A lógica racista do Carnaval de Salvador

O Carnaval de Salvador, por muitos anos foi o marco nos festejos populares da capital baiana e até do Brasil. Conseguia, através da genialidade de Dodô e Osmar, colocar milhares de pessoas atrás de um calhambeque, ao som de uma charanga e marchinhas tradicionais.

Por Mardel Eric*, no blog da UJS de Lauro de Freitas

Carnaval de Salvador - Reprodução

Por muito tempo a mensagem de um carnaval de rua marcado foi fixada na cabeça do baiano através de versos como "a Praça Castro Alves é do povo" e " a Praça é pra pés pular", versos de músicas imortalizadas por Armandinho e pelos Novos Baianos.

Com o passar dos tempos e com a invenção do Axé Music mudou-se totalmente o Carnaval, veio o circuito Barra/Ondina que privilegiava os mais ricos que além de verem os circuitos de seus apartamentos milionários, podiam alugar quartos tornando os 5 dias de Carnaval um negócio rentável para todo o ano. Logo o circuito Campo Grande, que percorria ruas históricas da capital baiana foi esquecido, sendo destinado apenas a bandas "emergentes" e outros corajosos que insistiam em se apresentar ali. Surgiram os camarotes e as cordas, que da forma mais cruel separava ricos e pobres e até negros e brancos.

A lógica do capital no Carnaval foi tão cruel que tratou de esquecer até mesmo um de seus maiores colaboradores, Luiz Caldas, o inventor do Axé Music, e que mesmo com o inicio da lógica mercadológica do Carnaval conseguia atrair a população da periferia e do centro de Salvador para a avenida pra dançar sucessos como fricote.

Nesse contexto, a corda se tornou arma principal para a separação dos soteropolitanos, quem tinha dinheiro dançava dentro, quem não tinha se espremia fora. Nessa lógica até o trio elétrico foi modificado para contemplar quem podia pagar caro por um camarote, esqueceram os carros e caminhonetes e optaram por caminhões para que os frequentadores dos Camarotes pudessem ver melhor os cantores da Axé Music, logo o folião pipoca foi drasticamente esquecido. E pra piorar, o alvo da policia em suas incursões em meio ao aperto de milhares de pessoas era sempre quem estava fora das cordas, além de porrada, os camelôs que tentavam ganhar o sustento durante a festa acabavam tendo prejuízo com os princípios de tumulto causados pela Polícia Militar.

Para não dizer que tiraram os negros do carnaval de Salvador, os artistas comerciais trataram de usurpar a cultura negra. Quem aqui não ficou perplexo com a auto intitulação da Claudia Leite como "nega loira"? Ou de Daniela como "a cor dessa cidade"? Mestres como Neguinho do Samba, que inventou o Samba Reggae, ritmo usado para as músicas de protestos do povo negro, Batatinha, Lazzo Matumbi foram esquecidos, e para continuar o histórico de exclusão, os excluídos da vez são os cantores que fazem o chamado pagode de protesto.

O pagode dispara como sucesso de público no verão de Salvador, e os cantores que tratam de denunciar a opressão que as comunidades periféricas sofrem nas mãos das rondas ostensivas da Polícia Militar e do poder público são amplamente limados do carnaval, aconteceu com a primeira formação da banda Parangolé, que começou a trazer essa vertente do protesto pro pagode; aconteceu com Fantasmão, que foi durante alguns anos uma das principais bandas de Salvador; vem acontecendo com Igor Kannário que hoje é o carro chefe do pagode na Bahia e acontece com Edcity, que foi cantor do Fantasmão em seu auge e hoje faz carreira solo.

Hoje com a pré-falência do Carnaval da Bahia e desespero dos grandes empresários fica a pergunta: será que vamos voltar a ter um Carnaval de verdade? Será que vamos ter coragem de banir os camarotes dando o direito de ir e vir aos foliões assim como foi feito em Olinda? Pra quem acha que Saulo Fernandes e Daniela Mercury saírem sem cordas é romper a lógica opressora do carnaval, sinto informar mas vocês estão enganados. Afinal de contas, eles sobrevivem da lógica do carnaval das famílias que lucram milhões espremendo soteropolitanos fora de cordas para que turistas e a pequena burguesia baiana dance dentro delas, até porque um dia sem cordas não justifica os outros quatro dias sofrendo no aperto e com a truculência do aparato anti foliões pobres fora dela.

*Mardel Eric é estudante de Filosofia da UFFS e ex-presidente da UJS Lauro de Freitas