Trechos do discurso de Cristina Kirchner na ONU omitidos pela mídia

Durante a 69ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 24 de setembro de 2014, a presidenta da Argentina lembrou algumas verdades ocultadas cuidadosamente pelos grandes meios de comunicação. Os trechos em aspas foram extraídas desse discurso de Cristina Kirchner na Organização das Nações Unidas (ONU). 

Por Salim Lamrani*, de Paris para o Opera Mundi**

Cristina Kirchner - Telám

1. A ausência de uma política multilateral internacional “efetiva, concreta e democrática” é o principal perigo para a paz no mundo e explica a maioria dos problemas vinculados ao terrorismo, à segurança, à soberania, à integridade territorial, assim como os problemas econômicos e financeiros atuais que assolam o planeta. Os Estados Unidos, com seu unilateralismo, são, em grande parte, responsáveis pela situação atual.

2. A Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a resolução nº 68/304 relativa à criação de uma Convenção Multilateral encarregada de estabelecer um enquadramento jurídico para a reestruturação das dívidas soberanas das nações. Com uma maioria de 124 votos, essa decisão ilustra a vontade majoritária da comunidade internacional e o isolamento dos países desenvolvidos. A reestruturação da dívida é um processo indispensável para evitar a quebra das economias do Terceiro Mundo. Sem reestruturação, os países do Sul caminham rumo a uma morte segura. E “os mortos não pagam suas dívidas.”

3. As grandes potências e as instituições financeiras não podem continuar saqueando impunemente as riquezas dos países do Sul e exigir o reembolso de uma dívida que já foi paga várias vezes. Para cada dólar emprestado, a América Latina já reembolsou mais de 7 dólares e continua sobrecarregada com o peso da dívida. A responsabilidade pela dívida não recai somente sobre o devedor, mas também sobre os credores, isto é, sobre os principais organismos financeiros e os bancos privados. A dívida dos países do Sul foi contraída com taxas exorbitantes e é impagável em seu estado atual. Impuseram taxas de juros de até 14% à Argentina.

4. A ditadura militar de 1976 contraiu uma parte da dívida externa da Argentina. Portanto, é ilegítima e moralmente impagável.

5. A onda neoliberal dos anos 1980 e 1990, imposta pelas instituições financeiras internacionais, com as privatizações massivas dos setores energéticos da economia nacional, uma desregulação sem precedentes e um desmantelamento do Estado de bem-estar levou o país ao desastre em 2001. Enquanto o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial apresentavam a Argentina como o melhor aluno do continente, as políticas neoliberais foram um fracasso total. Em 2001, a Argentina sofreu uma grave crise econômica, semelhante à crise que assolaria o mundo em 2008, cujos efeitos ameaçam hoje as economias emergentes. O país declarou moratória com uma dívida que representava 160% do PIB. Somou-se à crise econômica uma grave crise política que viu a Argentina mudar cinco vezes de presidente em uma semana. As instituições financeiras internacionais, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, responsáveis pela tragédia econômica e política, abandonaram o povo argentino à própria sorte. É necessário reformar radicalmente o Fundo Monetário Internacional, uma vez que suas políticas de ajuste estrutural levaram a economia mundial ao abismo.

6. Em 2003, o presidente Néstor Kirchner exigiu que os principais responsáveis pela crise — ou seja, o FMI, o Banco Mundial e os principais credores — assumissem as consequências de seus atos. Eleito com 22% dos votos, ele se encarregou da economia do país para enfrentar uma taxa de desemprego de 25%, uma taxa de pobreza de 54%, uma taxa de indigência de 27%, e um sistema de educação e de saúde totalmente desmantelados. Desde 2003, graças à uma política econômica voluntarista, na qual o Estado desempenhou um papel importante, nacionalizando uma parte de seus recursos energéticos e rejeitando o fundamentalismo neoliberal, a Argentina conseguiu criar milhões de empregos, estabelecer um sistema de aposentadorias eficiente e um crescimento anual do PIB de 6% em média. O governo Kirchner dedicou os novos recursos à infraestrutura do país com a construção de rodovias, escolas, centrais nucleares e hidrelétricas, redes elétricas e sistemas de distribuição de água potável em todo o país. Colocou o cidadão argentino no centro do projeto de inclusão social e a pobreza e a indigência ficaram abaixo do limiar de 10%.

7. Apesar da adoção de uma política econômica em desacordo com o que preconizam os organismos financeiros internacionais adeptos do neoliberalismo, o FMI reconheceu que o crescimento econômico da Argentina entre 2004 e 2011 era o melhor da América Latina e estava entre os três melhores do mundo, atrás da China e da Bulgária. Da mesma maneira, a Argentina dispõe hoje, segundo o FMI, do melhor poder aquisitivo e da melhor renda de aposentadorias da América Latina.

8. De 2003 a 2014, a Argentina dedicou mais de US$ 190 milhões ao reembolso da dívida externa contraída pelos governos anteriores. Carca de 92,3% dos credores aceitaram uma reestruturação da dívida em 2005 e receberam pagamentos regulares desde então. A Argentina reembolsou o total de sua dívida com o FMI. A Argentina também conseguiu, em 2014, um acordo para a reestruturação de uma dívida contraída em 1956 com o Clube de Paris.

9. Apesar das reticências iniciais, a empresa petroleira espanhola Repsol, expropriada em 2012 no marco de uma política de recuperação da soberania energética, aceitou a indenização de US$ 5 milhões proposta pela Argentina, ou seja, metade do que exigia a multinacional.

10. Tudo isso pôde ser realizado com fundos próprios, já que a Argentina não tem acesso aos mercados de capitais desde a crise da dívida em 2001.

11. “Esse processo de inclusão foi iniciado a partir da bancarrota total e absoluta, em pleno default. Conseguimos recuperar o default, conseguimos incluir os argentinos, conseguimos conquistar crescimento social com inclusão, conseguimos nos desendividar e hoje, além disso, temos um coeficiente de dívida entre os mais baixo do planeta”, disse Cristina Kirchner na ONU.

12. Os fundos abutres, fundos de pensão que exigem o reembolso integral e imediato da dívida e que representam 1% dos credores, que não aceitaram a reestruturação da dívida em 2005, representam um perigo para a estabilidade financeira do mundo, já que ameaçam os países mais frágeis que trabalham arduamente para lutar contra a pobreza. “Hoje, a Argentina, com a cumplicidade do sistema judicial do país, está sendo perseguida por esses fundos abutres”, disse Cristina. O papel desses fundos abutres, segundo a expressão do antigo primeiro-ministro britânico Gordon Brown, consiste em comprar os títulos da dívida de países em moratória e dar início a um processo judicial em distintas jurisdições para conseguir “lucros exorbitantes”. Assim, depois de uma denúncia contra a Argentina, esses fundos abutres conseguiram em um tribunal de Nova York indenizações equivalentes a 16 vezes o total da dívida reclamada. Esses fundos abutres põem em perigo a estabilidade financeira da Argentina e ameaçam a reestruturação da dívida que foi realizada em 2005 e em 2010 com 92,4% dos credores. De fato, o acordo estipula que nenhum credor poderá conseguir um reembolso superior ao que estabeleceu a maioria dos possuidores dos títulos da dívida argentina.

13. “Os fundos abutres, além, disso ameaçam e perseguem com ações a economia do nosso país, provocando rumores, infâmias e calúnias […], de tal forma a atuar como verdadeiros desestabilizadores da economia”, disse Kirchner.

14. Cristina Kirchner: "É uma espécie de terrorismo econômico e financeiro. Porque não apenas são terroristas os que andam jogando bombas, também são terroristas econômicos os que desestabilizam a economia de um país e provocam pobreza, fome e miséria, a partir do pecado da especulação.”

15. A Argentina foi vítima de dois atentados terroristas. Em 1992, uma bomba destruiu a embaixada de Israel e, em 1994, outra bomba atingiu a sede da Amia (Associação Mútua Israelita Argentina).

16. O governo do presidente Néstor Kirchner foi o que mais agiu para que se descobrissem os responsáveis pelos crimes. Todos os arquivos dos serviços de inteligência foram desclassificados e criou-se uma equipe de investigação dedicada a esse caso.

17. “Quando, em 2006, a Justiça do meu país acusou cidadãos iranianos de estarem implicados na explosão da Amia, foi ele [Néstor Kirchner] o único presidente e depois eu também, que se atreveu a propor, a pedir à República Islâmica do Irã, que colaborasse, que cooperasse com a investigação”, pontuou Cristina Kirchner na ONU.

18. Em 2011, o Irã aceitou a proposta de colaboração e um memorando de acordo de cooperação judicial foi assinado entre os dois países.

19. “O que aconteceu quando assinamos esse memorando? Pareceu que se desataram demônios internos e externos. As instituições de origem judaica, que nos acompanharam todos os anos, de repente se voltaram contra nós […] Nos acusam de cumplicidade com o Estado do Irã.”, disse Cristina.

20. Os supostos “combatentes da liberdade”, apoiados pelas potências ocidentais, que tentavam derrubar ontem o governo de Bashar al Assad, constituem hoje as tropas da EIIL (Estado Islâmico do Iraque e do Levante, atualmente chamado só de Estado Islâmico) que ameaçam a segurança em todo o Oriente Médio. Os Estados Unidos, a França e o Reino Unido, membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, encarregado da paz no mundo, criaram o monstro. “Onde a Al Qaeda e os talibãs apareceram, de onde tiram as armas, de onde tiram os recursos?”, indagou Cristina.

21. As grandes potências mudaram fácil demais “o conceito de amigo-inimigo ou de terrorista-não terrorista”. Torna-se impossível combater o terrorismo mediante a guerra. É necessário trabalhar pela paz mundial.

22. “Volto a reclamar, por favor, a essa Assembleia, o reconhecimento definitivo da Palestina como um Estado integrante dessa Assembleia”. A Palestina tem direito à proteção de sua população civil e de não sofrer uma agressão “que já provocou a morte de centenas de crianças e mulheres.”

23. O uso da força deve ser proibido e convém respeitar a integridade territorial das nações.

24. As ilhas Malvinas são argentinas e é hora de o Reino Unido aceitar essa realidade.

25. É hora de reformar o Conselho de Segurança das Nações Unidas e revogar o direito de veto das cinco grandes potências que são os Estados Unidos, o Reino Unido, a França, a China e a Rússia. É necessário que a Assembleia Geral das Nações Unidas recupere suas prerrogativas, sem padecer da coação do Conselho de Segurança, para que reine uma “verdadeira democracia global”, na qual cada país represente uma voz.

*Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos da Universidade Paris Sorbonne-Paris IV, Salim Lamrani é professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos. Seu último livro se chama 'The Economic War Against Cuba. A Historical and Legal Perspective on the U.S. Blockade', New York, Monthly Review Press, 2013, com prólogo de Wayne S. Smith e prefácio de Paul Estrade.

**Título original: 25 verdades sobre Cristina Kirchner: fundos abutres e o sistema financeiro mundial