O gigante acordou em junho de 2013?

“O gigante acordou” – esta foi uma das incontáveis palavras de ordem das manifestações de junho de 2013. Apesar de sua aparente eloquência, ela revela justamente a falta de rumos de grande parte daquele movimento que, agora, completa um ano.

Por José Carlos Ruy  

manifestação junho 2013
Em junho de 2013 ocorreu uma grande explosão do descontentamento popular; ela expôs vicissitudes da luta de classes que ocorre no Brasil. Aquele movimento teve algumas marcas principais. Primeiro, a enorme dispersão de reivindicações que surgiram na esteira da exigência de transportes urbanos de melhor qualidade e preços acessíveis. Outra foi a virulenta posição contra os partidos políticos de esquerda por parte de alguns grupos que participavam dos protestos. Tudo isso acompanhado pela ação violenta de grupos como os black-blocs que, a pretexto de reagir contra a violência policial, partiram para o vandalismo puro e simples. Outra característica foi o uso da internet, das redes sociais (como o twitter e o facebook) para mobilizar as pessoas.
 
Os protestos contra os aumentos nas tarifas do transporte público cresceram desde 1º de junho, data prevista para entrarem em vigor. Podem ser distintas duas fases no movimento, separadas pela manifestação de 17 de junho. A primeira foi marcada pela selvagem repressão policial, com inúmeros feridos (inclusive muitos jornalistas) e prisões arbitrárias. A partir daquele dia, quando as manifestações se espraiaram pelas capitais e grandes cidades, cresceu o papel da mídia – principalmente da televisão – na divulgação e mesmo na mobilização para as manifestações.
 
Na primeira fase a grande mídia patronal condenou os protestos, como de costume. O jornal Folha de S. Paulo chegou a pedir, em editorial (em 13 de junho), a aplicação da “força da lei” contra atos de vandalismo. “Cumpre investigar, identificar e processar os responsáveis. Como em toda forma de criminalidade, aqui também a impunidade é o maior incentivo à reincidência”, pregou o jornalão paulistano. O mesmo mantra foi repetido por outros jornalões. Em 12 de junho, O Globo falou em “marcha da insensatez”; no mesmo dia O Estado de S. Paulo alertou contra os “baderneiros” que “aterrorizam a população”.
 
A polícia, que não precisa de incentivos semelhantes para agir violentamente, reprimiu os manifestantes nas ruas e avenidas de São Paulo abusando do uso de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha, deixando muitos feridos.
 
A reação popular contra a arbitrariedade policial foi intensa. No dia 17 de junho, o povo ocupou as ruas de várias capitais e grandes cidades, com milhares de participantes. Em São Paulo, os cálculos de participação oscilam de 65 mil a 100 mil pessoas; no Rio de Janeiro, entre 100 mil a 300 mil. Houve protestos também em Brasília (onde manifestantes subiram na cobertura do Congresso Nacional), Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza, Curitiba, Maceió, Salvador, Belém além de muitas cidades pelo país afora. Houve quem avaliasse que, naquele dia, o total de manifestantes em todo o país superou a marca de um milhão.
 
As classes sociais saíram às ruas em junho de 2013 em busca de seus objetivos e, muitas vezes, privilégios. Isso foi ressaltado por manifestantes de setores de classe média de perfil político mais conservador e à direita, com sua desorganização e atomização. Unidos, pode-se dizer, por um sentimento de ser “contra tudo o que está aí” – isto é, contra os governos democráticos e progressistas inaugurados com a posse de Lula em 2003, contra a política e contra os partidos de esquerda. Na outra ponta do espectro estavam os partidos de esquerda, as centrais sindicais, organizações juvenis e estudantis, os movimentos sociais, que eram hostilizados pelos grupos “anti-partido”; defendiam as mudanças realizadas desde 2003, e queriam mais exigindo melhores transportes públicos, melhorias na saúde e na educação. 
 
Houve um ponto nítido que diferenciava estes dois grandes segmentos: enquanto aqueles, mais conservadores (incluindo os black-blocs) atomizavam suas palavras de ordem em reivindicações dispersas (que, meses depois, confluíram na disposição anti-Copa do Mundo que se revelou extremamente minoritária) os demais, à esquerda, trouxeram reivindicações mais objetivas e claras, unificando sua ação.
 
Na cidade de São Paulo a presença destes dois grandes segmentos ficou clara inclusive na divisão geográfica do movimento que, em 17 e 25 de junho, ocorreu em pelo menos três regiões da cidade. Enquanto grupos mais à esquerda agiram na zona sul e manifestantes de extração mais popular estiveram presentes nas grandes rodovias, como Via Dutra, Raposo Tavares e Castello Branco, os grupos mais conservadores e à direita ocuparam sobretudo a região dos Jardins e da avenida Paulista.
 
A presença da esquerda ficou mais visível em 11 de julho, quando as centrais sindicais realizaram o "Dia Nacional de Luta", mobilizando sindicatos, movimentos sociais e partidos de esquerda, entre eles o PCdoB, que esteve à frente da organização e da mobilização daquele ato no qual não houve dispersão de reivindicações, sendo uma manifestação de unidade do povo organizado.
 
A oposição de direita e os conservadores, vindos de um passado recente de desmobilização e fraco apelo popular – basta lembrar o fiasco do Cansei! em julho de 2007 – sentiu-se animada com os protestos de junho de 2013, vendo neles um levante popular contra a série de governos democráticos iniciada com a posse de Lula em 2003. Tentou pegar uma cartona no movimento, principalmente na segunda fase, a partir de 17 de junho. A mídia conservadora mudou de tom; a TV Globo chegou mesmo a deixar de transmitir a novela e o Jornal Nacional, no dia 20, para privilegiar o noticiário sobre os protestos.
 
A resposta do governo, imediata e precisa, mudou o foco da pauta política. Em pronunciamento em cadeia nacional de televisão, no dia 21 de junho, a presidenta Dilma Rousseff retomou as rédeas da ação política ao dirigir-se a todos os que "foram pacificamente às ruas: eu estou ouvindo vocês! E não vou transigir com a violência e a arruaça", afirmou. E conclamou governadores e prefeitos para "um grande pacto em torno da melhoria dos serviços públicos", incluindo melhorias nos transportes urbanos, “destinação de cem por cento dos recursos do petróleo para a educação” e o reforço, com médicos do exterior, do atendimento do Sistema Único de Saúde, o SUS. Em seguida, reuniu-se com 26 prefeitos e 27 governadores e propôs cinco pactos, incluindo um plebiscito pela reforma política. Além disso, reuniu-se com representantes das centrais sindicais e dos movimentos sociais, como o Movimento do Passe Livre (MPL), que convocou os protestos de São Paulo contra o aumento nas tarifas dos transportes.
 
Passado um ano desde aquela que alguns comentaristas mais afoitos tentaram apelidar de “primavera brasileira” (ecoando a chamada “primavera árabe” de 2011), as esperanças da direita e dos conservadores não se confirmaram. Se, há um ano, havia um apoio quase unânime às manifestações (o instituto Datafolha apurou o índice de 89% na cidade de São Paulo!), em fevereiro de 2014 a aprovação havia caído a 52%. Grande parte do custo dessa corrosão na aprovação popular pode ser debitado às ações violentas de grupos como os black-blocs: já em outubro de 2013, nove em cada dez brasileiros condenavam manifestações violentas, apurou o mesmo Datafolha.
 
Além disso, a pulverização nas reivindicações apresentadas pelos mais conservadores e a falta de clareza em seus objetivos foi fatal também para seus líderes políticos que não puderam traduzir o “levante” de junho em intenções de voto em seus candidatos (como o tucano Aécio Neves).
 
O gigante acordou em junho de 2013? 
 
Houve um evidente exagero por parte de quem formulou essa palavra de ordem. Não: o gigante já estava acordado – despertar confirmado na eleição de outubro de 2002 quando Lula foi escolhido presidente da República, e nas eleições presidenciais seguintes, que confirmaram aquela opção. O gigante, desde então, está em pé e vigilante!