, uma vez que o machismo já estava internalizado e absorvido por meio de uma cultura misógina.

“O álcool atua no sistema nervoso central e uma das primeiras ações dele no cérebro é interferir nas funções de controle daquilo que é moralmente aceitável por nós mesmos, de acordo com os códigos sociais dos contextos em que circulamos – gera um tipo de inibição e as ações ficam menos controladas, mais espontâneas. E o que já está no indivíduo pode então se manifestar com menos controle moral”, pontua Godoy. É por isso que em uma sociedade como a nossa, quando aquilo que é considerado “politicamente correto” é deixado de lado, o machismo das pessoas fica tão evidente e escancarado.

Além disso, segundo a especialista, os lares onde o consumo de álcool coabita com a violência doméstica são lares em que há uma série de outros problemas, fragilidades e sofrimentos. “Há que se tomar cuidado nessa relação entre consumo de drogas e violência, sob risco de acharmos que se acabarmos com as drogas, acabaremos com a violência. Assim, com o vilão localizado na droga, alivia-se a responsabilidade de todas e todos em relação às condições de miséria, violência e abandono em que vivem tantas famílias e também em relação à cultura misógina em que vivemos em todas as classes sociais”, alerta. “Consumo de drogas não causa violência. A violência e o consumo problemático de drogas coexistem em contextos de fragilização que são determinados socialmente”.

Portanto, para que quadros como esses sejam enfrentados e solucionados, Aline Godoy nomeia algumas estratégias: com seu grupo de pesquisa, ela tem estudado e desenvolvido práticas emancipatórias que passam pelo fortalecimento dos consumidores de drogas em relação a seu lugar, seu pertencimento e sua participação na sociedade. “Essas práticas passam pela tomada de consciência das estruturas adoecedoras (não apenas sociais, mas também psíquicas e biológicas, afirmando que as pessoas são capazes de entender o que acontece com elas e de tomarem decisões sobre os próprios corpos e saúde); pela organização social dos coletivos submetidos às estruturas adoecedoras (se o sofrimento acontece em cada corpo singularmente, suas formas são determinadas socialmente, de acordo com os meios de vida, trabalho e consumo de cada grupo social); e pela produção de condições de participação das pessoas na construção e transformação desses elementos determinantes”, explica Godoy.

Todas essas práticas implicariam serviços que atendessem sem julgamento sobre as escolhas das mulheres, em ambientes em que elas se sentissem à vontade para falar, em que elas não se sentissem ameaçadas de serem expostas ou de terem seus filhos tirados de si. “Acessibilidade para as que têm deficiências; letramento às que não saibam ler e escrever; acesso a medicamentos e consultas àquelas com problemas de saúde instalados”, adiciona Godoy. Seria necessário o acesso à informação clara sobre o consumo de drogas e seu impacto sobre o corpo nos diversos ciclos de sua vida, de forma objetiva, que proporcione às mulheres a possibilidade de fazer escolhas conscientes sobre o seu próprio consumo. Além disso, também seria importante haver acesso ao debate sobre o que é ser mulher na nossa sociedade, ao encontro com outras mulheres em situações semelhantes, com um esforço para desnaturalizar a culpabilização que sofrem por não terem sido “suficientemente boas” para si próprias ou para a sociedade. É importante que as mulheres conheçam seus direitos sociais e consigam acessar os movimentos que lutam pela transformação daquilo que as fazem sofrer.

Embora a caminhada seja longa, talvez consigamos avançar com mais rapidez e eficiência se tivermos mais atenção para discussões como essa e mais dedicação na luta contra o machismo.

*Jarid Arraes é diretora do Femica e estudante de Psicologia