Milton Hatoum: Marina e a ameaça de retrocesso geral

Autor de romances premiados, o escritor Milton Hatoum foi o primeiro intelectual a romper publicamente com a candidatura Marina Silva, do PSB. Ele tomou a decisão depois que o programa de governo do PSB mudou, 24 horas após a divulgação, sob ameaças do cruzado da homofobia, pastor Silas Malafaia.

Milton Hatoum
Malafaia exigiu de Marina, em quatro tuitadas ameaçadoras, que a candidata retirasse a promessa de defesa do casamento gay de sua plataforma. Foi atendido de bate pronto para esta entrevista. Hatoum, cujo primeiro romance (Relato de um certo Oriente), ganhou o prêmio Jabuti, em 1989, detalha as razões de seu rompimento com a presidenciável que se apresenta como missioneira da "nova política".

“A candidata cedeu às pressões de líderes evangélicos e agora tornou-se refém das bancadas religiosas, aliadas do PSB. Se esse partido ganhar as eleições, certamente será canibalizado. Alguns dos políticos mais conservadores e fisiológicos já acenaram para a candidata. A ideia não era governar com os melhores? O retrocesso é geral”, indigna-se Milton Hatoum.

Pergunta: Por que o sr. decidiu retirar o apoio a Marina –esse apoio já era público; era explícito?


Milton Hatoum:
No primeiro turno ia votar em Eduardo Campos, o candidato de um partido que, na década de 1940, recebeu a adesão do crítico Antônio Candido e de vários escritores e intelectuais da esquerda antistalinista. Depois do acidente fatal, eu disse numa entrevista à Folha que estava propenso a votar na Marina. Uma parte importante do programa original do PSB (divulgado no dia 29 de agosto) foi alterada em menos de 24 horas. Recentemente a candidata declarou que o programa pode sofrer novas alterações. Deve ser uma espécie de “work in progress”, como ocorre com algumas obras de ficção.
 
P: O que o tocou mais no episódio da retificação do programa feita por Marina, sob pressão do bispo de Malafaia, a rapidez ou a justificativa?
MH: Pela alteração, mais oportunista que oportuna do conteúdo, pois o novo texto renunciou a princípios éticos, que significam um compromisso com a responsabilidade e com os valores democráticos. Li que a candidata se inspira em versículos bíblicos para tomar decisões pessoais. A política de um Estado laico não pode ser inspirada pelo poder divino. 
 
P: O vice de Marina, Beto Albuquerque, utiliza o mesmo argumento de quem critica o recuo para justifica-lo: ‘O Estado é laico’, diz ele. Qual a sua opinião?
MH: A candidata cedeu às pressões de líderes evangélicos e agora tornou-se refém das bancadas religiosas, aliadas do PSB. Se esse partido ganhar as eleições, certamente será canibalizado. Alguns dos políticos mais conservadores e fisiológicos já acenaram para a candidata. A ideia não era governar com os melhores? O retrocesso é geral.
P: No último fim de semana, Malafaia disparou pelo twiter: “Já viram o recuo de Marina devido às posições do povo de Deus?” Uma presidenta da República pautada assim diretamente pelo guardião da fé traz que riscos para a cultura? E para a ciência?
MH: Riscos gravíssimos, pois essa tutela fundamentalista pode limitar ou até proibir pesquisas científicas, atividades culturais e também o ensino público, que, nos moldes republicanos, deve ser laico. E quem é o “povo de Deus”? No Brasil há mais de 100 mil judeus, um milhão de muçulmanos, milhares de budistas, milhares de índios que praticam rituais de sua cultura milenar, milhões que praticam cultos afro-brasileiros e outras religiões. Além disso, mais de 15 milhões de brasileiros são agnósticos ou ateus. O discurso que usa o texto sagrado para tomar o poder e impor regras de conduta à sociedade torna-se uma ameaça ao Estado laico. No contexto internacional, os judeus-sionistas de extrema-direita inviabilizam a criação de um Estado palestino, os jihadistas do EI querem criar um califado, o ex-presidente George W. Bush, com sua política belicista e intervencionista foi apoiado pela extrema-direita protestante. Não é o caso do Brasil, mas a lealdade cega e delirante ao texto sagrado pode interferir na legislação brasileira, pode minar o Estado de direito, a democracia, o respeito a outras culturas.
 
P: Não é a primeira vez que o bispo Malafaia participa diretamente de um episódio eleitoral polêmico. Em 2012 ele desembarcou em SP para apoiar Serra no segundo turno contra Haddad. A Folha de S. Paulo, então, deu em manchete graúda, no caderno de política, em 10/10/2012: "Líder evangélico diz que vai 'arrebentar' candidato petista — Silas Malafaia afirma que Haddad apoia ativistas gay" O senhor se lembra desse episódio?


MH: Essa linguagem, que mistura baixeza e histeria, é própria do discurso autoritário, antidemocrático. No Estadão do dia 2/09, esse mesmo pastor disse: “se botar a cara para fora, o sarrafo vai comer”. Referia-se à presidente Dilma Roussef e ao candidato Aécio Neves, que, segundo o pastor, “foram mais comedidos em suas propostas para a comunidade LGBT”. O uso recorrente de termos baixos e ofensivos contra a presidente, um ex-ministro da Educação e um senador da República já revela a dose de obscurantismo do pastor, aliado de Marina. Por essa e por outras razões, pelo menos três membros importantes do PSB, incluindo o secretário-geral e um integrante da Executiva, já saíram da campanha do Partido.

P: O senhor acha que uma vitória de Marina nessas condições pod representar, ao contrário do que diz seu vice, um perigo ao Estado laico?

MH: Um perigo, talvez não. Mas pode representar um tremendo retrocesso político e cultural. O povo brasileiro quer respostas concretas aos problemas da vida terrena, a questões cruciais do dia-a-dia: transporte, saúde e educação públicos, segurança, moradia, desemprego. Com as bancadas religiosas, com a adesão de Romero Jucá, Agripino Maia e tantos outros fisiológicos, a troca de benefícios do governo por apoio político será uma prática comum. O clientelismo e o patrimonialismo não serão abolidos, nem mesmo atenuados. As relações promíscuas entre os três poderes e setores do empresariado vão permanecer intactas. E com um agravante: a chantagem descarada das bancadas religiosas vai criar tensões de todo tipo e um obscurantismo cujas consequências podem ser desastrosas.

Fonte: Carta Maior