No enfrentamento ao conservadorismo, a aliança é com o Povo

França, junho de 1848. Os desdobramentos das jornadas de fevereiro daquele mesmo ano, em Paris, que lançaram ao exílio o Rei Luis Filipe e instauraram a República, deixavam claro que não estava entre as intenções dos novos mandatários, atender as reivindicações dos trabalhadores e trabalhadoras que haviam participado ativamente do levante que ficou conhecido como Primavera dos Povos.

Por Maria Valéria Duarte de Souza

Naquele junho, a massa faminta de trabalhadores, homens e mulheres, tomou as ruas de Paris erguendo barricadas. Sem demora, um  gigantesco aparato repressivo se abateu sobre os insurgentes, muitos dos quais haviam participado nos embates de fevereiro ao lado das forças que agora sobre eles se lançavam impiedosamente.

Nas perseguições que se seguiram por muito tempo após a queda da última barricada, os trabalhadores não contaram com ninguém além de si próprios. A pequena burguesia e a classe média, que em fevereiro  aderiram ao discurso antimonárquico ao lado do proletariado que efetivamente pegou em armas para garantir a instauração da República, não esboçou um movimento sequer , temerosa de perder seus mesquinhos ganhos diante da vitória de um movimento liderado por trabalhadores.

Foram esses mesmos segmentos – pequena burguesia e classe média – que se aliaram a Luís Bonaparte, o “aventureiro de aspecto vulgar e repulsivo” (1) quando eleito Presidente da República da França por uma ampla maioria de votos ao final de 1848 e quando este, em 1852, perpetrou o golpe de Estado que restaurou a monarquia sepultando por um longo período – até 1870,   os ideais da revolução e a República francesa, inaugurando uma era de violentas reações, por parte das demais monarquias europeias,  contra toda e qualquer tendência libertária.

 Brasil, março de 1964

João Goulart, presidente constitucional, enfrenta uma violenta crise política insuflada por uma oposição interna, comandada majoritariamente por setores midiáticos e externa , comandada pela CIA.

Tal oposição tinha como eixo de sustentação a tese de que as reformas que o presidente João Goulart desejava realizar para que o país tivesse reais condições de alcançar um desenvolvimento autônomo , com melhorias concretas na vida do povo, eram provas claras de que ele, o presidente , seria um  comunista cujo objetivo seria instaurar, pela via do golpe de Estado, uma república sindical de orientação socialista, configurando assim, um atentado ao “mundo livre”.   

Esse discurso alarmista obteve eco junto a setores da burguesia brasileira, da pequena burguesia, das forças armadas e da classe média – sempre ela …

Criou-se, por meio de órgãos de imprensa, o braço mais poderoso das articulações oposicionistas – alguns deles ainda bem presentes na vida brasileira – a ideia de que o governo João Goulart era ilegítimo, uma vez que, segundo esses órgãos, a sociedade brasileira não apoiava suas decisões e mostrava-se, em sua esmagadora maioria, indignada com a corrupção, e o descontrole econômico que disparava a inflação .

Esta suposta impopularidade trata-se  de uma falácia, uma vez que, quando de sua deposição, João Goulart contava com 76% da opinião pública a seu favor (2). Este significativo percentual que se concentrava sobretudo na massa de trabalhadores era ignorado, quando não distorcido com o objetivo de influenciar a opinião da classe média urbana, essa mesma que participou ativamente das Marchas da Família com Deus pela Liberdade para “livrar o Brasil do comunismo” e foi às ruas das principais cidades brasileiras soltar fogos ou lançar papel picado do alto dos edifícios para celebrar a tomada do poder pelas forças golpistas.

Brasil, março de 2015

Uma crise política de grande envergadura se apresenta diante de denúncias de corrupção envolvendo membros da República. Identificando de forma imediata qualquer ato ilícito com o governo, as forças conservadoras que sempre tentaram moldar à sua imagem e semelhança os destinos do Brasil, tentam desestabilizar e inviabilizar o mandato da presidenta Dilma, reeleita em 2014, buscando reproduzir, agora em tom de farsa,   a tragédia de 1964.

Dois protagonistas daquele fatídico acontecimento ocorrido a meio século ainda se fazem presentes: poderosos grupos de comunicação e a classe média.   

Os primeiros, desempenham hoje o papel de principal partido de oposição ao atual governo. Diante de uma oposição partidária que não se sustenta nem por seus discursos – reduzidos a um moralismo vazio –  nem por suas práticas – que cada vez mais evidenciam o uso que fazem daquilo que criticam , a mídia conservadora desempenha sem nenhum escrúpulo o papel de agente do mais deslavado golpismo.

Para o sucesso dessa empreitada, tal mídia conservadora conta, mais uma vez, com a receptividade de uma classe média que, mesmo beneficiada por políticas governamentais, não tolera que tais políticas se ampliem para segmentos da sociedade historicamente excluídos da riqueza socialmente produzida. Um exemplo típico é o mal-estar provocado nos que se indignam com o fato de que pessoas que até pouco tempo mal podiam pagar uma passagem de ônibus hoje frequentam aeroportos. É também a mentalidade classe média que faz com que  algumas famílias de estudantes universitários fiquem indignadas ao descobrirem que o filho ou a filha de sua empregada frequenta a mesma faculdade, ou até o mesmo curso, ou que está na mesma sala de aula que seu filho ou sua filha! Algo inadmissível, diriam, usar o “meu imposto” para financiar faculdade para filhos e filhas dos empregados!

Diante de tal mentalidade, fica claro que no tenso quadro político que hoje se apresenta, não se pode vislumbrar na chamada classe média, um aliado para reverter a colossal campanha de desestabilização que a mídia burguesa e os interesses escusos dos quais é a voz, perpetram contra o governo e contra as forças democráticas.

 Uma crise de tais proporções só pode ser revertida pela rearticulação de uma base forte que tenha na organização consequente e combativa  dos trabalhadores , nos movimentos sociais de orientação popular e nas forças políticas progressistas o seu referencial.  Isto não será de forma alguma obtido com o discurso de que o país melhorou porque milhões adentraram  “classe média”. O país melhorou sim, porque parcela significativa de trabalhadores a quem antes estavam destinadas apenas as migalhas da riqueza por eles e elas produzida, hoje podem acessar fatias – ainda pequenas – mas um pouco maiores do que jamais haviam tido possibilidade de alcançar. Mas isso não os faz classe média! São sim, trabalhadores e trabalhadoras que, por suas lutas históricas puderam obter tais conquistas, mas que , também por suas lutas, podem obter muito mais. Desse modo, é uma temeridade quando, para o enfrentamento dos problemas econômicos, assume-se  o discurso  de “dividir o ônus com todos os setores da sociedade”. Já sabemos, pela experiência que a história nos oferece que, nas crises do capital , “dividir o ônus” significa jogá-lo sobre os trabalhadores e, com certeza, não será assim que  será obtida a  repactuação de uma aliança capaz de impedir que as forças do conservadorismo façam prevalecer seus interesses .  

Referências:

(1)  MARX, K. O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte. In: Karl Marx Friedrich Engels – Obras Escolhidas. São Paulo. Ed. Alfa-Ômega, 1980. P: 204.
(2)  BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. 7ª ed. Rio de Janeiro: Revan; Brasília –DF: EdUnB, 2001, p: 185.