Urariano Mota: Djalma Júnior, ou a lógica no delírio

Minha filha e os da geração dela costumam se referir aos assuntos mais graves, sérios e tocantes como “pesados”. Entendo-os com um esforço de largueza na compreensão.

Por Urariano Mota* para o Vermelho

djalma junior - Reprodução

Bem sei que na verdade assim se referem às obras e pessoas fundamentais, com as quais não adianta fazer “greia”, para usar uma gíria recifense, ou mesmo brincar com leveza. Mas jamais poderia imaginar que o adjetivo usado por eles fosse tão impeditivo para mim. Pois adiei falar até hoje sobre Djalma Gomes de Lima Júnior.

Tentarei escrever enquanto escuto e ouço o Tropicália, o disco vanguarda dos tropicalistas. Espero que me ajudem na tarefa, na altura de “as pessoas na sala de jantar”, do “Panis et Circenses”. Começo pela mensagem de Fátima Brandão, que me chegou pelo Face há 16 dias, enviada do Canadá:

15 de março de 2015 2:38

Nunca pensei em usar um meio tão moderno, num momento tão triste. Mas sei do grande carinho que meu mano sempre sentiu por você. E eis que acabo de saber que meu irmão, Djalma Gomes de Lima Junior, faleceu às 21:30h de sábado, hoje, 14 de março, em Olinda, na UTI do Hospital Esperança, onde estava internado desde domingo passado. Walker está lá no hospital cuidando da trabalhosa burocracia da fatalidade do final da vida. Mamãe que passou mal novamente hoje ainda não sabe de nada em casa. Sandra, minha irmã, chega amanhã para avisar. Tudo indica que foram complicações respiratórias, aliadas a um problema renal, mas ainda não me comuniquei ao certo, -nem sequer diretamente- com os responsáveis nem os familiares locais. No dia primeiro ele foi andando e se internou com dificuldade respiratória. No dia seguinte 2 de março ele havia completado 59 anos. Foi um irmão muito querido e amado. Em setembro realizou um sonho lindo e veio me visitar aqui no Canadá, onde passamos dias felizes juntos e bem unidos. Jamais esquecerei sua presença afável e semblante inteligente. E que ele, de fato, lhe queria tanto bem. Descanse em paz, meu mano Rudo!
 

A esse golpe, na manhã seguinte respondi:

“Fátima, eu me sinto muito triste. Eu não esperava isso. Pensava que fosse apenas mais uma internação. Que caráter possuía o nosso amigo! Que caráter! E que inteligência também, sofrida, mas que inteligência e sensibilidade. Ele era um divulgador de ‘Soledad no Recife’. Vou procurar agora o que ele escreveu sobre Soledad e me entregou num envelope. Eu acabara de ler a semana passada um texto dele, que ele havia datilografado em 1994. Saiba você que ele possuía um grande orgulho de ser o seu irmão. Que ele sempre falou com as melhores palavras sobre Gildo Marçal. Ou seja, ele possuía a sensibilidade e o caráter de exaltar o que é grande, o que está acima do medíocre. O meu domingo ficou menor. Ele era meu amigo”.
 
E Fátima:
 
“Ele era seu amigo. Respeitava e admirava seu intelecto, sua integridade. Sempre me dava notícias suas. Quentes. Pq eu ligo todos os dias. Tava de olhinho aberto de manhã, ainda ontem, veio a febre alta, a pneumonia, em horas se foi. Não sofreu, ao menos. Nem se arrastou. Meu irmão mais próximo, simbiótico mesmo. Senti tudo. To assim passada. Depois voce me mostra os textos?”
 

O que tento fazer agora, cumprindo o prometido.

Em um envelope improvisado, feito a partir de uma folha de papel ofício, Djalma escreveu “a um mestre das Letras”. Primeiro, foi um choque para mim. Eu não sou mestre nem aqui em casa, que dirá para os de fora. Mas fiquei curioso do que viria. No verso, o meu amigo informou o remetente: “Com os agradecimentos – Djalma Jr.”. Então, quando abri o envelope, pude ler uma surpreendente crítica a Soledad no Recife, escrita à mão. Transcrevo-a, sem tirar nem pôr:

“Prezado Urariano

Em que me desse a pena aplicar, só num curso do Fogo Fátuo.

Deixar o pixote apodrecer, e lhe triturar os ossos, e como o patrão do bastardo (não sei que data, pois que não sumiu na poeira dos ignóbeis).

Talvez as lágrimas que verti por compaixão em uma senda contrita, me pudessem não comparecer num velório de todos os personagens críticos que assumiu. A beleza de como se apaixona antes do apagar da bela chama. Sim, também sou solidário nesta paixão.

Quisera ter a pena que a mão do autor faz sua jurisprudência, e descreve com tanto suor, a questão que tanto nos empatiza, e enfatiza o papel dos que têm o coração grande, face uma erraiz miúda tão malefunta.

A beleza eterna de SOL, ó você, meu amigo Urariano, que ressaltou de maneira fortemente enfática para qualquer, onde haja uma pena forte.

Olinda 29/01/2012”.
 

Eu lhe disse na ocasião, no outro dia, ao caminhar na praia de Olinda, que a sua crítica possuía o valor de um troféu para mim. Era verdade, e de tal modo, que a guardei em minha gaveta até hoje, neste 2015. Agora, posso falar que o texto acima é uma sensibilidade exposta como uma fratura, com uma quebra do enunciado que lembra mais verso de poema, como na frase “A beleza de como se apaixona antes do apagar da bela chama”. Explico, para quem não sabe: Djalma tinha o diagnóstico de esquizofrenia. Daí a quebra da fala lógica, mas ainda assim tão expressiva, por força da genialidade que resistia ao terremoto. Ele era poeta, o que eu sei de um livro anterior dele que li. Vem da sua poesia o prumo da frase que define.

A esta altura, enquanto ouço “Mamãe, mamão não chore”, de Mamãe Coragem, devo copiar alguns trechos de um livro de Djalma, escrito em momentos serenos, serenos à sua maneira, devo dizer.

Do livro Os Flashmen – Efêmeros e Descartáveis, datilografado em 1994:
 
“Às vezes
não me lembro; mas também não me esqueço”.
Que sacada. A que junto este parágrafo, quase ao final do livro:
“A economia dos geômetras igualando em céu e terra seus enredos apresentam um universo asséptico e inconciliável; as sociedades dos famintos e deserdados não têm sua saciedade, e a expectativa do errante entre uma lata de lixo ou lixões é a herança a que são condenados em migalhas sem saciedade. Quando parte significativa não encontra perspectivas além do viver mais que vinte anos, o cardápio testamentário como se fala – Não existe ! (No future!)”
 
E poemas, que ele incluiu no texto narrado:
“A rota do rato é reta
Como pode preferir
a tranquilidade
das minhas panelas?

“Tire isso da cabeça
e ponha no vaso sanitário”
 

É um texto de saques, de sacadas em uma lógica de delírio, já se vê. Lembraria trechos de livros escritos sob efeito de ácidos, talvez. Mas no trato pessoal, Djalma era uma pessoa pacífica, serena. Na conversa, escutava em silêncio, parecendo coordenar o pensamento com os olhos, e respondia entre um sorriso e um riso com frases epigramáticas. Quase todos os dias eu o encontrava, quando eu ia caminhar na calçada da praia de Olinda. Ele estava sempre sentado, olhando as pessoas no murinho da calçada. Eu parava, convidava-o a caminhar comigo. Ele às vezes atendia, mas poucos metros adiante, obeso, com a respiração cansada e o andar muito lento, parava. Mas com uma saída lógica:

I– Vá caminhar, não atrapalhe as suas elucubrações. Eu espero você na volta.

Elucubrações. A minha mulher já havia notado que Djalma costumava usar as palavras com elegância e precisão. Aliás, com uma necessidade precisa, acrescento agora. Dele eu lembro três momentos antológicos. No primeiro, eu o convidei para beber comigo em uma barraca na praia de Olinda. Ali, conversamos sobre tudo, mas sempre a seu modo, isto é, aqui e ali com hiatos. Na mesa, pude então satisfazer uma curiosidade, que sobre ele eu alimentava, até o nível do escândalo:
 

– Djalma, é verdade que você se vestiu de Che Guevara em plena ditadura?

– Sim, é verdade.

– É verdade que você, vestido de Che Guevara, com charuto, boina e coturno, entrou no bar da Livro Sete?

– Sim, é.

– Rapaz, como foi que as pessoas reagiram?

– As pessoas fugiam de mim, como se eu estivesse com lepra. Os que ficavam, eu falava com eles em espanhol, mas eles nem me viam.

Na saída, de volta pra casa, me lembrei de repente que ele tomava remédios para doenças psiquiátricas. Então lhe perguntei:

– Você ainda toma aqueles remédios de tarja negra?

– Sim, tomo.

– E sua mãe, ela não fica irada com você tomar remédio e beber cerveja?

– Fica, mas ela não pode falar.

– Por quê?

– Porque ela não bebe, não pode saber o que é isso.
 

Eu não pude largar um sorriso diante da lógica infernal. Fazia sentido. Se uma pessoa não tem o vício, como poder falar com propriedade sobre o que não conhece?

No começo deste 2015, eu o reencontrei depois de um tempo em que não o havia visto na praia. Então ele me disse que tinha ido visitar a irmã Fátima, no Canadá. E eu, sempre com a curiosidade, que a minha mulher chama de impertinente:

 

– Mas como você fazia pra se comunicar sem a presença de Fátima?

– Eu falava.

– Sim, sei. Mas em francês?!

– Sim. Mas lá eles falam uma mistura, não é francês puro não.

E eu, monoglota, no limite da incredulidade:

– Se fosse no Canadá inglês aí já era mais complicado.

– Eu falo inglês também.

– Sério?

 

E o leitor me perdoe, porque na ocasião, para mostrar que o inglês não me era estranho (e como um teste revelador da minha fraqueza), fiz uma crítica às letrinhas idiotas dos Beatles, arremedando o “Love me do”. Para quê? Djalma passou a recitar o Eleanor Rigby, letra completa, em inglês de ótima dicção, com um sorriso. Toma-te, diriam os da geração do meu filho. Bem feito, dizemos os da minha. Ele, mais uma vez, dava uma lição no preconceito que julga sem inteligência, lógica, sensibilidade e cultura uma pessoa que atravessa uma quadra tormentosa no cérebro. Um preconceito do mesmo gênero dos que não veem humanidade nos negros, loucos e marginalizados em geral.
Flávio Brayner, que um dia foi Flávio Gabiru, mas hoje é doutor e trabalha no Centro de Educação da UFPE, escreveu um texto que julgo exemplar sobre a convivência na juventude com Djalma. Publicado no Jornal do Commercio, do Recife, dele não posso deixar de transcrever estes magníficos trechos:
“Djalma Gomes foi o único personagem realmente camuseano que conheci. Desde os dezoito anos recebera o diagnóstico de que era “maníaco-depressivo” (bipolar) e tomou tanto Lítio durante a vida, disse-me certa vez, ‘que tinha energia acumulada para abastecer uma cidade’! Era uma espécie de bad boy do antigo Ginásio de Aplicação, um terrorista em germe, mentor e organizador de práticas curiosamente criativas e destrutivas ao mesmo tempo, como se, para ele, destruir fosse um ato artístico de criação absoluta. Foi com ele, lá pelos meus 14 anos, que ouvi pela primeira vez alguém dizer algo como “O homem é uma paixão inútil!”, ou “O mundo é o lugar do absurdo!”, frases que só vim entender mais tarde, depois de ler os existencialistas que ele mesmo me emprestara. Era a consciência filosófica mais aguda de nossa geração adolescente… Certa vez fugiu de um sanatório, atravessou a nado o Capibaribe e foi bater na minha casa, ali na Madalena, para me falar de um projeto de estudo sobre Bergson!
 
Djalma foi o sujeito mais improvável que conheci: perfeitamente inadaptado ao mundo em que viveu; correspondido por este mundo que o rejeitou, ao mesmo tempo proprietário de uma ácida ironia com que ele desmoralizava nossas instituições, como um Mersault (o personagem d’ O Estrangeiro de Camus) impotente diante de seu próprio destino, condenado a uma espécie de pena de morte em vida, afastado do mundo por uma psiquiatria primitiva, sintomatológica e excludente, reuniu em si mesmo uma elevada dose de clareza sobre o absurdo de nossas vidas e a escuridão da loucura.

Telefonou-me pouco antes do carnaval, voz embolada de medicamento, para me dizer que, de todas as pessoas que conhecera, eu era a única com quem havia mantido uma amizade desde nossos 8 anos de idade e nunca havíamos brigado! Não recebo este comentário, agora que ele se foi, como uma despedida, mas, antes, como uma declaração derradeira de que, apesar de tudo, nós tínhamos experimentado uma forma de amizade que ele, que conhecia a Ética a Nicômaco, sabia só ser possível na ‘simpatia entre as almas’”.

O que dizer depois de tão brilhante evocação? Concluo, pelo menos por enquanto. No fim do ano passado, presenteei Djalma com o romance “O filho renegado de Deus”. Quando o encontrei uma semana adiante, ele me disse: “Urariano, o teu livro é sério. Eu vou arrumar umas coisas minhas primeiro antes de começar a leitura”. Ele se preparava para o mergulho, me disse. E mais não disse, pois bem sei hoje que ele próprio já havia começado a mergulhar em outros abismos. Ele já começara a partida sem volta. Mas todos nós, com a nossa mania de assuntos mais leves, brincalhões, nem notávamos.

O que vale dizer, ao fim: a vida é mesmo pesada, amigo Djalma. Até hoje, quando vou caminhar em Olinda, eu sinto a sua falta na paisagem. Olho e respiro fundo. É como você bem disse em seu livro datilografado: às vezes a gente nem lembra. Mas não esquece.

*Urariano Mota é escritor e jornalista pernambucano. Colunista do Portal Vermelho